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COTIDIANO, CONSUMO E PRÁTICAS AMBIENTAIS NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

3 O CONSUMIDOR INSERIDO NA SOCIEDADE DE CONSUMO

Caso se tome por base o pensamento de GARCIA CANCLINI (1999), para quem o consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos, o momento do descarte refere-se ao final do processo do consumo, portanto também explicita em si um uso social, uma derradeira forma de apropriação dos objetos que, paradoxalmente, refere-se à des(apropriação) ou des(uso).

De acordo com ROCHA (2005, p. 02), “o consumo foi convertido no espaço de articulação das distinções sociais, hierarquizadas em termos de uma distribuição diferencial de prestígio”. Na sociedade de consumo vende-se a ideia de que quanto

mais consumir mais status terá o indivíduo, o que está atrelado à ideia de felicidade. Mas, como ressalta PORTILHO (2005), o consumo refere-se também a conflitos e opções políticas relativas ao mundo material, devido às inúmeras necessidades que vão sendo substituídas assim que são satisfeitas, num movimento contínuo. Os profissionais de marketing baseiam-se em estudos das necessidades para desenvolverem produtos que “vendem” a ideia de um conjunto de benefícios que irão satisfazer os consumidores.

Nesse sentido o art. 2º da Lei nº 8.078/90, ou Código de Defesa do Consumidor, identifica o consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que aja intervindo nas relações de consumo.” Esse conceito coloca o consumidor como o receptor e usuário de um produto do qual se apropria, o que se diferencia do conceito de GARCIA CANCLINI, para quem o consumidor não faz apenas uma apropriação material, mas especialmente de cunho simbólico. Portanto, o consumo refere-se a um movimento dialético entre aspectos materiais e simbólicos, em que os consumidores diferem-se entre si.

Segundo KOTLER (1994), autor da área de comunicação e marketing, o que diferencia os consumidores são os atributos que percebem como relevantes ou salientes nos produtos, bem como o valor que dão a cada atributo. O consumidor potencial é aquele que o profissional de marketing identifica como disposto e habilitado a se engajar na troca de valores que lhe é proposta. KOTLER (1994, p. 377) entende que o “produto é algo que pode ser oferecido a um mercado para sua apreciação, aquisição, uso ou consumo para satisfazer a um desejo ou necessidade.” O consumidor, ao deparar-se com um produto ofertado no mercado, estabelece uma escala de preferências entre os bens e os serviços que deseja adquirir, escolhendo os produtos que lhe dão a máxima satisfação. Como há uma diversidade de preferências, os mercados dividem-se em segmentos de consumidores, conforme a especificidade das suas necessidades ou de seus desejos, o que resulta no desenvolvimento de uma grande quantidade de variações de produtos, segundo (KOTLER, 1999)5. Para ele, os desejos referem-se a carências por satisfações específicas a serem atendidas. Embora as necessidades das pessoas sejam poucas, seus desejos são muitos e continuamente são moldados e remoldados.

Esse viés mercadológico para pensar o consumo também é explorado por FEATHERSTONE (1995), para quem a cultura de consumo baseia-se em três pontos: a expansão capitalista de mercadorias com uma vasta acumulação de cultura material na forma de bens e locais de compra e consumo; a mercadoria como criadora de vínculos e distinções; e o consumo como uma referência ao sentimento. A cultura de consumo caracteriza-se pelo valor de troca subjugando o valor de uso. Segundo o autor, a cultura de consumo refere-se ao mundo das mercadorias e à estrutura que advém dela, constituindo-se esses como elementos centrais na sociedade contemporânea. Para além de sua utilidade, os bens são usados para

5 os consumidores são divididos em segmentos, selecionados em função de variáveis (sexo, idade,

renda, escolaridade etc.) que permitem à agência definir as características da mensagem, para que seja compatível com o consumidor-alvo, segundo KoTlER (1994).

comunicarem. BARBOSA (2004) converge com o pensamento de FEATHERSTONE (1995), mas diferencia sociedade de consumo de cultura de consumo. Enquanto a primeira faz referência à sociedade capitalista e de mercado, com a característica acumulação de cultura material sob forma de mercadorias e serviços adquiridos por meio da compra exacerbada e pautado pela moda, a cultura de consumo refere-se à ideologia individualista baseada na liberdade de escolha e no fim da distinção entre alta e baixa cultura, na qual o signo é a mercadoria.

