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4 HUMOR, LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL E CIDADANIA

4.2 CIDADANIA NA EDUCAÇÃO PÓS CF/

O modo pelo qual a educação formal proporciona um preparo para o exercício da cidadania se constitui de temática de elevada complexidade que não se constitui objetivo dessa tese. No entanto, a contribuição de alguns estudos aponta para um cenário ainda por ser desbravado de como integrar a cidadania nas práticas pedagógicas com maior concretude.

José Sérgio de Carvalho (2002b) em seu instigante artigo "Podem a ética e a cidadania ser ensinadas?" menciona que, ao apresentar tal texto a professores do ensino fundamental e médio, foi questionado da seguinte forma: quais valores éticos a serem considerados como metas das instituições educacionais? como escolhê-los tendo em vista a multiplicidade de visões éticas? e que ações seriam consideradas incompatíveis com esses princípios?

excessivamente abstrata, o que torna fácil ignorá-la. A renovação de currículo é apontada como uma ação esperada:

Não é raro que discursos ligados a essas preocupações apontem para uma suposta crise de valores que caracterizaria nossa sociedade e para a exigência de que renovemos nossas práticas escolares e nosso currículo, de forma a priorizar e enfatizar essas metas, frequentemente tidas como secundárias ou inexistentes em épocas passadas. Assim, por exemplo, fala- se de uma "escola tradicional" cuja principal preocupação teria sido não com a formação, mas com a transmissão de informações. (CARVALHO, 2002b, p.158)

As questões acima suscitadas pelos professores de ensino médio e fundamental expressam a dificuldade de se operacionalizar a cidadania, o que também se verificou pelos discursos de docentes realizados na dissertação de mestrado que realizei. Em Lamóglia (2006), encontra-se a pesquisa a respeito da concepção de cidadania presente na educação superior de uma instituição de ensino, com entrevistas de docentes e discentes.

Nota-se, nessas passagens exemplificativas, que a formação para a cidadania pela escola carece de planos, objetivos, metas e de operacionalização. Cidadania e liberdade de expressão são conceitos intimamente relacionados, e o humor se apresenta como uma possibilidade pouco aproveitada tanto na condição de recurso técnico-didático, quanto na possibilidade de representar um direito que manifesta o exercício da liberdade de expressão.

O saber escolar, no que se refere à construção da cidadania, ficou à mercê da racionalidade ao trazer amarras consistentes relativas aos planos de se preparar estudantes para o mundo do trabalho. Nota-se nas análises legislativas que a cidadania está presente nos discursos, mas é ignorada na operacionalização.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um novo marco legislativo na História brasileira, o mais recente deles e vigente até o tempo presente. Após as eleições diretas de 1985 o grito da libertação social do período de ditadura militar resultou em uma série de dispositivos legais que estabelecem limites à atuação do Estado, como se lê no artigo 5º da Magna Carta. Nele constam os direitos e garantias individuais e reafirmam-se, muitas vezes com notada redundância, a liberdade de expressão, a proibição de censura e outros direitos relativos à defesa da democracia.

A educação também foi recepcionada na Lei Fundamental de 1988, tendo uma base de três pilares que orientam o seu objetivo, previsto na seguinte ordem: preparar para o pleno desenvolvimento da pessoa, para exercer a cidadania e qualificar para o trabalho. É evidente que o modo pelo qual a escola busca atingir esses objetivos contempla ações educativas diversas, de tal complexidade que nem

sempre é possível identificar e categorizar de modo inequívoco o que se refere ao desenvolvimento pleno da pessoa, o que envolve a formação para a cidadania e a qualificação para o trabalho. Isso porque em toda ação educativa podem existir conteúdos ministrados de modo a estimular a autonomia ou a alienação, a cidadania ou a estadania, o enfrentamento ou a submissão.

O cerne da discussão de que trata a análise legislativa do preceito de cidadania é a ordem em que o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 propôs os três objetivos da educação. Além disso, não menos importante, funda-se a discussão no fato de que a formação para a cidadania é prevista antes de se estabelecer a qualificação para o trabalho. A ordem dos objetivos previstos tem um fundamento e uma intencionalidade.

