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VIOLÊNCIA ESTRUTURAL, CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: ESTUDO COMPARATIVO DOS CATADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS

3 O PAPEL DO ESTADO NA CONSTRUÇÃO DE CIDADANIA

O conceito de cidadania varia conforme o contexto político e social a que se refere. De modo geral, pode-se definir cidadania como “[…] qualidade ou direito de cidadão. E cidadão, como sendo o indivíduo no gozo de seus direitos civis e políticos em um Estado” (GORKZEVSKI, 2005, p. 1283).

Os direitos políticos obtidos no século XIX referem-se à liberdade de associação, de organização política e eleitoral. Os direitos sociais foram conquistados no século XX, principalmente a partir das lutas de classes e influenciados pela teoria marxista e os teóricos socialistas (GORKZEVSKI, 2005). São os direitos relativos à assistência social, saúde, educação, trabalho, entre outros.

A conquista dos direitos não se desenvolve na perspectiva sequencial. Um exemplo é o caso do Brasil, onde, em consequência de uma política assistencialista, os direitos sociais acabaram por ser concedidos antes de alguns direitos políticos e civis, ou então a garantia legal não proporcionou a efetiva obtenção dos direitos. MARSHALL (1967) propunha que deveria existir um certo igualitarismo garantido pelo ente estatal, apesar de afirmar que a cidadania se dá pelos conflitos de classe. Ainda, segundo o autor, a garantia e a universalização da livre e democrática expressão cidadã, mirando a liberdade humana, longe das opressões e injustiças que caracterizam a violência estrutural, dependem de condições outras, objetivas e justas, e não só de simples padrões assistencialistas e ditatoriais do Estado, os quais inibem a participação e criam uma cultura alienante de submissão. Senão, teríamos

[…] um cidadão sem cidadania, dependente do Pai-Estado, que tem o dever de assegurar seus direitos de liberdade, menos o direito de ter liberdade de decidir seu próprio destino. Trata-se do cidadão que só ocupa o lugar de cidadão quando na fila, para exercer seu poder político, que é simplesmente o cínico exercício de votar (GORKZEVSKI, 2005, p. 1284).

O conceito de cidadania vem incorporando outras dimensões e significados decorrentes da complexa dinâmica das relações sociais contemporâneas, principalmente no que tange ao fenômeno da globalização, do capitalismo transnacional e suas consequências. Todo e qualquer exercício de fundamentação teórica e criação de bases para suscitar a discussão de modelos sustentáveis de convívio e desenvolvimento social deve levar em conta o novo contexto. Conforme adverte WALDMAN (2003, p. 554): “uma cidadania autêntica se constrói com base na realidade, até porque não há proposta verdadeira que não seja uma prática real”.

Dessa forma, a construção da cidadania refere-se à busca inquietante por um senso de responsabilidade cívica contextualizada na realidade e que, segundo LOUREIRO (2005), ampare e compreenda as questões humanitárias (gênero, ambiente, minorias, fome, exploração infantil, educação, saúde, entre outros) e avance com a tomada de consciência da limitação do planeta em termos naturais e da eliminação das barreiras entre Estados-nações resultantes dos avanços científicos e tecnológicos.

Resultado das mudanças sociais e políticas contemporâneas, surgem as primeiras intenções de se conceituar a cidadania de uma forma global, planetária ou como “ecocidadania”. Segundo LOUREIRO (2005), a ecocidadania expressa o respeito à ética ecológica e seus desdobramentos no dia a dia, possibilitando a tomada de consciência individual e coletiva das responsabilidades tanto junto às comunidades locais quanto às globais.

Nesse contexto o papel do Estado é de mediador da cidadania, tendo como objetivo atuar direta e conjuntamente na vida dos cidadãos, sendo responsável pelo regramento e desenvolvimento das possibilidades de melhoria nas condições de vida da população, incluindo as condições socioambientais. Dessa forma, caso não cumpra seu papel de mediador de cidadania, estará atuando como promotor de violência estrutural.

Entendendo-se a cidadania como categoria central da democracia, FERREIRA (1993) afirma que a cidadania não é um “em si”, por ter como finalidade a identidade social, já que a identidade social de nada vale sem a efetiva participação das pessoas na vida comunitária, por meio da existência da real mediação entre Estado e Cidadão, perfazendo a finalidade do Estado Democrático de Direito.

