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2 AÇÃO REINVINDICATÓRIA

2.5 Intervenção de terceiros

2.8.3 Provas e suas peculiaridades

2.8.3.2 Compromisso de compra e venda registrado como prova de domínio

A jurisprudência e a doutrina tem divergido sobre a legitimidade do compromissário comprador, baseado em compromisso de compra e venda quitado, para propor ação reivindicatória.

O STJ, de certa forma, tem relativizado a exigência da escritura pública registrada para garantir a faculdade do compromissário comprador, que já tenha quitado o preço, de promover ação reivindicatória259.

Nesse sentido é o enunciado n. 87 aprovado na I Jornadas de Direito Civil de 2002:

Enunciado n. 87 – Art. 1.245: Considera-se também título translativo, para fins do art. 1.245 do novo Código Civil, a promessa de compra e venda devidamente quitada (arts. 1.417 e 1.418 do CC e § 6o do art. 26 da Lei n. 6.766/79).

No julgamento do REsp 59092/SP o STJ decidiu pela legitimidade ativa do compromissário comprador, que tinha compromisso de compra e venda quitado e registrado no Registro de Imóveis. No entanto, houve divergência entre os Ministros da Quarta Turma, que julgou o recurso.

O relator, o Min. BARROS MONTEIRO, entendeu que o compromissário comprador não tem legitimidade para propor a reivindicatória porque a lei prevê que somente o proprietário da coisa a tem, conforme exarou em seu voto260:

Não se pode asseverar, de outro lado, que o v. julgado tenha malferido a norma inscrita no art. 524, pois o referido cânone legal é expresso ao dispor que "a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente o possua. Pressuposto, assim, da reivindicatória é a existência de um proprietário não possuidor que age contra um possuidor não proprietário. Um de seus elementos é o domínio

259 REIVINDICATÓRIA. AÇÃO PROPOSTA POR COMPROMISSÁRIOS-COMPRADORES COM TÍTULO REGISTRADO. - O compromissário-comprador, com o contrato registrado no Registro de Imóveis, preço pago e cláusula de irretratabilidade, tem legitimidade para propor ação reivindicatória (entendimento majoritário da Turma). - Ausência, porém, no caso do requisito da posse injusta. Recurso especial não conhecido. (REsp 59092/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 12/06/2001, DJ 15/10/2001, p. 264)

260

exercido pelo autor (cfr REsp n° 8.173-SP, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira).

Em sentido oposto foi o voto do Min. CESAR ASFOR ROCHA:

É certo que em sua literalidade o art. 524 do Código Civil pontifica, no que interessa, que a lei assegura ao proprietário o direito de reaver os seus bens de quem quer que injustamente os possua.

E como, no caso, os autores/recorrentes não seriam, a rigor, proprietários, condição que alcançariam somente depois de adquirirem o domínio do cogitado bem, por escritura pública, devidamente registrada, não poderiam reinvindicar o bem.

Entendo, todavia, que a regra acima anunciada comporta, em excepcionais hipóteses, um certo temperamento.

E a situação de que ora se examina está contida no rol daquelas excepcionalidades, pela presença concomitante dos seguintes elementos: a) o compromisso de compra e venda foi firmado em caráter irrevogável e irretratável, vedado o arrependimento;

b) de logo foram transmitidos "a posse, jus, domínio, direito e ações; c) o preço foi totalmente pago, sendo prestada ampla, geral e irrevogável quitação;

d) o contrato foi levado ao registro imobiliário quando nele constava a cedente como legítima proprietária;

e) a ação foi proposta contra um promitente comprador, assim ungido em face de contrato particular celebrado em data posterior àquela em que o primeiro foi firmado.

Ora, se os recorrentes poderiam promover uma ação de adjudicação compulsória contra a promitente vendedora, para adquirirem definitivamente o domínio do bem, não vejo porque, data vênia, presentes aquelas circunstâncias acima apontadas, não poderem, de logo, valer- se da ação de que se cuida para reavê-Io de terceiros, meros posteriores promitentes compradores.

Dir-se-ia que legitimidade para propor a ação só teria a promitente vendedora. Contudo, evidentemente que ela não iria tomar nenhuma iniciativa nesse sentido quando mais não fosse por ter prometido vendê-lo aos dois litigantes. Com efeito, o resultado útil da reinvindicatória só recairia sobre os ora recorrentes, razão também para tê-los como parte legítima para propor a ação".

Na mesma linha se posicionaram os Ministros RUY ROSADO DE AGUIAR

e SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, cujo voto exarou o que segue:

Em primeiro lugar, assim como concluíram os Ministros Cesar Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar, tenho que o art. 524 do Código Civil não merece interpretação meramente literal, sendo imperioso que se ponderem outras circunstâncias a fim de que se chegue a uma solução mais justa.

