• Nenhum resultado encontrado

5 HUMOR NA ESCOLA

5.3 HUMOR: COGNIÇÃO E EMOÇÃO

A proposição de Aristóteles é clara: o humor é o resultado de uma lógica racional que não deu certo. A conclusão de um raciocínio que provoca o riso não sobrevive a uma análise pautada nesse critério. Ocorre que há uma gritante diferença entre o erro proposital que leva ao riso e aquele tipo de erro que denota uma mera construção de raciocínio infundado, uma tentativa legítima de buscar o certo, o racional, mas que encontra o irracional, portanto, o erro.

A intenção de quem enuncia uma expressão cômica equivale a um divisor de águas entre o que se considera irracional para o que pode ser chamado de suprarracional. O humor intencional, qual seja, aquele em que o interlocutor objetiva o riso por meio de sua comunicação, refere-se a uma lógica de tal complexidade que torna o racional um pressuposto para que a piada ocorra. A expressão suprarracional conduz ao que está para além da razão, tomando esta como seu pressuposto essencial para que sirva de sustentação na construção de um raciocínio que provoque o riso. Convém mencionar que nem todo humor busca o riso, a gargalhada. A sensação de bem-estar e de contentamento pode ser bastante para que a intenção seja atingida quando se lança mão de uma piada.

A suprarracionalidade de uma piada exige uma construção lógica que não é lavada a cabo. Por outra via, a sentença é cuidadosamente subvertida de modo a proporcionar uma alternativa ao que era esperado, e essa alternativa deve ser suficientemente impactante para que provoque o riso. A racionalidade da ideia paralela exige uma compreensão exata do que seria um raciocínio usual e coerente. A interpretação paralela e irracional exige a consciência de que o riso reside na distorção. E não é qualquer tipo de substituição de expressões, de subversão de valores numa sentença ou o que seja provocará o riso. A distorção cômica deve ser exata, sob pena de ser considerada uma expressão sem sentido e sem graça.

Ramachandran (1998, p.351) propõe que o riso e o humor envolvem um acúmulo gradual de expectativas do qual sucede uma reviravolta repentina que

resulta numa mudança que não é ameaçadora. Tal consideração aponta para uma exigência de coerência que antecede a reviravolta repentina, ou seja, para que o humor ocorra, a construção racional deve anteceder a distorção cômica. A expectativa criada racionalmente é traída e a surpresa da mudança que não confirma tal expectativa pode configurar uma lógica metarracional. Pode, pois, de que nem toda expectativa insatisfeita resultará humor. Se da mudança resultar um conteúdo que o interlocutor considere ameaçador, a comunicação, ao invés do riso, levantará as suas defesas.

Nos trechos a seguir opta-se por não se utilizar as notas de rodapé para a tradução, por prejudicar o ritmo da leitura proposta que conta com a leitura e pronúncia da língua inglesa para ser compreendida. Possenti (1998, p. 19) apud Raskin (1987), comenta a expressão “gonorrhea: brazilian vacation” (em tradução livre, gonorreia: férias brasileiras), convidando o leitor a notar que a palavra “gonorrhea” (gonorreia) se assemelha foneticamente à expressão “gone to Rio” (fui ao Rio), o que traz um conteúdo cômico à expressão. A compreensão da piada envolve, além da informação de que o Rio de Janeiro possui para muitos estrangeiros a fama de local de turismo sexual, o conhecimento da língua inglesa. Não bastando essas características, para que o riso seja deflagrado, é necessário que o interlocutor faça a descoberta de que existem duas possibilidades interpretativas e que os temas Rio de Janeiro e gonorreia não lhe sejam ameaçadores. A compreensão racional de que existe um trocadilho não é suficiente para trazer o riso à tona, pois o sentido ofensivo da piada pode ser, para parte dos brasileiros, ameaçador o bastante para a intenção de graça se converter em algo recebido como agressivo e sem graça.

