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1.4 O direito de propriedade

1.4.3 Propriedade e posse: diferenças e imbricações

Indiscutível é a relação, quase indissociável, entre posse e propriedade. A começar  pelo  art.  1.196  do  Código  Civil  que  se  refere  à  posse  como  “o  exercício,  pleno   ou   não,   de   algum   dos   poderes   inerentes   à   propriedade”.   Isso   não   quer   dizer que somente o proprietário possa ser o titular da posse, mas que haverá sempre uma pessoa, proprietária ou não da coisa, de fato exercendo poder sobre ela. A detenção física, é, aliás, um dos elementos que compõem a posse.

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MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso direito civil: direito da coisas , v.3. 42 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 00.

49 WHASHINGTON DE BARROS MONTEIRO assevera   que   “ainda   no   caso   de   condomínio   não   desaparece   esse   exclusivismo, porque os condôminos são, conjuntamente, titulares do direito; o condomínio implica divisão abstrata da propriedade. (MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso de direito civil: direito da coisas , v.3. 42.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.100).

Queremos dizer que nem sempre o direito à posse está associado ao direito de propriedade. A constitucionalização do direito civil brasileiro contemporâneo fez adotar-se a defesa da autonomia da posse frente ao direito de propriedade50.

1.4.3.1 Posse: fato ou direito?

Costuma-se dizer que a propriedade é um direito e que a posse é um fato, todavia, a questão não é tão simples. Ao contrário, doutrinariamente a quem defenda que a posse seja apenas fato, mas também a quem defenda que a posse é um direito. Para uma terceira corrente, híbrida, a posse é fato e direito51.

Como se vê, a tarefa de conceituar a posse também não tem sido fácil, mas podemos dizer que a doutrina se divide, basicamente, em duas teorias: a de SAVIGNY, segundo a qual a posse é o poder imediato que alguém tem de dispor fisicamente da coisa ou de defendê-la de quem quer que seja, com animus de dono, e a de IHERING, que conceitua a posse como sendo o poder sobre a coisa sem necessidade do animus .

A distinção entre as duas teorias encontra-se nos elementos que compõem a posse. Para Savgny é necessário que haja corpus e animus domini. Para Ihering, basta que haja corpus, pois o animus está ínsito no poder de fato exercido sobre a coisa52.

O Código Civil de 1916 filiou-se à teoria de Rudolf Von Ihering, considerando o possuidor mero detentor da coisa, conforme dispunha o seu art. 485: " Considera-se possuidor todo aquele, que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade".

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À guisa de exemplo da autonomia da posse em face do direito de propriedade, o STJ editou a Súmula 84, cujo enunciado diz o seguinte: "É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro."

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Segundo ensinamentos de Maria Helena Diniz (DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. v.4. 22. ed. rev. e atual. de acordo com a reforma do CPC. São Paulo :Saraiva, 2007, p. 44-53), entre os que defendem que a posse é um fato, estão: Windscheid, Trabucchi, Van Wetter e Cujacius. Para Savigny e Lafayette a posse é fato e direito. Já para Ihering e Teixeira de Freitas a posse é um direito.

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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. v. 4. 22. ed. rev. e atual. de acordo com a reforma do CPC. São Paulo :Saraiva, 2007, p.36-37.

O Código Civil vigente manteve praticamente a mesma redação no art. 1.196. Assim, como o Código revogado, o Código Civil de 2002 adotou a teoria da aparência, segunda a qual considera-se o possuidor aquele que ocupa materialmente a coisa, independente do animus, presumindo-se que a coisa lhe pertence.

Segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA53 há  “uma  situação  de  fato,   em que uma pessoa, que pode ou não ser proprietária, exerce sobre uma coisa atos e poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a”.

Assim, embora intrinsicamente ligadas, posse e propriedade são coisas distintas. O possuidor tem, de fato, o exercício, pleno ou não, de alguns ou de todos os poderes inerentes à propriedade. Ou seja, age sobre a coisa como se proprietário fosse. Por isso, costuma-se dizer que a posse é a exteriorização de fato da propriedade.