A participação social pode se dar em três dimensões: simplesmente por meio das políticas públicas implementadas pelo Estado; da concentração da participação apenas do povo, pelo fortalecimento e desenvolvimento autônomo; ou então por meio do contato com o Estado, buscando um comprometimento de valores recíprocos (SANTOS, 2001). De qualquer modo, o Estado tem a responsabilidade de criar espaços públicos democráticos voltados à articulação e participação popular, nos quais se aclarem os conflitos e confrontam-se as diferenças, garantindo a interação entre a sociedade civil e o poder público, abrindo, assim, espaços nos processos decisórios.

As decisões fruto de participação popular influenciam diretamente nas relações entre os homens, assim como nas relações dos homens com a natureza. Para tanto, há a necessidade de recuperar, mesmo que em parte, a capacidade criativa

e inovadora dos indivíduos, principalmente a energia decorrente da organização social e cultural, fundamento indispensável para a participação direta no processo decisório do desenvolvimento (BECKER, 2002). Esse é um dos objetivos do programa adotado pela Prefeitura Municipal de Estrela, Brasil Joga Limpo, o qual é voltado à complexa problemática socioambiental relacionada ao descarte e reaproveitamento de resíduos sólidos domésticos.

A existência da intervenção do Estado por meio dessa política pública apresenta um cenário ideal para a investigação dos instrumentos de promoção de cidadania adotados e sua repercussão no cenário de violência a que estão submetidos os atores envolvidos. O objetivo da administração municipal de Estrela ao adotar o programa Brasil Joga Limpo é criar uma cooperativa de catadores entre aqueles que hoje labutam na Usina de Tratamento de Lixo.

Por meio do acompanhamento e trabalhos da assistência social vinculado com as demais secretarias municipais, o Poder Público local tem como estratégia criar um vínculo solidário entre os funcionários da Usina. A ideia consiste em que esse vínculo, aliado ao empoderamento dos indivíduos, possa propiciar a criação de uma cooperativa de reciclagem de resíduos sólidos a ser gerenciada pelos próprios funcionários, integrando os demais catadores e o programa de coleta seletiva existente no município.

O objetivo do ente político é, portanto, atuar como mediador entre os sujeitos no processo de desenvolvimento socioambiental local. Seguindo essa lógica, BECKER (2002) explica que mais organização social proporciona condições para participação política; e esta, por sua vez, reflete-se nos padrões diferenciados de desenvolvimento em termos regionais.

Legal e historicamente é o Estado, como instância onipresente na vida dos cidadãos de um país, por meio de suas estruturas, o responsável direto pelo estabelecimento e desenvolvimento das condições de vida da população. Os direitos básicos desses cidadãos, como o acesso à alimentação, educação, segurança e saúde são pelo Estado influenciados, definidos e implementados.

O instrumento de atuação estatal são as políticas públicas. Na concepção contratualista de Estado, as políticas públicas deveriam ser orientadas para arbitrar as tensões sociais, de forma justa, promovendo a igualdade entre os cidadãos e a busca por melhores condições e qualidade de vida.

É por meio das suas políticas públicas que o Estado abre um canal de comunicação, na maioria das vezes unívoco, com a sociedade, demonstrando e praticando sua ideologia, metas e diretrizes, num movimento que interfere e regula o fluxo da vida cotidiana (NETO; MOREIRA, 1999). Ocorre que, no jogo da política, aqueles que possuem os instrumentos mais eficazes de pressão (ou participação) são os com maiores probabilidades de obtenção efetiva da ação do Estado, se comparados àqueles dependentes dessa própria ação para conseguir o mínimo indispensável à sua sobrevivência.

Este ‘poder do Estado’, em torno do qual travam-se (sic) as lutas políticas (ALTHUSSER, 1985), é, ao mesmo tempo, conquistado e assegurado pelas políticas públicas que são, em última instância, instrumentos de mediação responsáveis pela organização de uma determinada sociedade, moldando, elevando, modificando, cristalizando, e/ou desvirtuando a trajetória e as condições de vida de sua população (NETO; MOREIRA, 1999, p. 40).