Numa outra passagem, Possenti (1988, p.18) menciona uma piada analisada anteriormente por Delia Chiaro: “Sum ego cogito. Is that putting Des-cartes before de-horse? (Existo logo penso. Estão colocando Descartes/Os carros antes dos bois?)”. Atribuir a essa complexa e precisa construção a rotulagem de erro, por sua irracionalidade proposital, com o devido acatamento, seria um erro. O interlocutor, para se deleitar com o humor contido na piada, deve conhecer a citação original “penso, logo existo”, identificar a inversão que leva ao “existo, logo penso”, bem como conhecer a expressão que adverte “não colocar a carroça na frente dos bois” para, então, perceber que a pronúncia inglesa da palavra “Des-cartes” se assemelha foneticamente a “the cars” (os carros). A compreensão da piada e o riso que dela pode decorrer envolvem uma metarracionalidade ao exigir do interlocutor uma série de conhecimentos prévios acerca de cada expressão contida no fragmento.

Ressalta-se que muitas ambiguidades e trocadilhos podem perder o seu efeito de provocar o riso quando traduzidos em outros idiomas, como se percebe

nos dois exemplos trazidos anteriormente. Isso porque não se terá uma opção interpretativa minimamente plausível para se criar o efeito da mudança, que não confirma a expectativa do pensamento do interlocutor.

Uma outra possibilidade de aplicação do humor na perspectiva provocativa e transgressora é trazido numa publicação de um artigo científico numa importante revista da área médica, a New England Journal of Medicine. O pesquisador buscou correlacionar o consumo de chocolate per capita e o número de prêmios Nobel de cada país pesquisado. A correlação encontrada entre os laureados de 23 países é a seguinte:52

Houve uma correlação linear estreita e significativa (r = 0,791, P <0,0001) entre o consumo de chocolate per capita e o número de ganhadores do Prêmio Nobel para cada 10 milhões de pessoas em um total de 23 países. (MESSERLI, 2012, p.1)

O artigo embasa cientificamente que a capacidade cognitiva de pessoas que consomem chocolate é incrementada, o que pode ser estendido, hipoteticamente, a populações. O chocolate possui flavonóides e seus benefícios são referenciados em diversos estudos:53 “A dieta de flavanóides também mostrou melhorar a função

endotelial e baixar a pressão arterial, causando vasodilatação na vasculatura periférica e no cérebro.” (MESSERLI, 2012, p.1).

Na figura adiante, apresentam-se as correlações entre consumo de chocolate e prêmios Nobel:

52 No original: “There was a close, significant linear correlation (r=0.791, P<0,0001) between chocolate consumption per capita and the number of Nobel laureates 10 million persons in a total of 23 countries” (MESSERLI, 2012, p.1)

53 No original: “Dietary flavanols have also been shown to improve endothelial function and to lower blood pressure by causing vasodilation in the peripheral vasculature and in the brain.” (MESSERLI, 2012, p.1).

Figura 3 - Correlação entre prêmios Nobel per capita por países e consumo de chocolate

Fonte: Messerli (2012, p. 2)

As comparações tomaram por base o número de prêmios Nobel para cada 10 milhões de habitantes e o consumo de chocolate per capita anual. Suíça, Suécia, Áustria, Dinamarca, Noruega, Reino Unido, Alemanha e Irlanda aparecem entre os países que mais consomem chocolate e os que mais foram laureados com a cobiçada premiação. Curiosamente, países que consomem menos chocolate foram menos laureados. O estudo leva a conclusões tanto curiosas quanto interessantes:54

O consumo de chocolate aumenta a função cognitiva, que é uma condição sine qua non para ganhar o Prêmio Nobel, e está intimamente correlacionado com o número de laureados do Prêmio Nobel em cada país. Resta determinar se o consumo de chocolate é o mecanismo subjacente para a associação observada com melhor função cognitiva (MESSERLI, 2012, p.3).

