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4 HUMOR, LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL E CIDADANIA

4.5 HUMOR NOS MONASTÉRIOS

Aparentemente o humor e o riso já eram compreendidos desde Platão (428 - 348 a.C.) como distrações capazes de perturbar estados de equilíbrio ambiental que exigem harmonia. Há uma aparente contradição entre harmonia e desenvolvimento: desenvolver traz uma junção entre o prefixo “des” e o vocábulo “envolver”, o que convida para se distanciar daquilo que nos envolve para a busca do novo. A tendência natural humana parece se inspirar na física, em que tudo tende a níveis menores de energia. A água da cachoeira desce ao invés de subir a encosta da montanha, porque embaixo, a energia potencial gravitacional é menor do que ao

alto. As zonas de conforto tendem a ser escolhas humanas de menores níveis de energia, portanto, mais confortáveis. Mudar exige esforço e esforço é energia.

O humor, em algumas situações, perturba o equilíbrio e rompe com a harmonia, o que ameaça a manutenção de um estado que não é para ser perturbado. O simples ato de elaborar uma pergunta tendente a exigir do outro um posicionamento diante de algo que coloca em dúvida determinada verdade é penalizado em alguns ambientes. A intolerância aparece a serviço da manutenção numa relação entre dominador e dominado. A dominância intelectual é combatida pelo diálogo, ferramenta proporcionada pela democracia, e o humor é uma das possibilidades desse diálogo, que exige do educador muito mais do que reafirmações de poder: espera-se dele uma capacidade de se comunicar com empatia. Ou seja, que busque compreender as intervenções alheias de seu raciocínio como oportunidades de construção conjunta do saber, que é um pilar da educação para o exercício da cidadania.

A formação para a cidadania é um dos objetivos da escola. Chervel (1990) considera que a sociedade, a família e a religião delegaram, em certo momento histórico, algumas tarefas educacionais para as instituições de ensino:

O problema das finalidades da escola é certamente um dos mais complexos e dos mais sutis com os quais se vê confrontada a história do ensino. Seu estudo depende em parte da história das disciplinas. Pode-se globalmente supor que a sociedade, a família, a religião experimentaram, em determinada época da história, a necessidade de delegar certas tarefas educacionais a uma instituição especializada, que a escola e o colégio devem sua origem a essa demanda, que as grandes finalidades educacionais que emanam da sociedade global não deixaram de evoluir com a época e os séculos, e que os comanditários sociais da escola conduzem permanentemente os principais objetivos da instrução e da educação aos quais ela se encontra submetida. (CHERVEL, 1990, p.187)

Encontram-se nos monastérios da Idade Média alguns elementos relativos à educação formal que até hoje produzem efeitos no mundo ocidental: “Há certamente, dificuldade em admitir, mas vários elementos que compõem a escola moderna se desenvolveram na escola medieval.” (DIEL, 2017, p.406).

Morreall (2009, p.5) destaca algumas características do combate ao humor desde os monastérios:31 “Um lugar ideal para encontrar ataques Cristãos ao riso é a

instituição que mais enfatizou o autocontrole e a harmonia social - o monastério.”. Essa passagem possivelmente contaria com a aprovação de Platão e Hobbes, que concebiam o humor como uma expressão de sentimentos de superioridade, o que atualmente embasa a designada Teoria da Superioridade do humor.

A influência dos monastérios nas escolas se acentuou possivelmente por um

31 No original: “An ideal place to find Christian attacks on laughter is in the institution that most emphasized self-control and social harmony – the monastery.”

fator histórico que remonta ao seu surgimento, em 529 d.C., pois concomitantemente ao início do monasticismo, ocorria o fechamento da última escola platônica pagã:

A história do monasticismo tem dois grandes movimentos na Idade Média. O primeiro é marcado pelo seu nascimento, com a criação, em 529, da regra de São Bento, que dará origem ao monasticismo ocidental. Essa data é significativa, pois ela se junta a outra decisão importante para a cultura e a educação no ocidente, é pois, o ano do fechamento da última escola platônica pagã por Justiniano (527-565). (DIEL, 2017, p.407)

No século VI, a chamada Regra de São Bento foi escrita de modo a inspirar as ações nos monastérios. “Pautando-se pela Regra de São Bento (texto escrito no séc. VI), as atividades dos monges se desenvolveram de forma gradativa e contínua.”(LOSE e TELLES, 2009, p.18).

Tal regramento impunha as regras monásticas, com capítulos dedicados ao silêncio, à obediência, à humildade, à pobreza, à oração, entre outras, com passagens dedicadas ao tratamento dispensado ao riso. Adverte a regra: “Não falar palavras vãs ou que só sirvam para provocar riso. Não gostar do riso excessivo ou ruidoso.” (BENTO, 2006, p.37)

Ao longo do documento encontram-se fragmentos que manifestam a proibição para comportamentos que ensejem o riso:

Por isso, se é preciso pedir alguma coisa ao superior, que se peça com toda humildade e submissão da reverência. Já quanto às brincadeiras, palavras ociosas que provocam riso, condenamo-las em todos os lugares a uma eterna clausura. Para tais palavras não permitimos ao discípulo abrir a boca. (BENTO, 2006, p.46)

A humildade é um elemento central na regra de São Bento e o riso se apresenta como um comportamento imoderado no mosteiro: "O décimo grau da humildade consiste em que não seja o monge fácil e pronto ao riso, porque está escrito: ‘O estulto eleva a sua voz quando ri.’” (BENTO, 2018, c.7, 59).

