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2 CAMPONESES E AGRONEGÓCIO: CONCEITO, RELAÇÃO COM A TERRA E

2.1 Conceito de camponês

A lógica do capital e da sua circulação é base para a movimentação da sociedade e das principais atividades econômicas. O fluxo de capital é constante e aparentemente irrefreável; fora dessa roda qualquer outra atividade não-capitalista é considerada irrelevante e insuficiente para aplacar os anseios da economia moderna.

Martins (1975) entende como sendo essa atividade não-capitalista como uma organização produtiva que abriga padrões tradicionais, onde há a preservação de atividades comunitárias e costumes locais. Nesse caso, a organização na comunidade rebate a necessidade dos camponeses de participarem de uma economia monetária.

Com suas particularidades, as atividades não-capitalistas são alvos das ações modernizadoras do capitalismo, pois, dentro da lógica de desenvolvimento globalizante, o camponês é visto muitas vezes como um personagem “atrasado” e sua forma de produção não atende à demanda atual de produção, que cresce de forma impressionante com o aumento quantitativo da população.

Nesse sentido, Martins (1988) destaca que a mercadoria gerada pelas forças capitalistas lança as populações tradicionais na contradição do mercado, ou seja: a mercadoria é um instrumento de dominação e exploração.

Ademais, é flagrante como a economia capitalista é tratada como a solução para os problemas de produção rural. Chayanov (2014, p.99) já esclarecia que:

Temos de aceitar tal tese, dada a indiscutível dominação exercida pelo capital financeiro e comercial nas trocas mundiais, assim como o papel incontestável que desempenha na organização atual da economia mundial, mas não devemos de modo algum estender tal tese a todos os fenômenos da nossa vida econômica. Ser-nos-á impossível prosseguir uma reflexão econômica contentando-nos com categorias capitalistas, pois um setor muito vasto da vida econômica (mais precisamente, a maior parte da esfera de produção agrícola) baseia-se não numa forma capitalista, mas numa forma completamente diferente: a da exploração familiar sem assalariados.

Assim, assume-se que, por mais que a movimentação capitalista seja intensa na produção de alimentos, ainda há que se considerar a importância da grande parcela de produtores familiares, que não seguem uma lógica de assalariamento para terem que produzir. Essa é a primeira dicotomia que se observa em relação ao agronegócio e atividade camponesa. O que determina o trabalho da unidade familiar agrícola não é o salário no fim do mês, e sim o esforço diário dispendido na lavoura.

Ainda conforme Chayanov (1974), a composição familiar define como será o volume de produção, pois os limites máximo e mínimo de produtividade são acertados pela quantidade de membros disponíveis ao labor na terra. Assim, o limite possível de trabalho depende da máxima intensidade de força que o indivíduo pode proporcionar. Além disso, a demanda em saciar suas necessidades é que determina o trabalho diário e, portanto, o volume de atividades econômicas6.

Além do mais, quem são essas pessoas que constituem a unidade familiar camponesa? Normalmente temos em uma residência vários níveis de parentesco (irmãos, tios, avós, afilhados, dentre outros). Chayanov (1974) engloba no conceito de família camponesa

6 Chayanov (1974) entende que o volume de atividade econômica não se resume somente ao trabalho realizado

todos aqueles que se sentam na mesma mesa para comer ou que se alimentam no mesmo prato. A relação familiar é íntima, determinada pelos laços afetivos entre os membros, que direcionam seus esforços na terra para o sustento de todos os integrantes.

Entretanto, mesmo essa ação de ajuda mútua na família não é argumento suficiente para conceituar o camponês. Marques (2008) expôs que ora há momentos nos quais o camponês serve para o capitalismo e ora entra em contradição com este, justamente porque o mercado capitalista impõe dominações à família camponesa, mas parece não ter condições de organizá-la. Na unidade de trabalho camponesa, o valor que é dado à produção é o de uso. E mais: os valores mais importantes para o camponês, além da terra, são o trabalho e a sua própria família. Nesse cenário, é importante destacar a grande influência da religiosidade sobre o modo de vida camponês; sua ética e valores confundem-se com os dogmas católicos.

Ainda de acordo com Marques (2008), o conceito de camponês brasileiro leva em consideração a histórica mobilidade espacial e a identidade dos indivíduos; além disso, deve- se considerar a forma de acesso à terra7 e a centralidade do papel familiar na organização produtiva.