54 No original: "Chocolate consumption enhances cognitive function, which is a 'sine qua non' for winning the Nobel Prize, and it closely correlates with the number of Nobel laureates in each country. It remains to be determined whether the consumption of chocolate is the underlying mechanism for the observed association with improved cognitive function" (MESSERLI, 2012, p.3).

Por que um periódico de prestígio publicaria um artigo dessa natureza? A crítica subjacente é uma transgressão de um tipo de pensamento, de manipulações de dados, de conclusões, de ilações e de outras possibilidades de más aplicações de estudos científicos. A própria ambiguidade na citação traz salpicos de humor quando se diz que o consumo de chocolate amplia a função cognitiva, o que é uma condição sine qua non para ser agraciado com um Prêmio Nobel. A condição essencial de que se trata o artigo é a de gozar uma função cognitiva privilegiada, naturalmente não a de ser um chocólatra, para o desapontamento de muitas pessoas, certamente.

Na mesma esteira, a partir da alta correlação entre o consumo de chocolate e a ocorrência de prêmios Nobel por países, o leitor é conduzido a uma análise irresistível de formular a enfadonha hipótese de que para um determinado país obter mais prêmios Nobel, bastaria aumentar o consumo de chocolate per capita. Numa linguagem mais governamental, o estudo poderia servir para embasar, hipoteticamente, "com propriedade dita científica", políticas públicas de incentivo ao consumo do cacau, conceder benefícios tributários, campanhas publicitárias correlatas e anunciar que o país investe em ciência e tecnologia. Falácias que podem ser construídas com humor.

Na leitura que faço, o artigo traz uma crítica ácida às interpretações e aplicações bizarras de pesquisas científicas notadamente na área de saúde, mas que facilmente encontram-se correlatos na educação. Algo que é escancarado quando se apresenta alta correlação entre fatos que nitidamente não são interdependentes: o aumento de consumo de chocolates populacional não acarretará em mais prêmios Nobel. A relação é cristalina, mas quando se modificam as premissas correlacionadas, tal constatação deixa de ser evidente e adentra num campo nebuloso da interpretação, da subjetividade e dos interesses subjacentes. No campo da saúde, em que a publicação do artigo científico foi feita, podem ser feitas analogias entre o tema pesquisado e estudos que envolvem doenças cardíacas e níveis de colesterol, consumo de carboidratos e incidência de diabetes ou mesmo a ingesta de sal de cozinha e hipertensão. Não é à toa que o café, o chocolate e o ovo já foram apontados como heróis e vilões em estudos que encontraram alta correlação com aquilo que se pesquisava sem que houvesse, de fato, algum grau de interdependência entre os elementos comparados, como ocorre na pesquisa do chocolate.

A proposta do artigo traz infindáveis possibilidades de críticas irônicas a estudos os quais se pretende desqualificar por apresentarem conclusões falsas oriundas de correlações equivocadas. O questionamento feito por meio do artigo

incomoda alguns grupos porque transgride uma dominância e questiona pensamentos, sejam eles hegemônicos ou não.

O uso mal intencionado de estatísticas e de correlações tendenciosas não constituem monopólio da medicina. Tal situação também pode ser encontrada em propósitos que levaram a humanidade ao holocausto e podem levar ao racismo, como no caso hipotético de se interpretar o percentual de analfabetismo maior em "pessoas pretas ou pardas" (termo empregado pelo IBGE) do que para "pessoas brancas" defendendo a hipótese de nível de inteligência racial. Para as pessoas brancas de 15 anos ou mais de idade, a taxa nacional passou de 4,2% para 4,0%; enquanto que entre as pessoas pretas ou pardas, ela caiu de 9,9% para 9,3% (IBGE, 2018).

As diferenças percentuais entre raças não permite fazer as considerações sobre inteligência comparativa entre raças, dadas todas as variáveis coexistentes em questão, sejam elas econômicas, sociais, histórias, jurídicas, políticas, etc. Da mesma forma, acreditar que o consumo diário de barras de chocolate aproximará mais um cientista do prêmio Nobel do que o "consumo" de livros é uma falácia. Infelizmente.