A Constituição Federal de 1988, consagradora dos direitos sociais e por isso apelidada de Constituição Cidadã, define dispositivos que apontam para a descentralização do poder, conferindo aos Municípios autonomia política e administrativa. A União, os Estados e os Municípios constituem-se nas esferas autônomas formadoras de nossa federação. Do ponto de vista das políticas públicas, a competência legislativa do município é ampliada, atribuindo-lhe novas responsabilidades. “Dotam-se os municípios de recursos tributários, transformando- os em esfera autônoma de governo, submetida à obrigação constitucional específica de fazer política social” (JACOBI, 1996, p. 45). Assim, foi a partir de 1988 que os Estados e Municípios passaram a receber efetivamente mais recursos.

Ou seja, os municípios passaram a assumir responsabilidades que antes estavam condicionadas à União. Porém, tal condição não gera apenas novas possibilidades de incremento de orçamento, mas também novos problemas públicos a serem resolvidos diretamente pelos municípios, por meio de suas políticas públicas. Mesmo diante de um aporte tributário substancial, os Estados e Municípios continuam tendo graves problemas financeiros, com alto endividamento e consequente descumprimento das obrigações mínimas, tornando as transferências negociadas comuns, com o financiamento de programas por meio de valores de fundos de natureza social.

Apesar da ampliação de responsabilidade pelas políticas sociais em âmbito estadual e municipal, trazidas pela Carta Magna de 1988, não houve tão somente o incremento de competências concorrentes, mas também a viabilidade da manutenção de transferências negociadas, por meio das quais a União financia total ou parcialmente ações e serviços prestados por outras instâncias de governo.

Segundo previsão constitucional, carregada de intenção descentralizadora, a responsabilidade pelos serviços essenciais, como educação, saúde, assistência social e meio ambiente, são prioritariamente municipais, em segundo plano, estaduais e, em último estágio, federais, conforme artigo 30, incisos I, II e V da Carta Magna. Dentre esses serviços encontra-se a gestão de resíduos sólidos domiciliares.

Ao aclararmos conceitos, apontando de forma crítica a concepção simplista do conceito de violência estrutural e dinâmica socioestatal, nesta pesquisa pretendemos não apenas aguçar o reconhecimento e a compreensão acerca da violência estrutural, como também apontar possibilidades para sua prevenção, focalizando a avaliação de uma política pública federal desenvolvida na esfera municipal (Programa Brasil Joga Limpo), voltada para o universo dos catadores de resíduos sólidos de Estrela/ RS, enquanto uma das estratégias que possibilitam a melhoria da qualidade de vida e a garantia de seus direitos, tendo como pano de fundo a problemática ambiental envolvida neste contexto e o processo de construção de cidadania.

4 MÉTODO

Para investigar a relação entre violência estrutural, cidadania e políticas públicas, conforme proposto, nos utilizamos da pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva. Inicialmente realizamos um estudo bibliográfico e pesquisa documental e, no trabalho de campo, utilizamos para coleta de dados entrevistas semiestruturadas, as quais foram gravadas. O trabalho de campo foi realizado no município de Estrela entre junho de 2007 a fevereiro de 2008. Após a transcrição, os dados foram tratados por meio da análise de conteúdo de viés qualitativo (BARDIN, 1977). Efetivamos um total de 16 entrevistas em profundidade. Também utilizamos, como técnicas, as observações in loco e conversas informais.

Os quatro grupos de catadores classificados a partir desta pesquisa são os catadores não abrangidos pelo Programa Brasil Joga Limpo (CNP); catadores autônomos abrangidos pelo programa (CAP); catadores que trabalharam na UTL, abrangidos pelo programa (CTU); e ex-catadores que trabalham na Usina de Tratamento de Lixo (UTL). As categorias discursivas analisadas nos quatro grupos foram: meio ambiente, resíduos sólidos, catação, participação comunitária, Programa Brasil Joga Limpo; cidadania e violência estrutural. Para compreendermos melhor essa realidade, vamos contextualizar rapidamente a situação dos resíduos no Brasil e em Estrela/RS.