Para PONTES DE MIRANDA, no entanto a posse não é o exercício do poder inerente à propriedade ou ao domínio, mas o poder de exercê-lo, como bem explica:

A posse é estado de fato, em que acontece poder, e não necessariamente ato de poder. A relação possessória é inter-humana e a posse exerce-se por atos ditos possessórios; mas tem-se de distinguir, ainda no mundo fáctico, o poder e o exercício do poder. A posse é poder inerente ao domínio ou à propriedade. Não é o poder inerente ao domínio ou à propriedade; nem tão-pouco, o exercício dêsse poder. Rigorosamente, a posse ;e o estado de fato de quem se acha na possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem fôsse proprietário ou tivesse, sem ser proprietário, poder que sói ser incluso no direito de propriedade (usus, frustus, abusus)54.

O Código Civil vigente adotou o conceito de posse como poderes que decorrem da propriedade, conforme dispõe o art. 1.196: "Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade".55

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PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 18. ed. v.4, atualizada por Carlos Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.14.

54

MIRANDA, Pontes de. Direito das coisas: Posse. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 1.ed. São Paulo: RT, 2012. (coleção tratado de direito privado: parte especial; 10), p.56-57.

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Em nosso entender, a posse, no que diz respeito à detenção, ao exercício do poder sobre a coisa, é fato. Mas por outro lado, não se pode negar o caráter jurídico a ela conferido. Basta verificar a proteção dada à posse pelo próprio sistema jurídico vigente, como por exemplo via interditos proibitórios, como dispõe o art. 1.210 do CC:

Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.

Segundo os ensinamentos de LAFAYETTE:

o elemento da posse, a detenção, é em si um mero fato que não acarreta consequências legais. Mas o concurso do elemento moral, a intenção, comunica-lhe caráter jurídico. Este caráter jurídico, resultante da natureza elementar da posse, e o modo com que ela tem sido tratada pela legislação civil elevam-na à categoria de um direito56.

Coadunamos com a teoria de Savigny encampada por Lafayette, segundo a qual a posse é fato e direito. Pois, além dos motivos acima expostos, em sendo a posse mero fato, não haveria como explicar as hipóteses, que não são raras, em que o direito à posse se sobrepõe ao direito de propriedade. Exemplo disso é o que dispõe o §2° do art. 1.210 estabelecendo que "não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa".

Na época da colonização do Brasil por Portugal, implementou-se para disciplina da propriedade o Sistema de Sesmarias, que disciplinava a distribuição de terras para produção. O sistema não funcionou bem no Brasil, principalmente, devido a grande extensão territorial do País e a dificuldade do Governo de fazer os seus hostis habitantes - os índios da época - se submeterem às sesmarias. O fato é que havia propriedades de extensão gigantescas em poder de pouca gente, os colonizadores.

Iniciou-se naquela época a crise latifundiária do País e com ela os conflitos relacionados à posse de modo que havia necessidade de se criar normas de

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PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. Atualizado conforme o Código Civil de 2002 por Ricardo Rodrigues Gama. 1. ed. Campinas: Russell, 2003, p.44.

proteção do direito de posse. A primeira legislação destinada a disciplinar o sistema latifundiário no Brasil foi a Lei n. 601 de 1.850, chamada Lei de Terras, dispondo sobre as terras devolutas do Império.

Entretanto, somente no Código Civil de 1.916 é que a posse passou a ser reconhecida como direito e disciplinada de forma sistemática. Dedicou-se ao direito da posse os arts. 485 ao 523. No Código Civil vigente a posse está disciplinada no Livro III destinado aos Direitos das Coisas, pelos arts. 1.196 ao1.224.

Veremos a seguir que a autonomia da posse em face do direito de propriedade atende aos valores sociais constitucionalmente protegidos e adotados pelo Código Civil de 2002.