Para se estudar essa característica depreciativa da cidadania nas políticas públicas, cumpre-se estabelecer o que se compreende por políticas públicas, concepção que considera a visão de Bernardo (2001):

As políticas públicas são a forma mais visível da operação concreta do interesse coletivo, com suas diferenciações e segmentações internas. Elas expressam escolhas diante das alternativas diferentes ou conflitantes de aplicação dos recursos públicos. Constituem-se de escolhas, decisão e implementação de ações. As formas atuais dessa operação são influenciadas pelas mudanças de várias ordens no Estado e pelo surgimento e crescimento de novos atores e dinâmicas públicas na sociedade, que interferem em níveis de atuação antes vistos como área autônoma dos governos. (BERNARDO, 2001, p.48)

Soma-se a essa visão a contribuição de Boneti (2003b, p.19), que compreende as políticas públicas como “[...] a ação que nasce do contexto social, mas que passa pela esfera estatal como uma decisão de intervenção pública numa realidade social determinada, quer seja ela econômica ou social”. A esse entendimento, o autor acrescenta que as políticas públicas representam:

[...] o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações de poder, relações estas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil. (BONETI, 2003b. p.20)

Estabelecido o entendimento conceitual das políticas públicas a partir dos referenciais citados, traz-se uma consideração relativa ao modo pelo qual muitas investigações científicas vêm sendo conduzidas nesse âmbito, carregadas de juízos de valor depreciativos. Até mesmo na academia, seara onde os interesses científicos em tese deveriam prevalecer, verifica-se uma ampla gama de estudos norteados por disputas de poder, tal qual se verifica no âmbito das disputas de classe das quais resulta o Estado. Nesse sentido:

O problema diz respeito ao uso de rótulos que muitos estudos continuam dando às políticas públicas no Brasil, em especial às políticas sociais. Ainda muito influenciadas por uma visão de que o Brasil é, por excelência o território de fenômenos como clientelismo, paroquialismo, patrimonialismo e outros tantos “ismos”, todos pouco lisonjeiros, muitas análises continuam sendo norteadas por eles. No entanto, e até onde tenho conhecimento, não temos respostas empírica e teoricamente embasadas de como esses rótulos, se de fato existem, se manifestam e quais suas consequências para as políticas públicas. (SOUZA, 2003, p.18)

O papel da escola na formação de cidadãos está se perdendo nas políticas públicas. E a educação para a cidadania padece por existir uma valorização de todos os processos educacionais voltados à qualificação para o trabalho, com uma crescente valorização da racionalidade e menor espaço de discussão da autonomia, da liberdade de expressão. Também há um processo crescente de repressão à alteridade, à individualidade do ser, à empatia e à cooperação, com forte apoio ao individualismo, ao egocentrismo, à competição e à meritocracia escolar. Numa racionalidade perpetrada institucionalmente pelas escolas, disciplinar, ordenar, organizar e commoditizar os alunos parece ser uma solução mais simplista do que educar para a autonomia e para a criticidade.

O direito à educação é um dos elementos da cidadania, considerado por Marshall (1967) como “social”. A análise que se faz das principais políticas públicas educacionais posteriores à Constituição Federal de 1988 recai sobre a perda de espaço da formação para o exercício da cidadania, com crescente incentivo ao reforço da condição do estudante consumidor e de ingressante no mundo do trabalho.