Seguindo a respeito do tema "humildade" a Regra designa a ausência do riso e a moderação na fala:

O undécimo grau da humildade consiste em, quando falar, fazê-lo o monge suavemente e sem riso, humildemente e com gravidade, com poucas e razoáveis palavras e não em alta voz, conforme o que está escrito: "O sábio manifesta-se com poucas palavras". (BENTO, 2018, c.7, 60)

A regra de São Bento teve grande importância na Idade Média, o que rendeu ao seu precursor a proclamação de padroeiro da Europa, reconhecimento esse conferido em 1964 pelo Papa Paulo VI (Lose e Telles, 2009, p.21). Mais uma vez se

encontram elementos que associam o riso ao erro, cuja penalização prevista no capítulo 45 aponta para castigos:

Capítulo 45 – Dos que erram no oratório

1. Se alguém errar quando recitar um salmo, responsório, antífona ou lição, e se não se humilhar, ali mesmo, diante de todos por uma satisfação, sofra castigo maior, 2. de vez que não quis corrigir, pela humildade, a falta que cometeu por negligência. 3. As crianças por tal falta recebam pancadas. (BENTO, 2018, c.45)

A necessidade de se buscar um segundo referencial para o capítulo 45 da Regra de São Bento decorreu do fato de esse capítulo estar suprimido do sítio virtual de pesquisa nominado "Bento" (2006). Em outros lugares pesquisados também se constatou a intrigante supressão. Ao se encontrar o conteúdo do respectivo capítulo disponível em Bento (2018), constatou-se que há dizeres que rementem à violência infantil. Seria essa alusão, no contexto atual, reprovável e tipificada como crime, tendo sido suprimida por esse motivo?

Se um erro ao se recitar um salmo ensejava pancadas nas crianças negligentes e avoadas, o que pensar de uma manifestação de humor cuja intenção de provocar o riso traria uma afronta ainda mais grave aos propósitos da humildade apregoada na Regra?

De fato, a influência do cristianismo nas escolas contribuiu para compor o legado dos monastérios da Idade Média, o que não se resumia apenas às ações voltadas à formação, mas ao próprio modelo de gestão organizacional, que era orientado pelos mesmos princípios e valores cristãos:

A educação e a escola se desenvolveram a partir dessa identidade cristã. Praticamente inexiste educação formal fora das instituições cristãs católicas. A escola medieval é uma obra da Igreja católica, é ela quem gerencia, administra, reorganiza e define seus fins. (DIEL, 2017, p.406)

As regras monasteriais que combatiam o humor e o riso não decorriam de meras orientações, mas de determinações trazidas pela Regra de São Benedito (São Bento), que encorajavam os monges a não falar bobagens que provocassem o riso:32

A Regra de São Bento, a fundação dos códigos monásticos ocidentais, ordenou aos monges que preferissem moderação na fala e não falassem bobagens, nada simplesmente para provocar o riso; não amam gargalhadas desmedidas ou barulhentas. (MORREALL, 2009, p.5)

Já advertia Benedict (1931, p.6):33 “Não amar muito ou rir excessivamente”.

32 No original: "The Rule of St. Benedict, the foundation of Western monastic codes, enjoined monks to ‘prefer moderation in speech and speak no foolish chatter, nothing just to provoke laugher; do not love immoderate or boisterous laughter.’" (MORREALL, 2009, p.5)

Nesta passagem da regra estipulava-se o excesso tanto do riso como do amor como algo a ser evitado, o que leva, por ilação, a ver o quanto o amor e o riso ditos excessivos eram considerados perturbadores para os fins do monastério.

A palavra “patético” remete ao mesmo tempo ao riso, à patologia e à paixão. PEREIRA (1661, p.488), referencia “patheticus, a, um, cousa apaixonada, perturbada”, o que traz a compreensão de que aquilo que provoca o riso perturba a razão. As proibições de São Benedito desqualificam aquele que ri, colocando-o numa posição de tolo, tendo por base não seu senso de julgamento, mas aquilo que consta das escrituras sagradas bíblicas, notadamente em Eclesiastes, 20:21:34 “O

décimo grau da humildade consiste em que não seja [o monge] fácil e pronto ao riso, porque está escrito: 'O tolo levanta a sua voz em risadas'”. (BENEDICT, 1931, p.10)

Combater as tentativas de questionamento de uma ideia dominante ganha a dimensão de proteção de interesses. Onde não há questionamento, não há mudança. O ato de penalizar o humor no ambiente escolar pode ser visto sob o prisma da origem da universidade e do modo pelo qual a Bíblia trata o humor ao longo de suas escrituras:

O humor não é normalmente levado a sério. A Bíblia, livro fundador da tradição intelectual e narrativa da civilização ocidental, não trouxe boa fama ao humor e ao riso. Deus repreende Sara quando esta se ri de uma boa piada [Gen 18:11-13] e os sábios deixam bem claro que o riso é assunto dos tolos [Pv 14:9; Ec 7:3-4]. (JERÔNIMO, 2015, p.1)

Ao se verificar nos monastérios e nas escrituras sagradas cristãs fundamentos de repressão ao riso, nota-se que a racionalidade, embora tenha trazido para si a responsabilidade de explicar o real por uma via distinta do teocentrismo, manteve a característica da indesejabilidade do humor e do riso na transmissão de seus saberes.

34 No original: “The tenth step in humility is if he be not easily and quickly moved to laughter, because it is written: “The fool lifts up his voice in laughter.” (BENEDICT, 1931, p.10)