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4 HUMOR, LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL E CIDADANIA

4.3 HUMOR E CIDADANIA EM JULGAMENTO

Após se constatar o esvaziamento do compromisso da educação com a formação para a cidadania, passa a ter especial importância o modo pelo qual o Poder Judiciário vem apreciando a relação entre o uso do humor enquanto liberdade de expressão. Este tema foi analisado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no ano de 2018, com decisão que enfrenta tanto a questão do exercício da liberdade no humor quanto da censura prévia.

Atentar contra a liberdade de expressão é uma violência à cidadania e à democracia. O humor enquanto liberdade de expressão em alguns casos incomoda porque nele pode residir o germe de um poderoso e destrutivo processo questionador, por vezes desqualificador, que encontra no riso uma pretensa aprovação social, daí parecem surgir algumas tentativas de silenciá-lo.

Diferente de uma argumentação dita com seriedade, da qual nem sempre é possível extrair com clareza a aprovação ou desaprovação das pessoas que a ouvem, o riso, uma vez deflagrado, fornece uma manifestação explícita da formação, ainda que fugaz, de um grupo de concordância. Embora não seja possível dizer

especificamente o que leva cada pessoa de um grupo a rir diante de uma comunicação com humor, a impressão causada por uma coletividade atribui a esse grupo uma característica de coesão, de laços sociais e de vinculação afetiva. É compreensível que a percepção externa, daquele que observa um grupo rindo, frequentemente considera aquelas pessoas como partícipes de ideias, pensamentos ou mesmo de crenças comuns. E estas questões costumam ganhar especial atenção quando afetam interesses políticos por meio de charges, piadas e outras expressões de humor.

Se a argumentação é aceita como um meio legítimo do direito constitucional de liberdade de expressão, por que o humor não seria? O que há de tão perturbador nesta possibilidade de comunicação? O fato é que o humor tem um poder destrutivo capaz de ridicularizar a imagem e a reputação de pessoas e de organizações. O humor parece se desconectar do que é considerado racional, e em muitas situações o Poder Judiciário é provocado para intervir.

No ano de 2010, no STF, foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 4.451 e, após diversos trâmites, foi definitivamente julgada pelo plenário da egrégia Corte no dia 21/6/2018, com acórdão publicado no Diário Oficial da União em 6/3/2019 (BRASIL, 2019). A ação foi relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, sobre a declaração da inconstitucionalidade do art.45, II e seus parágrafos 4º e 5º da Lei 9.504 de 30/9/1997. Esta lei estabelece normas eleitorais e, numa de suas alterações, a promovida pela Lei 12.034 de 30/9/2009, foram incluídos os parágrafos 4º e 5º que se destinavam a impedir que candidatos políticos fossem satirizados em período eleitoral:

Art. 45. Encerrado o prazo para a realização das convenções no ano das eleições, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e em seu noticiário: (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015) II - usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito;

III - veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes;

§ 4o Entende-se por trucagem todo e qualquer efeito realizado em áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)

§ 5o Entende-se por montagem toda e qualquer junção de registros de áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009). (BRASIL. Lei nº 9.504 de 30 de Setembro de 1997).

A ação direta de inconstitucionalidade ADI 4.451 foi proposta em 24/8/2010 e teve no dia 1/9/2010 a suspensão liminar da parte da lei impugnada confirmada pelo plenário do STF. Ato posterior, o mérito da ação foi julgado definitivamente em

21/6/2018. A tentativa da legislação era a de se censurar previamente, em período eleitoral, a sátira e o humor contra candidatos, partidos políticos e coligações. Esta iniciativa acendeu uma discussão relativa à contrariedade deste tipo de proibição a princípios estabelecidos em normas constitucionais. As violações dos dispositivos supracitados se referem fundamentalmente à liberdade de manifestação do pensamento, à atividade de expressão e criação artística e ao direito de acesso à informação.

A mordaça legislativa pretendia ferir um preceito da cidadania, que é a expressão do humor. A livre circulação de ideias e opiniões tem como premissa que as pessoas têm capacidade intelectual para dialogar e para exercer a sua cidadania. O Estado deve assegurar o diálogo como um pilar da democracia e limitar a liberdade de expressão.

O artigo 45 da lei pretendia impedir o humor como ferramenta política. De fato, o humor pode ridicularizar um candidato político, mas isso também pode ser feito por meio de uma argumentação sóbria, destituída do escárnio. Isso leva ao questionamento dos motivos que levariam à proibição de uma sátira, mas não de uma construção argumentativa racional. Que poder é esse do humor? A característica da socialização que o humor proporciona como assevera Bergson (1983) parece ser realmente impactante.

A Teoria da Superioridade do humor fornece algumas pistas para tentar responder melhor os questionamentos feitos no parágrafo anterior. Hobbes (1651) destaca que no humor, a graça está na depreciação do outro, numa disputa em que estão presentes jogos de forças. Esse olhar não esclarece completamente as questões suscitadas, mas aponta um norte para a compreensão dos motivos do humor ser temido e, muitas vezes, reprimido e censurado.

O julgamento da ADI 4.451 pelo plenário do STF reafirma uma das construções teóricas desenvolvidas nessa tese, a de que o humor é qualificado enquanto liberdade de expressão. Portanto, seu uso corresponde ao exercício de cidadania que fortalece a democracia. No referido acórdão, o Ministro relator Alexandre de Moraes consignou:

O direito fundamental à liberdade de expressão, portanto, não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também àquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias (Kingsley Pictures Corp. v. Regents, 360 U.S 684, 688-89, 1959). Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional. (BRASIL, 2019, p.18)

Ainda que se verifique no julgamento a preservação do direito de cidadania e liberdade de expressão por meio do humor, o simples fato de ele ter sido objeto de

um julgamento no plenário do órgão máximo do Judiciário já aponta para um movimento tendente a pôr em dúvida as possibilidades de exercício desse direito democrático. Estando o direito à liberdade de expressão por meio do humor preservado no julgamento da ADI 4.451, passa-se a analisar um outro viés da cidadania que agoniza nas legislações educacionais: a racionalidade da formação para o trabalho que se impõe diante da formação para a cidadania.