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Choque cultural e o desafio da adaptação

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A igreja e o contexto brasileiro na perspectiva dos/as pioneiros/as

1 Desenvolvimento e relação da igreja no contexto so cioeconômico, cultural e religoso

1.2 Presença e reação dos/as missionários/as diante dos de safios socioeconômicos e culturais da igreja e do Brasil

1.2.3 Choque cultural e o desafio da adaptação

A adaptação ao novo lar não foi nada fácil para os/as missionários/as, e muito menos para seus/suas filhos/as. Nesta parte do trabalho vamos descrever como as famílias estrangei- ras de fundadores da ICPB lidavam com as diferenças sociais e culturais do país.

Numa correspondência de setembro de 1948, Horace e Carolyn Ward decidiram tomar uma decisão que entendemos ser uma forma de lidar com o choque cultural. Eles colocaram seus filhos Duteil e Junior em uma escola para filhos de missionários, em Fortaleza, CE, que ensinava conforme o conceituado sistema Calvert, um dos melhores do EUA, e que segundo eles, garantia uma educação saudável e baseada nos princípios cristãos. O custo por pessoa era de trinta dólares mensais.239

Os longos períodos de estiagem e os problemas decorrentes foram também alvo de pre- ocupação, conforme relatado na carta que os Miller enviaram em março de 1949: “Há uma grande necessidade de chuva por aqui. As coisas estão morrendo pela falta de chuva. Os pre- ços ainda estão aumentando. Muita gente está sem trabalho. Mas a maior necessidade é pela chuva espiritual do céu. Ore conosco pela necessidade desse povo.”240 Nesta fala percebemos

uma classificação de prioridades, em que a necessidade de chuva é patente, porém, a “chuva do céu”, em termos soteriológicos, é mais necessária. Há também uma tendência recorrente nos textos para compreender os desafios do trabalho missionário e os problemas enfrentados como a ação de Satanás em contrapartida à “obra de Deus”.241

As camas brasileiras, a culinária e acomodações nem sempre correspondiam às expecta- tivas. Rachel e Miller compraram uma cama americana e assim estavam dormindo melhor. Também adquiriram um forno onde ela assou duas típicas “apple pies”, um alimento raro de

237 THE PENTECOSTAL WITNESS. Fevereiro de 1957, p. 5 238 Idem. Março de 1957, p. 4

239 Idem. Setembro de 1948, p. 13 240 Idem. (Aprox. Abril) de1949, p. 12 241 Ibidem.

ser preparado, tendo em vista que cada maçã custava 60 cents.242 Para escrever as cartas, usa- vam a luz do lampião.243

Russel Frew, recém chegado – e claramente incomodado – reclamou das más condições para “Americans” que o lugar oferecia, estando alojados numa casa de 5 cômodos com quar- tos muito pequenos e o incovenciente de mosquitos. A energia elétrica não estava funcionan- do e a água, de difícil acesso, era trazida por um garoto de 11 anos. A comida era pouco nutri- tiva, necessitando acrescentar vitaminas para as crianças. A pobreza da região causava estra- nheza aos/as missionários/as. E para enfrentar o sol, Frew teve que comprar um chapéu. Não seria tão estranho se não fosse janeiro, época do inverno no hemisfério norte.244

Annie Frew ensinava às crianças dos missionários o que aprendia do português. Joanna Frew, filha dos missionários, desejava ir à escola como as outras crianças, mas Annie Frew a ensinava tanto quanto a seu irmão quando tinha tempo. Frew pedia oração por suas crianças por estarem o tempo todo expostas a diversas doenças e à falta de moralidade.245 Annie estava tomando aulas de acordeon e ganharam um do missionário Harland Graham, pois como disse- ram na carta: “Nós precisamos de música na igreja e pedimos suas orações nesse sentido.”246 Poucos meses depois as crianças seriam introduzidas na escola.247

Ela e os filhos também expressavam preocupação com a fome da região e promoviam pequenos atos de compaixão, associados ao evangelismo:

É raro um dia passar sem que a Irmã Frew ou as crianças deem comida aos famintos que pedem comida. Recentemente nós começamos a envolver os pães e frutas e folhetos evangelísticos. Isto é apenas um pouco da história que podemos contar. Esta nação tanto é faminta por comida espiritual quanto natural.248

Mais episódios de intolerância aconteceram, interpretados como ações do “inimigo” contra a Obra de Deus, mas diante das quais, por vezes, os missionários demonstravam ma- neiras positivas e talvez humoradas de lidar:

Durante o tempo da Páscoa, parecia que alguns vizinhos católicos queriam fazer um Judas do pastor-missionário. Nós tivemos duas semanas de cultos de oração, cedo pela manhã, e pareciam estar acusando o “Americano” por ter trazido “aquela religião barulhenta” para o Brasil. Um dos homens agiu asperamente e começou a fazer amaeaças, mas os crentes garantiram que o missionário não se machucasse. [...] Os vizinhos do homem usavam palavras

242 THE PENTECOSTAL WITNESS. Junho de 1952, p. 6 243 Idem. Dezembro de 1952, p. 6

244 Idem. Abril de 1953, p. 7

245 Idem. Maio ou Junho de 1954, p. 2 246 Ibidem.

247 Idem. Outubro de 1954, p. 3 248 Idem. Julho de 1953, p. 5

pesadas contra mim, mas a coisa mais divertida (agora) é que eu não entendi nada do que disseram.249

A perseguição religiosa e a influência “do mundo” foram vistos como obstáculos à igre- ja. Miller expressou tristeza pela perseguição em Usina de Nossa Sra. do Carmo, onde tam- bém “dois crentes se desviaram durante os dias da festa anual do carnaval Brasileiro”.250

Mais alguns detalhes sobre a situação econômica brasileira ficam evidentes quando os Frew compraram o carro de Miller que voltara aos EUA na intenção de depois poderem troca- lo por um carro mais potente para a região, mas achavam que dificilmente encontrariam, por- que os preços subiam cada dia mais.251

O quadro de saúde de Annie Frew, então gestante, estava um pouco mais grave no final de 1955. Isso só os forçou a se mudarem para mais perto do litoral, a saber, Natal, RN, onde tratamentos como transfusão sanguínea eram mais acessíveis.252 Nessa cidade o terceiro filho dos Frew, Gary, nasceu. Esteve ao lado dela a irmã Hazel Graham, que lhe deu suporte e auxí- lio nos últimos dias de gravidez e no pós parto.253 O casal Graham evangelizava através de uma tenda e um programa diário de rádio.

A ocorrência de mortalidade infantil fica evidente na preocupação de Annie Frew com seu bebê, bem como algo de sua teologia:

O bebê é como um raio de sol em nossa casa [...]. Nós somos gratos a Deus por mantê-lo bem e forte durante esses meses primeiros meses e meio. Quando vemos muitos bebês morrendo ao nosso redor, isso nos faz ter certe- za de que as mãos protetoras de Deus estão sobre nossas crianças durante nossa estadia no Brasil. Estou achando que aqui é muito mais difícil cuidar de um bebê dos nos EUA [...]254

Mais uma pincelada no quadro geral da visão que os/as missionários/as tinham do cená- rio brasileiro é dada em 1956, ano em que Juscelino Kubstchek tomou posse da presidência:

O Brasil, em geral, está passando por uma crise nacional. Politicamente, os governos federal, estadual e municipal estão indecisos e o povo insatisfeito. Os preços estão saindo do controle. No primeiro dia deste mês, os serviços postais tiveram um grande aumento... mais de 400%. O preço de enviar uma carta para os Estados Unidos triplicou. É muito difícil para as pessoas po- bres, especialmente para os que vivem em outros estados. Um grande núme- ro de obreiros vindos de vários estados esteve em nossa casa nessas últimas semanas e a conversa sempre se conduzia para as atuais condições... quantas famílias estão sofrendo com a falta de comida e roupas, etc.255