BAUDRILLARD (1995) explora essa relação entre signo e mercadoria ao afirmar que a sociedade de consumo é referenciada na busca da felicidade e igualdade por meio da autorealização obtida por objetos e signos mensuráveis. A intensificação do volume de bens, sob a base da necessidade, geraria um equilíbrio e bem-estar para todos. Já o consumo se realiza pelo homem com suas necessidades, as quais o impelem para objetos, fontes de uma satisfação que nunca se efetiva. O consumo acaba por compor um sistema de valores que implica na integração do homem a um grupo, que passa a controlá-lo de alguma forma. As necessidades seriam desencadeadas mais pelos valores que os objetos representam que pelos próprios objetos, e, portanto, a satisfação seria proveniente dos sentidos implícitos nos objetos.

Essa satisfação pessoal mediada pelos objetos pode ser caracterizada pela personalização, que, segundo LIPOVETSKY (1989), alarga as fronteiras do consumo. Segundo esse autor, se, inicialmente, o consumo serviu à diferenciação, cada vez mais ele é parte de um bem-estar e prazer próprio, caracterizando o individualismo narcisista. Para ele, o consumo de ostentação está deixando de ser o modelo. Em seu lugar surge o consumo atrelado ao conforto. Assim, o autor identifica duas fases da sociedade de consumo: a primeira baseada na idolatria do estilo de vida norte-americano, e a segunda pautada na busca pela qualidade de vida. E, para ele, mesmo com crises de diferentes naturezas (ecológicas, econômicas etc.), o consumo subsistirá por representar a apoteose da sociedade hipermoderna. O aspecto problemático da sociedade de consumo não é esse, segundo LIPOVETSKY (1989), mas sim o fato de ela não incluir todos os indivíduos. Dessa forma ele posiciona-se de modo favorável à sociedade de consumo, criticando o pensamento apocalíptico, que parte do princípio de que a sociedade de consumo é fruto da manipulação publicitária (LIPOVETSKY, 1989).

A partir dos conceitos e posições teóricas apresentados, pode-se entender o consumo como um processo sociocultural que implica em um posicionamento social a partir da apropriação de um objeto (material e/ou não material) pelo que ele representa para seu consumidor, enquanto um posicionamento social permite a aproximação e/ou distanciamento em relação aos valores dos grupos sociais, o que repercute em tensionamentos e conflitos culturais. O consumidor, ao escolher e apropriar-se dos objetos de consumo, coloca-se no papel de receptor ativo do discurso social intrínseco ao objeto. Ao usá-lo, legitima o valor simbólico que o objeto assume para si e para a sociedade, pelos atributos e relevâncias que lhes são dadas, as quais atendem a necessidades de satisfação de diferentes naturezas (fisiológicas, de segurança, de amor e afeição, de estima e ego, de autorealização, de diferenciação, de integração social, de igualdade, de prazer, de felicidade, de bem-

estar, de conforto, de qualidade de vida etc.). O ato de consumir é intrínseco ao ser humano e refere-se a uma forma de inserção social a partir do uso dos objetos, o que movimenta o mercado, instância básica do sistema capitalista.

O consumo é, portanto, um ato de escolha pessoal, mas socialmente situado, que relaciona em si diferentes tipos de responsabilidade: social, política, econômica, ética, cultural, ecológica e comunicacional. Essas responsabilidades relativas ao ato cotidiano e repetitivo do consumo podem ou não ser elemento de construção da cidadania, entendendo-a aqui em seu sentido de exercício de direitos, mas principalmente de deveres de cunho ambiental. A responsabilização pelo consumo representa a construção do sujeito, conforme conceituado por TOURAINE (1992). Emancipatório ou não, o consumo é sempre um elemento de autorrepresentação social e, portanto, de construção da identidade.

A seguir procura-se descrever, a partir de uma realidade local, como se configura o comportamento do cidadão em torno do consumo cotidiano, procurando enfocar os recursos informacionais e quais dimensões as lógicas que os consumidores se utilizam dão a conhecer. O estudo de caso foi realizado no município de Estrela, no Vale do Taquari-RS. As questões fundamentais abordadas foram: Os consumidores percebem os impactos do consumo para o meio ambiente? O consumo pode gerar práticas de cidadania?