Assim, não obstante referida norma legal assentar que apenas o "'proprietário'" pode reaver seu imóvel de quem injustamente o possua, sendo certo ainda que, nos termos do art. 530 do Código Civil, adquire-se a propriedade imóvel "pela

transcrição do título de transferência no Registro do Imóvel", não vejo razão, em princípio, para negar ao promissário comprador a ação reivindicatória, desde que o compromisso de compra e venda esteja registrado, com preço pago e havendo cláusula de irretratabilidade, como na espécie.

Nota-se que todos os três últimos Ministros admitem que os

compromissários compradores não são proprietários, mas por estar o contrato quitado e dele constar cláusula de irretratabilidade, entenderam os Ministros da Quarta Turma, que os compromissários se equiparam a proprietários para efeitos de legitimidade parar propor a ação reivindicatória.

Esse não nos parece o melhor entendimento, pois a relativização da exigência do escritura pública registrada, para admitir o compromisso de compra e venda, mesmo que em hipóteses especialíssimas, como é o caso em comento, pode gerar alguns problemas.

Estabelece o art. 1.228 do Código Civil que o proprietário tem o direito de reaver a coisa de quem injustamente a detenha. Trata-se, portanto, de direito real de propriedade.

No caso em comento os autores da ação reivindicatória não eram proprietários, mas meros compromissários compradores, que a rigor são carecedores da ação, pois lhe faltam requisito essencial que é a propriedade.

A interpretação extensiva do art. 524 do Código Civil de 1916, atual 1.228 do CC, pelo STJ se deu pelas seguintes razões: a) o compromisso de compra e venda foi firmado em caráter irrevogável e irretratável, vedado o arrependimento; b) de logo foram transmitidos "a posse, jus, domínio, direito e ações"; c) o preço foi totalmente pago, sendo prestada ampla, geral e irrevogável quitação; d) o contrato foi levado ao registro imobiliário quando nele constava a cedente como legítima proprietária; e) a ação foi proposta contra um promitente comprador, assim ungido em face de contrato particular celebrado em data posterior àquela em que o primeiro foi firmado.

Concordamos que o compromisso quitado e registrado gera direitos reais aos compromissários compradores, como, v. g., o direito de adjudicação compulsória em face do compromissário vendedor, mas não autoriza o manejo da ação reivindicatória para obter a posse da coisa, porque a lei descreve de modo muito claro e

específico i) de que modo se adquire o mais amplo de todos os direitos reais, a propriedade (art. 1.245 do CC) e ii) quem pode propor a ação reivindicatória (art. 1.228 do CC). Nessa seara salutares são as lições de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

Distinto da propriedade, na promessa de compra e venda o titular não tem os atributos do domínio sobre a coisa. Aliás, se os tivesse, já não haveria falar num direito real do promitente-comprador, senão que a promessa se confundiria com a venda, e o promitente-comprador, pelo só fato de o ser, já se equipararia ao comprador. Não falta no direito brasileiro quem o sustente, numa confusão talvez com o direito francês, onde se afirma que promesse de vent vaut vent. No direito brasileiro os dois fenômenos, no plano jurídico como no econômico, se destacam. Distinguem-se, ainda, a promessa de venda dos direitos reais de gozo ou fruição (enfiteuse, servidões, usufruto, uso, habitação), cujos elementos ontológicos como etiológicos desenvolvemos nos lugares próprios deste volume. Diferencia-se, igualmente, dos direitos reais de garantia (penhor, hipoteca, anticrese).

É um direito real novo, pelas suas características, como por suas finalidades. E deve, consequentemente, ocupar um lugar à parte na classificação dos direitos reais. Não é um direito real pleno ou ilimitado (propriedade), nem se pode ter os direitos reais limitados que o Código Civil, na linha dos demais, arrola e disciplina. Mais próximo de sua configuração andou SERPA LOPES, quando fez alusão a uma categoria de direito real de aquisição, ocupada pela promessa de venda261.

Desse modo, pelo compromisso de compra e venda os compromissários compradores adquirem o direito de aquisição da coisa, podendo dele se valer para exigir do compromitente vendedor a outorga da escritura definitiva do imóvel e adjudicação compulsória, se for o caso. Esses direitos decorrem do efeito erga omnes emanado do direito real pertinente ao compromisso de compra e venda, todavia ele opera de forma diferente do modo como opera no direito real de propriedade.

O efeito erga omnes do compromisso de compra e venda registrado grava o imóvel de modo que o compromisso é oponível a terceiros. O que se opõe a terceiros é o direito de aquisição do compromissário comprador e não o poder de usar, gozar, dispor e de reaver a coisa, poderes decorrentes do efeito erga omnes da propriedade. Como bem explica CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

261

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. v. 4. 18.ed., atualizada por Carlos Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.314.