249 THE PENTECOSTAL WITNESS. Maio ou Junho de 1954, p. 2 250 Idem. (Aprox. Abril) de 1949, p. 12

251 Idem. Outubro de 1954, p. 3 252 Idem. Dezembro de 1955, p. 4-5 253 Idem. Fevereiro de 1956, p. 3 254 Idem. Maio de 1956, p. 4 255 Idem. Junho de 1956, p. 4

Horace Ward, uma vez mais no Brasil, visitou os trabalhos no Paraná e São Paulo. No Paraná, estranhou o fato deles tomarem café da manhã muito cedo, e por isso ser necessário fazerem seis refeições ao dia. Quiseram presenteá-lo com ovos, uma vez que ele manifestou bom apetite ao come-los. Ward disse que as pessoas tinham facilidade em perceber seus gos- tos, mas, na verdade, gostava mesmo era de tudo que era bom.256

Sem carro, tinha que viajar muito a pé (cerca de 40 quilômetros num período curto), ne- cessitando parar após alguns longos períodos sem água, e nem sempre conseguia chegar a tempo de participar dos cultos porque a dor dos pés, juntas ou ossos não lhe permitia cami- nhar mais. Sugeriu que o uso de um carro como um jeep, que custava cerca de três mil dóla- res, resolveria muitos problemas. Passou assim por Jardim, Ceará e por Garanhuns.

Grimm comenta, no subtítulo Feeding the Poor sobre a necessidade que sentiu de ali- mentar os famintos, e isso dá pistas das formas de assistência social da igreja na época, bem como a concepção teológica que permeava esta prática:

Nós estamos vivendo aqui entre pobres e necessitados. Naturalmente, nós pregamos o evangelho para eles, sentimos que eles deveriam ter alguma co- mida para seus corpos naturais. Nós também deveríamos tentar ajudar a ves- tí-los, o quanto antes seja possível.

O Senhor tocou o coração do meu cunhado mais novo, que vive em Toronto, Canadá, e é membro da German Pentecostal Church em Toronto e nos envi- ou 52 dólares para comprar comida e dar aos pobres.

Nós embarcamos em nosso barco e fomos à cidade para comprar comida. Nós compramos vários sacos de feijão, a principal comida aqui, alguma gor- dura e outros alimentos. Você não pode imaginar a gratidão das pessoas que recebem o alimento. Mulheres abandonadas pelos maridos, idosos e doentes, desempregados e deficientes. Os tempos aqui estão cada vez mais difíceis. Pobreza e miséria são grandes. Muitas pessoas estão desesperadas e olham para o rosto faminto de suas crianças e não têm nada com que alimentá-las. Nós estamos tentando trabalhar num programa regular de assistência para ajudar aos pobres e necessitados.257

As ocasiões festivas e típicas do calendário nordestino e brasileiro em geral também re- ceberam atenção dos/as missionários/as estrangeiros. A começar por uma festa regional:

O tempo de junho é o tempo em que os Católicos Brasileiros celebram o dia de São João. Esta é uma parte da religião deles e eles realmente a demons- tram. As bombinhas que eu tenho certeza que vocês já escutaram [...]. Todos os que creem que o santo irá fazer o bem para eles fazem uma fogueira em frente as suas casas. Todas estão repletas de fogueiras. [...] Eles também ce- lebram o dia de São Pedro quase da mesma maneira, poucos dias depois.258

256 THE PENTECOSTAL WITNESS. Janeiro de 1959, p. 5 257 THE WITNESS AND MESSENGER. Setembro de 1963, p. 5 258 THE PENTECOSTAL WITNESS. Agosto de 1953, p. 6

Elas eram vistas como empecilhos à obra de evangelização. Não obstante, ás vezes era possível obter sucesso: “Três almas vieram para Cristo apesar de que o Carnaval Brasileiro estava acontecendo. Eu não posso explicar a quantidade de maldade, diabolicidade e pecado que esses três dias de “reino da carne” produz, mas os “poderes das trevas” de repente se mos- tram sem dúvida.”259

A percepção de Ward sobre a cultura e religiosidade popular aparece em sua descrição do carnaval de 1960, que há pouco terminara:

O Carnaval é uma celebração semi-religiosa e se situa logo antes do tempo Quaresmal. As pessoas se voltam para soltar a carne para uma aventura final antes de se aquietarem para a Quaresma. Oh, que tipo de religião essa que oferece oferece ao homem tão pouco poder espiritual e tão pequeno espírito cristão que antecipa a a comemoração do sofrimento de Cristo para o Carna- val no qual a carnalidade e o pecado são rampantes. Essas são pessoas cegas pelas forças do pecado e da religião morta. Essas são as pessoas que quere- mos salvar.260

Em contraponto às festas regionais da cultura e religião popular, as igrejas pentecostais também faziam “festas” várias vezes ao ano. Fazia-se dessas festas ocasião para evangelismo e culto.261 Uma que vale a pena mencionar é a de fim de ano em que aparece o contraste da cultura norte-americana e a brasileira. Os choques culturais, bastante presentes, já são vistos com positividade:

Ambos os Frew e nós [os Miller] tivemos uma maravilhoso tempo de Natal. As crianças ganharam brinquedos, doces e boa comida; e nós os mais velhos não sentimos falta de nada, a não ser silêncio e descanso. Nós esperávamos que passaríamos um dia só nosso, mas havíamos esquecido de contar com os brasileiros que gostam de visitar, e nós tivemos duas famílias não esperadas durante o dia, ou melhor até depois da hora do jantar. Talvez isso tenha feito o Natal mais natural, afinal de contas, nós compartilhamos com outras pes- soas. Irmã Annie cozinhou um bolo de frutas e nós tomamos parte dele. Nós também encontramos cereais de milho em Recife [...] e como fui ao Recife eu peguei uma caixa e dei aos Frew de presente de Natal. Esta foi a primeira [...] que eu e meus filhos tivemos em 31 meses.262

No ano 1960 Horace Ward planejava expandir a missão para o sul do Paraná, e também para Brasília, a nova capital do Brasil, a qual descreveu com entusiasmo, mas não via ação evangélica muito presente na região:

Eu acabei de retornar de Brasília, a nova capital do Brasil, e eu quase me ar- rependi de ter ido. Não, eu não estou desapontado com a cidade. Ela é uma das mais perfeitas cidades planejadas que eu conheço, e mostra o que pode

259 THE PENTECOSTAL WITNESS. Março de 1952, p. 1. 260 THE WITNESS AND MESSENGER. Fevereiro de 1960, p. 5 261 THE PENTECOSTAL WITNESS. Janeiro de 1954, p. 5 262 Idem. Fevereiro de 1954, p. 6

ser feito quando um homem para para fazer alguma coisa. Talvez essa seja uma das coisas mais maravilhosas do mundo hoje. Eu fiquei quase boquia- berto em ver a cidade, e com esta parte eu fiquei feliz.

O que fez meu coração doer foi ver o quão rápido as coisas são construídas e quase nenhum trabalho evangélico indo adiante por lá. Eu fui informado que lá haverá seis Cidades Satélites ao redor da capital. Pessoas estão se mudan- do aos milhares para lá, vindas de todo o Brasil.263

Sua preocupação se baseava nos planos e ações de colegas pentecostais como Virgil Smith e Edward Munday que já estavam atuando na região.

Uma perspectiva diferente vale igualmente para esta análise. Em visita aos Estados Unidos, José Pinto de Oliveira logo percebeu as diferenças na forma com que se conduzia a religiosidade:

Uma das coisas que gostei de ver no povo ali é o espirito de liberalidade para contribuir, para ver o trabalho progredir e o trato dos seus obreiros.[...] Não posso dizer ao certo quantas almas consegui ganhar para Jesus, porque o sistema deles ali é um tanto diferente do nosso, mas, em quase todos os cul- tos, tinham pessoas que chegavam para oração e alguns irmãos foram bati- zados com o Espirito Sento. Creio que Deus se serviu de minha visita para alguma coisa útil, seja para a Igreja na outra América.264

1.3 Relação com outras igrejas, grupos ou movimentos religio-

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