A cidadania não possui um conceito estático, como já foi mencionado, pois nela se condensam lutas de classes e uma construção espacial e temporal. A cidadania, no Direito Constitucional, é um conceito normalmente empregado para designar o exercício dos direitos políticos, em especial, a capacidade jurídica para votar e ser votado, bem como também se refere a questões que definem a nacionalidade:

Pode-se dizer, então, que a cidadania se adquire com a obtenção da qualidade de eleitor, que documentalmente se manifesta na posse do título de eleitor válido. O eleitor é cidadão, titular da cidadania, embora nem sempre possa exercer todos os direitos políticos. É que o gozo integral destes dependem do preenchimento de condições que só gradativamente se incorporam no cidadão. (SILVA, 2003, p.346)

O vocábulo “cidadania” é encontrado sete vezes na Constituição Federal de 1988. Logo no inciso II do art.1º, ela é citada como fundamento da República. A maior parte das menções à cidadania na Lei Maior tratam dos direitos políticos; no

entanto, quando tratada na condição de fundamento, tem um sentido mais amplo:

A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art.5º, LXXVII). Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular. (SILVA, 2003, p.104)

O artigo 5º da Magna Carta é considerado uma cláusula pétrea, ou seja, seus incisos não podem ter supressão de direitos por emendas constitucionais, e nesse artigo há duas menções da palavra “cidadania”. Numa delas, a cidadania é mencionada num remédio constitucional, o mandado de injunção (inciso LXXI); em outra, trata da gratuidade deste e de outros remédios (LXXVII). Em outra menção do vocábulo “cidadania” na Constituição Federal, é referenciada a competência da União para legislar privativamente sobre nacionalidade, naturalização e cidadania (art.22, XII). Nos artigos 62, §1º, I “a” e no artigo 68, § 1º II, a cidadania é mencionada enquanto direito político, com a vedação expressa de ser tratada via medida provisória.

No artigo 205 da Lei Fundamental, a cidadania é trazida entre um dos objetivos da educação. É estabelecido, nesse artigo, que a educação visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). A ordem dos objetivos materializa uma redação legislativa precisa e intencional. Não há uma ordem aleatória, mas uma sequência designada numa hierarquia de valores, pois a sistematização presente ao longo de toda a Constituição conduz a uma compreensão, a uma lógica a ser observada. Ruy Barbosa, jurisconsulto que escreveu a respeito da técnica redacional legislativa, assim considera:

Não há palavras ociosas ou demasia de expressão, nesse exaustivo esforço por traduzir em concisa linguagem o esboço constitucional, deveras impecável, assim no vernáculo que o revestiu, como na ortodoxia doutrinária em que foi vazado. (BARBOSA, 1946, p.24)

A proposição de Barbosa (1946) aponta para a análise do modo pelo qual a cidadania vem sendo construída ou desconstruída nas políticas públicas educacionais. Os três objetivos da educação previstos na Constituição refletem uma ordem valorativa, sendo que o desenvolvimento pleno da pessoa precede o preparo para o exercício da cidadania e, em seguida, é referenciada a qualificação para o trabalho.

Tomando-se uma das principais legislações educacionais, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei no 9.394/1996 (LDBEN/96), encontra- se, utilizando o recurso de contagem de palavras, cinco ocorrências da palavra

“cidadania”, das quais apenas três permanecem vigentes. As duas ocorrências revogadas traziam a expressão “exercício da cidadania”. Uma das supressões decorre da Lei n.11.684/2008, que revogou o inciso III do §1º do artigo 36 da LDBEN/1996. O fragmento revogado é o seguinte: "Art.36, §1º, III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania" (BRASIL, 1996).

A outra revogação, promovida pela Lei 13.415/2017, eliminou a cidadania que constava do inciso I do artigo 36 da LDBEN/1996, que traz determinações referentes ao currículo do ensino médio e à Base Nacional Comum Curricular:

Art.36. I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania. (BRASIL, 1996)

Enfrentadas as revogações que importaram na supressão da cidadania na LDBEN/1996, passa-se a analisar as ocorrências vigentes. No artigo 2º da lei transcreve-se o texto do caput do artigo 205 da Magna Carta, com os objetivos da educação, entre eles, o do preparo para o exercício da cidadania, na mesma ordem:

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1996)

No artigo 22 da LDBEN/1996, a cidadania é mencionada como relacionada ao exercício da cidadania Em seguida, há a previsão de fornecimento de meios para progressão no trabalho:

Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. (BRASIL, 1996)

Ao tratar do ensino médio, verifica-se uma inversão dos parâmetros Constitucionais, destacando a prevalência do preparo para o trabalho primeiramente e, em seguida, para a cidadania:

Art.35

II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; (BRASIL, 1996)

não se referem ao emprego no sentido buscado de formação para exercício da cidadania, mas apenas para referir o indivíduo dotado de direitos políticos. Por esta razão não se considera cidadão e cidadania como equivalentes nas contagens realizadas. A única exceção recai sobre o artigo 32 da lei, que traz o vocábulo “cidadão” no sentido da cidadania, prevendo o seu preparo no ensino fundamental.

