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QUAL CIDADANIA?

5.1 Catadores que atuam na UTL

Na UTL os catadores são admitidos como “operários” selecionados

via concurso, com todos direitos trabalhistas assegurados. Esses catadores são gerenciados por um químico contratado pela Administração Municipal. Nenhum dos entrevistados concluiu o ensino fundamental, e dois recebem Bolsa Família - programa do governo federal.

Observou-se que o relacionamento entre os operários da unidade aparentemente é bastante amistoso. Quando a equipe de pesquisadores chegou ao local, juntamente com a assistente social que coordenava o Programa, foi recebida pelo gerente que a apresentou ao grupo. As atividades laborais foram interrompidas, todos sentaram em círculo e conversou-se informalmente. As reuniões são momentos esperados, e a maioria participa ativamente da avaliação do processo de trabalho. A assistente social, responsável pelas reuniões, possui um horário fixo de visitação à UTL, com reuniões pré-agendadas.

Durante a reunião, as falas iniciais dos funcionários expressaram um “gostar do que fazem”, e o orgulho de estarem ali: “Acho show de bola que somos reconhecidos”, diz Clara9, que trabalha na UTL há um ano e quatro meses, e antes catava na rua. A fala do reconhecimento é recorrente. O primeiro contato muitos permaneceram calados, observando a equipe de pesquisa.

Percebeu-se, inicialmente, um clima de assistencialismo e um tratamento paternalista, tanto da parte da coordenadora e do gerente do projeto, como na fala dos operários da UTL, o que se verifica quando Clara afirma: “Vocês estão lutando pela gente”. A afirmação da operária denota uma posição de não protagonismo. E, ao mesmo tempo em que esta fala denuncia a pouca valorização desta profissão e a consequente baixa auto-estima destes profissionais, pode-se, por outro lado, depreender um sentimento de identificação social com o grupo técnico envolvido na organização do processo de trabalho.

Ao retornar à UTL iniciou-se uma observação mais apurada do grupo e aplicaram-se entrevistas semiestruturadas, individualmente, a sete funcionários que se dispuseram a participar da pesquisa.

Os informantes afirmam que o relacionamento na UTL é de ótimo a bom, incluindo a relação com o gerente. O discurso da coordenação do projeto também salienta a efetivação de laços solidários e de coesão entre os operários.

Representações laboriais

Sobre o trabalho que os catadores desempenham na UTL, seis deles afirmam estar satisfeitos: “Tô gostando do serviço. Sempre gostei da reciclagem”, “É bom trabalhar aqui”, “Gosto de fazer esse tipo de trabalho”. Eles desconhecem que sua profissão foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego na Classificação Brasileira de Ocupações como catador, e a definem como sendo “operário”, “reciclador”. No entanto, quando questionados sobre como a comunidade os vê,

afirmam: “Lixeiros”, “Com muito preconceito”, “Dizem que é trabalhar no lixão”, “Uns olham feio, uns até elogiam”, “Uns entendem, outros acham que é trabalho meio sujo”.

Em relação às dificuldades que o trabalho impõe indicam a mistura que a população faz entre os tipos de resíduos e problemas com a máquina que os disponibiliza na esteira de triagem. Eles entendem que a população colaboraria, se separasse adequadamente os resíduos: “Misturam demais o lixo”; “Poderiam separar o orgânico do inorgânico”. Também afirmam que a população poderia se engajar de forma mais efetiva na coleta seletiva, separando melhor os vidros dos outros resíduos, e “não colocar bicho morto” junto ao lixo orgânico.

Pode-se afirmar que esse grupo tem garantido o direito ao trabalho e com isso o acesso aos serviços essenciais do município, com os encaminhamentos feitos pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Assistência Social. Entretanto, as falas desse grupo explicitam o sentimento de preconceito que observam na sociedade em relação ao trabalho que exercem e o desrespeito dos moradores que “não separam corretamente os resíduos”. Isso pode estar relacionado a um distanciamento dos mesmos em relação à comunidade, pois esses catadores não mantêm relações diretas com a população local. Assim, surgem indicativos de que o grupo apresenta sentimento de exclusão em relação à sua atividade profissional.