Com o novo princípio, foi instituído para a promessa de venda o direito de seqüela, vinculado desta sorte o compromisso de venda ao próprio imóvel. Em poder de quem quer que se encontre, o imóvel acha-se gravado no direito real de promessa de venda. Em consequência, o promitente-comprador tem o poder de exigir a escritura definitiva. Do promitente-vendedor, originariamente.

Mas se o imóvel tiver sido alienado a terceiro após a inscrição da promessa, o adquirente o recebe onerado, e a ele é oponível o direito de receber a escritura, independentemente de outras condições, além daquelas que constam do instrumento.

Com a faculdade de receber a escritura definitiva, suprível evidentemente pela sentença judicial, tem ainda o promitente-comprador, direito à adjudicação compulsória. Recusada a entrega do imóvel comprometido, ou alienado este a terceiro, pode compromitente-comprador, munido da promessa inscrita, exigir que se efetive, adjudicando-lhe o juiz o bem em espécie, com todos os seus pertences. Ocorre, então, com criação deste direito real, que a promessa de compra e venda se transforma de geradora de obrigação de fazer em geradora de obrigação de dar, que se executa mediante entrega coativa da própria coisa262.

Diante das lições acima, não podemos entender que a exigência da escritura pública registrada para legitimar o autor a propor a ação reivindicatória, advenha de uma interpretação literal do art. 1.228 do CC, mas de uma interpretação dentro de um contexto que não pode ignorar a existência dos o arts. 1.245 e 1.247 do Código Civil tampouco a natureza e os efeitos do compromisso de compra e venda registrado. Realmente, nos parece que o direito de propriedade não é um deles.

A leitura em conjunto dos arts. 1.228, 1.245 e 1.247 do Código Civil não nos leva a outra conclusão senão a de que somente se adquire a propriedade, quando por transmissão entre vivos, pelo registro do título translativo no Registro de Imóveis, e, por consequência somente poderá se valer da ação reivindicatória aquele cujo o nome constar como adquirente.

Ademais, de acordo com o art. 366 do Código de Processo Civil, "quando a lei exigir, como da substância do ato, o instrumento público, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir-lhe a falta". Dessa forma, a escritura pública registrada (art. 1.245 do CC) é documento essencial para propositura da ação reivindicatória, não podendo ser substituído por nenhum outro, a nosso ver.

262

Sobre o art. 366 do CPC, as lições de LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART:

Embora esse artigo fale de prova, o instrumento público aí exigido é dito da "substâancia do ato". Na verdade, trata-se do chamado documento substancial, que não se presta provar, mas sim a constituir o direito.

Diante disso, se uma decisão dispensa o instrumento público diante de ato cuja existência dele depende, há evidente violação de lei federal, apta a ser corrigida mediante recurso especial. A alegação recursal de inexistência desse documento não enseja simples reexame de prova, mas sim a análise da exist6encia do próprio ato263.

Imaginemos uma ação executiva para cobrança de crédito. Seria possível propor ação executiva de crédito lastreada em documento que comprovasse existência de crédito, mas que não fosse título executivo? Nos parece que não.

Em nosso entender coisa semelhante ocorre com a ação reivindicatória, cuja natureza é executiva. Somente a lei pode determinar que documento representa a titularidade do domínio. No caso da transmissão entre vivos, a escritura pública devidamente registrada. Por determinação legal, a propriedade está necessariamente atrelada ao título de domínio registrado.

Desse modo, se a lei estabelece que a ação reivindicatória é a ação do proprietário em face do possuidor que injustamente tenha a coisa, exclui-se, necessariamente, a nosso ver, do pólo ativo aquele que não tem a propriedade.

Admitir que o compromissário comprador, que tenha compromisso de compra e venda irretratável e sem cláusula de arrependimento, quitado e registrado, já tem a propriedade, não nos parece ser a construção mais prudente.

Suponhamos, então, que o compromissário vendedor, não obstante tenha firmado o referido compromisso, venda o referido imóvel a terceiro, o que é perfeitamente possível, e este promova o registro da escritura no Registro de Imóveis. Quem, perante a lei e a todos, é o proprietário do imóvel? Consoante o que diz a doutrina e a jurisprudência podemos dizer tranquilamente que o proprietário do imóvel é aquele que consta no registro. E não o compromissário comprador, ainda que o seu contrato tenha registro anterior.

Outra questão, poderia o compromissário comprador propor ação reivindicatória em face do terceiro adquirente, o proprietário do imóvel. Nos parece que outras pretensões teria o compromissário, como adjudicação compulsória em face adquirente, uma vez que o compromisso registrado tem efeito erga omnes contra terceiros, como vimos acima. Ou, ainda, ação anulatória de título, se for o caso.

Em nosso sentir, equiparar o compromissário comprador, ainda que tenha o contrato registrado, abre precedente para que qualquer pessoa que tenha, aparentemente, direito de aquisição possa propor ação reivindicatória. Ou ainda que o compromissário e proprietário se equivalem não só para ação reivindicatória, mas para todos os outros efeitos da propriedade.