Os parâmetros Curriculares Nacionais (PCN/1997) também são analisados dentro da mesma temática. Nele, a palavra “cidadania” é contada 33 vezes, tendo inclusive um capítulo chamado “Escola e constituição da cidadania”. A palavra “trabalho”, no sentido de mundo do trabalho é referida 12 vezes no documento. Não foram contadas as palavras “trabalho” enquanto sinônimo de atividade ou que não guardasse relação com o ambiente laboral. Os PCN/1997 transpiram cidadania, como se nota da leitura do primeiro objetivo do ensino fundamental:

O conjunto das proposições aqui expressas responde à necessidade de referenciais a partir dos quais o sistema educacional do País se organize, a fim de garantir que, respeitadas as diversidades culturais, regionais, étnicas, religiosas e políticas que atravessam uma sociedade múltipla, estratificada e complexa, a educação possa atuar, decisivamente, no processo de construção da cidadania, tendo como meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos, baseado nos princípios democráticos. Essa igualdade implica necessariamente o acesso à totalidade dos bens públicos, entre os quais o conjunto dos conhecimentos socialmente relevantes. (BRASIL, PCN/97, p.13)

Num sentido de harmonia com o previsto na Constituição Federal de 1988, os PCN/1997 preconizaram uma educação comprometida com a construção da cidadania, mas o mesmo não se verifica em políticas públicas educacionais, a exemplo do Plano Nacional de Educação (PNE/2014), instituído pela Lei 13.005/2014. Nesta lei foram aprovadas diretrizes, estratégias e metas da educação, bem como estão previstos objetivos a serem atingidos até 2024. O vocábulo “cidadania” é contado três vezes no documento. Logo no artigo 2º, nota-se a inversão da sequência − qualificação para o trabalho − em primeiro lugar, seguida da formação para a cidadania: “Art.2º. V - formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade.” (BRASIL, PNE, 2014).

A inversão não é acidental. Ao longo de todo o documento é perceptível o emprego de expressões que referendam a técnica redacional que subverte a ordem prevista na Constituição Federal de 1988. Na estratégia 10.6, o “mundo do trabalho” é enaltecido: “estimular a diversificação curricular da educação de jovens e adultos, articulando a formação básica e a preparação para o mundo do trabalho [...]” (BRASIL, 2014).

Seguindo a mesma direção da racionalidade a serviço de uma classe dominante que impõe a modernidade e o modo de produção capitalista instruindo a

escola como fábrica de trabalhadores e não de cidadãos, sobrevém a medida provisória (MP) 746/2016, posteriormente convertida na Lei 13.415/2017. Logo na exposição de motivos da medida provisória, é tecida uma crítica às disciplinas que não contribuem para o mundo do trabalho e que essa impropriedade carece de correção, por prejudicar os interesses da modernidade:

13. Isso é reflexo de um modelo prejudicial que não favorece a aprendizagem e induz os estudantes a não desenvolverem suas habilidades e competências, pois são forçados a cursar, no mínimo, treze disciplinas obrigatórias que não são alinhadas ao mundo do trabalho, situação esta que, aliada a diversas outras medidas, esta proposta visa corrigir, sendo notória, portanto, a relevância da alteração legislativa. (BRASIL, 2016)

O inciso I do artigo 36 da LDBEN/1996 que foi revogado, já mencionado anteriormente, previa a compreensão do significado da ciência, acesso ao conhecimento e o exercício da cidadania, entre outros. Com a Lei 13.415/2017, que instituiu a reforma do ensino médio, o inciso se refere apenas a “linguagens e suas tecnologias” (BRASIL, Lei 9.394/96).