Representações ambientais

Todos os operários da UTL relacionaram seu trabalho às questões ambientais: “porque classifica [o lixo] e acaba ajudando”; “Se não tudo ia ser jogado na natureza”; “Tem bastante coisa a ver. Aqui a gente tem que cuidar para não poluir”, “Evitamos muito prejuízo para a natureza. Reciclar papel evita corte de árvore”. Alguns fazem relação direta entre meio ambiente e a questão dos resíduos quando perguntados o que é meio ambiente: “Não jogar lixo na natureza. Cuidar do meio ambiente”; “Árvores, natureza, separar tudo”; “Manter a natureza e o ambiente limpo”.

Quando indagados sobre o que entendem por meio ambiente, todos referem- se à natureza (ar, chão, árvores, rio, mata, solo, pássaros), excluindo o ser humano. Essa visão corrobora com o senso comum em relação ao conceito de ambiente natural ou de natureza intocada, concepção hegemônica que foi difundida socialmente e que possui raízes na ecologia profunda e no pensamento biológico (LENZI, 2006).

As respostas dos operários da UTL indicam que o trabalho com a separação dos resíduos refletiu-se em suas práticas cotidianas, modificando-as. Quatro dos sete entrevistados afirmaram que “Mudou a mentalidade”; “Não separava nada”; “Colocava tudo dentro de um saco de lixo e pronto”. Os outros afirmaram que já separavam. Os sete entrevistados afirmam que reaproveitam resíduos como panelas de pressão, isqueiros, telefones celulares, roupas, brinquedos, calçados, roupa de cama, pratos, copos, talheres, potes e tênis. Todos afirmam reutilizar resíduos orgânicos em hortas, tratando-os por meio da compostagem. Observa-se que, em relação aos catadores individuais, os materiais reaproveitados são de natureza diferente, como veremos adiante.

Para os operários da UTL, a responsabilidade pelo lixo é “da população”, “da comunidade”, “de todo mundo”. Eles observam, no entanto, que a coleta seletiva é um processo não resolvido, pois “quando abrem as sacolas [do lixo que chega das casas dos moradores] é só mistura”; “Uns separam, outros não”; “[A coleta seletiva] não é boa, porque vem tudo misturado”, “Poderia melhorar. Não está como era pra ser”; “É uma boa ideia”. Um dos operários afirma que no seu bairro não há caminhão de coleta seletiva, e outro disse que o caminhão passa todas as noites, o que demonstra que este não reconhece o caminhão da coleta seletiva, confundindo-o com o caminhão da coleta habitual. As falas indicam a desinformação ou desinteresse da população sobre o processo de coleta seletiva de resíduos domésticos, evidenciando que a comunidade continua não os separando adequadamente.

Sobre os problemas ambientais regionais, citam o lixo, o aquecimento global (referindo-se ao “calorão do inverno”) e os efluentes das indústrias jogados no Rio Taquari. Essas respostas apontam para uma relação com as práticas de trabalho, os temas mais midiatizados e os problemas próximos da comunidade (pois citaram uma indústria que atuava no município como poluidora do rio).

Quando questionados sobre o Programa Brasil Joga Limpo (ao qual estão vinculados), apenas dois respondentes afirmaram saber do que se trata. Isso pode indicar possíveis lapsos do discurso da chefia entre os atores envolvidos, uma vez que a coordenadora do projeto mantém reuniões semanais com os operários da UTL, e cinco deles não identificaram a ligação entre as reuniões e a política pública. O mesmo acontece em relação ao Fórum Lixo e Cidadania, evento que também faz parte do Programa Brasil Joga Limpo. Apenas dois respondentes mostraram-se informados a respeito (um sequer lembrava do que se tratava). Esse desconhecimento está relacionado com o fato de o Fórum ter tido seu público-alvo desviado dos catadores para os escolares.10