Entretanto, a organização produtiva do camponês necessita preponderantemente que a unidade familiar gerencie a natureza e seus recursos, pois o seu esforço de trabalho depende diretamente das condições naturais. Marx (1890, p. 588) exemplifica a relação trabalho e recursos naturais:

Pondo de lado a estrutura mais ou menos desenvolvida da produção social, a produtividade do trabalho depende de condições naturais [...]. As condições naturais externas se distinguem economicamente em duas grandes classes: riquezas naturais de meios de subsistência, isto é, solo fértil, águas piscosas etc. e riquezas naturais de meios de trabalho a saber quedas d’água, rios navegáveis, madeira, metais, carvão etc. Nos primórdios da civilização, o papel decisivo cabe à primeira espécie de riquezas naturais; nos estágios de desenvolvimento superiores, à segunda espécie [...]. Quanto menor o número das necessidades naturais que é o imperativo satisfazer e quanto maior a fertilidade natural do solo e a excelência do clima, tanto menor o tempo de trabalho necessário para manter e reproduzir o produtor.

Portanto, para conseguir sua subsistência, o camponês deve ter acesso a boas condições naturais para que seu trabalho prospere sem que haja a necessidade de desgastar-se com um maior trabalho braçal; caso as condições sejam desfavoráveis, o labor aumenta.

Entretanto, é importante destacar que Marx (1890) defendia uma posição que o camponês era uma classe fadada ao desaparecimento, pois à medida que a realidade

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O acesso à terra do camponês, de acordo com Marques (2008), não é somente a posse da família. A família camponesa também é assim identificada sendo posseira, arrendatária, parceira, dentre outras formas de ocupação.

capitalista que se impunha no mundo (assalariamento e capitalistas), o modo de produção não-capitalista seria cada vez mais engolido.

Nesse sentido, qual o mais importante elo que mantém o camponês resistindo? Uma das suas maiores características é a confluência entre trabalho familiar e relação com a terra: o sentimento de pertencimento ao lugar, a criação dos filhos e os ensinamentos transmitidos entre as gerações permite que estes camponeses mantenham traços culturais de relação com a natureza e com o seu próximo bastante evidentes. Mesmo levando em consideração essa tradicionalidade, percebe-se que o camponês agrega muitos valores (ou até mesmo perde/altera alguns) no decorrer do tempo, devido às novas dinâmicas econômicas e territoriais. O espaço comum e natural está sendo subtraído para atender às necessidades do mercado agrícola, principalmente.

Dessa forma, o camponês resiste à regulação macrossistêmica do lucro a qualquer custo, como aponta Costa (2014). A microeconomia camponesa, portanto, não se movimenta a partir da ação individual, e sim de todos os indivíduos da unidade familiar, já que todos são, ao mesmo tempo, produtores e consumidores.

Em macroescala, paradoxalmente, os camponeses são por muitas vezes valorizados diante de crises econômicas, por exemplo. Ploeg (2009) esclareceu que a dependência do capital financeiro da agricultura capitalista pode gerar uma quebra do balanço entre produção e lucro (sem levar em consideração aqui os fatores climáticos que também afetam a produtividade). Ao passo em que, em quantidade, os camponeses superam a agricultura empresarial e, por isso, deve ser motivo de atenção para auxiliar na resolução dos dilemas econômicos atuais.

Além das características supracitadas que o camponês traz historicamente, Ploeg (2009) também destaca a sua busca por autonomia como principal marca de sua construção; a unidade familiar camponesa tem como objetivo (quase que inconsciente) criar uma base de produção autogerida, sendo que nesse sistema a terra é o pilar para os demais recursos (força de trabalho, cultivos, criação de animais, dentre outros). Esse espírito de autonomia diante do avanço do capital continua movendo as principais lutas no campo (as quais serão discutidas ainda neste capítulo).

Mas o que essa busca constante de autonomia gera na unidade camponesa familiar? Chayanov (2014) aborda essa questão a partir do lugar que o camponês ocupa diante do conjunto econômico nacional e quais vínculos com o mercado capitalista podem ser realizados, se desta relação nascerem benefícios mútuos. Assim, é de suma importância caracterizar a morfologia da unidade camponesa como um setor social distinto.

Chayanov (2014) entende que há diferenças dentro das atividades de várias unidades familiares camponesas, e que algumas se adequam melhor que outras à economia capitalista; entretanto, destaca que a demografia e o crescimento familiar não são fatores determinantes para a sobrevivência da unidade camponesa; dentro desse cenário, as condições de mercado podem tanto facilitar quanto dificultar o desenvolvimento da atividade econômica familiar.