Ao se analisar a Lei 13.415/2017, a cidadania foi reduzida a zero na contagem. No portal do Ministério da Educação foi tratada a mudança estrutural do ensino médio com foco na formação de profissionais, sem que houvesse qualquer menção à cidadania:

A reforma do ensino médio é uma mudança na estrutura do sistema atual do ensino médio. [...] Com isso, o ensino médio aproximará ainda mais a escola da realidade dos estudantes à luz das novas demandas profissionais do mercado de trabalho. E, sobretudo, permitirá que cada um siga o caminho de suas vocações e sonhos, seja para seguir os estudos no nível superior, seja para entrar no mundo do trabalho. (BRASIL, 2017b)

A LDBEN/1996 sofreu diversas alterações desde a sua concepção inicial. Com a Lei 13.415/2017, encontram-se apenas três ocorrências da palavra “cidadania” e 33 vezes o vocábulo “trabalho”, sendo a maior parte dos empregos se referindo ao mundo do trabalho e ao mercado. Numa passagem discreta da reforma do ensino médio, inseriu-se o § 7º ao artigo 35 com a previsão de uma valorização do mundo da vida:

§ 7º Os currículos do ensino médio deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais.” (BRASIL, 2017a).

Compreende-se que a inversão da ordem dos preceitos de uma educação que forme cidadãos e qualifique para o trabalho é prejudicial para uma educação libertadora, que promova a autonomia e a criticidade. Uma educação que desestrutura a formação para o exercício da cidadania acaba por reprimir a

liberdade de expressão, por esta não interessar a uma qualificação que vise apenas à reprodução de saberes, à capacitação de estudantes para o mundo do trabalho. E o humor, nesse compasso, pode ser notado como uma expressão da liberdade que perde espaço, pois ele é tido como subversivo, contestatório, perturbador e questionador. A modernidade se serve caprichosamente de uma educação voltada aos interesse da classe dominante: “Novamente, a educação está a serviço do capital, com políticas implementadas decorrentes dos processos de reestruturação e manutenção do sistema capitalista.” (SALOMÉ; CARVALHO; SOARES, 2017, p.91).

No mesmo sentido de todos os instrumentos da orquestra, a avaliação de conteúdos aprendidos obedece aos mesmos princípios que valorizam a modernidade na LDBEN/1996, ao prever que o aluno, ao final do ensino médio, demonstre: “Art.35, § 8º: “I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna;”

No ano de 2017 foi instituída pela Resolução n.2 do Conselho Nacional de Educação a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Na resolução constam 8 vezes a palavra “cidadania” e 9 vezes “trabalho”, considerando o sentido desta relacionado ao mundo do trabalho e qualificação profissional. Nas 468 páginas da BNCC, há 38 menções da palavra “cidadania” e 98 do vocábulo “trabalho”, sendo que 57 desses 98 se referem especificamente ao mundo do trabalho e à qualificação laboral. A expressão “mundo do trabalho” ocorreu 21 vezes, sendo quase metade delas, 9 vezes, referidas em títulos de unidades temáticas da disciplina de geografia. Os interesses que subsidiam a depreciação da cidadania possuem sustentação política, que representa os grupos que visam perpetuar a condição de dominação. Diversas organizações não governamentais mantidas por instituições financeiras e empresas privadas contribuíram nesse sentido:

Ao consultar a página eletrônica do Movimento pela BNCC, observa se que se destacam entre os defensores dessa iniciativa fundações e organizações não governamentais mantidas por bancos e por empresas, pessoas ligadas ao sistema de avaliação e associações de gestores em diferentes níveis. (SANTOS & DINIZ PEREIRA, 2016, p.287)

Os interesses do mundo do trabalho conduzem para uma constante e gradativa depreciação da cidadania na escola. Quando a Magna Carta estabeleceu o compromisso da educação com a construção da cidadania, não deixou de contemplar o importante objetivo de qualificar os estudantes para o trabalho; no