Ou seja: as imposições que a atividade capitalista faz em relação ao mercado consumidor geram demandas, e tanto um pequeno quanto um grande produtor camponês (em relação à quantidade de terra disponível para cultivo) estão sujeitos às demandas desse mercado.

Em suma, o camponês é entendido como uma classe descolada da realidade capitalista; ela mantém condições de trabalho particulares, mas que se permite ocasionalmente assalariar-se. Diante dessa constatação, o Estado, enquanto mantenedor do bem-estar social, busca formas de auxiliar as comunidades, dentre elas as famílias de lavradores.

Diante da realidade brasileira, os pequenos produtores foram enquadrados em outra conceituação, dada em 2006 pelas Diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, oficializada na Lei Nº 11.326.

Neste documento, há a conceituação do agricultor familiar, mais precisamente em seu artigo 3º:

Art. 3o Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:

I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;

III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo; (Redação dada pela Lei nº 12.512, de 2011)

IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

§ 1o O disposto no inciso I do caput deste artigo não se aplica quando se tratar de condomínio rural ou outras formas coletivas de propriedade, desde que a fração ideal por proprietário não ultrapasse 4 (quatro) módulos fiscais.

§ 2o São também beneficiários desta Lei:

I - silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes;

II - aqüicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2ha (dois hectares) ou ocupem até 500m³ (quinhentos metros cúbicos) de água, quando a exploração se efetivar em tanques-rede;

III - extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores;

IV - pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade pesqueira artesanalmente. V - povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º; (Incluído pela Lei nº 12.512, de 2011) VI - integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º. (Incluído pela Lei nº 12.512, de 2011)

§ 3o O Conselho Monetário Nacional - CMN pode estabelecer critérios e condições adicionais de enquadramento para fins de acesso às linhas de crédito destinadas aos agricultores familiares, de forma a contemplar as especificidades dos seus diferentes segmentos. (Incluído pela Lei nº 12.058, de 2009)

§ 4o Podem ser criadas linhas de crédito destinadas às cooperativas e associações que atendam a percentuais mínimos de agricultores familiares em seu quadro de cooperados ou associados e de matéria-prima beneficiada, processada ou comercializada oriunda desses agricultores, conforme disposto pelo CMN. (Incluído pela Lei nº 12.058, de 2009) (BRASIL, 2006, p. 1).

Na referida lei, os camponeses são identificados como agricultores familiares, e para efeito de abertura de linhas de crédito, há, além de outras prerrogativas, a utilização de uma unidade de medida – os módulos fiscais – para mensurar o limite de terras que cada família deve ter para se enquadrar na referida lei. Nesse caso, os módulos fiscais mudam de município para município e, normalmente, equivalem a maiores quantidades de hectares quanto maior for a disponibilidade de terra naquele município, ou até mesmo quando a demografia é menor.

Nesse caso, Marques (2008) lembra que o conceito de camponês no Brasil foi algo extremamente relacionado ao campo de luta política desta população, principalmente na década de 1950; assim, o conceito de agricultor familiar, que foi proposto como substituto para a terminologia “camponês” (tanto na esfera política quando acadêmica) não faria muito sentido, pois desconsidera as particularidades da classe, transformando-a em algo regimentado e previsível, algo que a história prova o contrário.

A discussão acerca do conceito de agricultura familiar aprofunda-se quando o modelo do agronegócio começa a ser alvo de críticas mais profundas em relação ao seu modus operandi e paralelamente o entendimento de camponês, como classe política, se fortalece. De acordo com Marques (2008), o conceito de agricultura familiar opõe-se ao de agricultura patronal, mas ela tem em sua criação uma forte influência do Estado e agrega outros valores para a economia capitalista, como prover alimentos para a sociedade no geral. Mas esse entendimento não aprofunda as características excludentes que a agricultura capitalista exerce sobre os pequenos produtores familiares.

Assim, o conceito de camponês, por ser mais abrangente e levar em consideração a histórica luta pela terra e os passos políticos de uma classe trabalhadora, por muitas vezes marginalizada frente ao avanço do capital é, pois, o entendimento mais coerente da vida no

campo. O agricultor familiar é, por definição, um parâmetro utilizado como forma de regimentar esta classe, tornando-a algo engessado e sem substância.

A partir desse contexto, qual o conceito antagonista ao de camponês? O agente econômico cada vez mais recorrente no meio rural, o agronegócio, diverge no tempo, na forma e no sentido de produção da unidade camponesa familiar.