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Um grande domínio morfoclimático que intercala floresta densa, de vegetação lenhosa, com uma paisagem savanoide. O Cerrado piauiense, que caracteriza principalmente o sul do Piauí, foi palco das primeiras incursões do capital do agronegócio com expressiva força no final de 1990. Um dos principais perfis dos municípios que atraíram os primeiros empreendimentos, além das terras a preços irrisórios, foi a extensão territorial das áreas verdes, grandes fundos territoriais, que se tornaram foco do capital agroindustrial.

Essas grandes extensões de terra dos municípios ao sul do Piauí têm justificativa histórica e para contextualizar a conjuntura agrícola do Estado é necessário, portanto, resgatar o processo de ocupação de seu território. O carro-chefe, neste caso, foi a pecuária, deslocada do litoral nordestino, por entrar em conflito com as áreas de plantio de cana. Em princípio, a população que se deslocou para o Piauí era constituída de poucos indivíduos, pois a criação extensiva não necessitava de muita mão de obra.

Nesse início de exploração das novas terras para pecuária, o foco era escolher locais onde havia água em abundância e navegabilidade para o escoamento de produtos. Assim, o principal rio piauiense, o Parnaíba, acolheu em suas margens grandes propriedades, justamente por se estender do extremo sudoeste até o oceano Atlântico e facilitar o transporte

da produção, que seguia de barco a vapor e posteriormente era carregada em transatlânticos que aportavam nos portos de Amarração e Tutóia (MIRANDA, 2015).

Portanto, seguindo o curso dos rios, na segunda metade do século XVII, um rendeiro da família Ávila5 se destacou entre tantos: o “capitão do sertão” Domingos Afonso Mafrense que, segundo Silva (2016), foi o maior arrendatário das terras piauienses e, por conseguinte, também um dos maiores genocidas indígenas da região.

Por volta de 1670, os vales do Rio Canindé e Piauí já estava quase inteiramente ocupados por fazendas de gado, sob domínio de vaqueiros da confiança de Domingos Afonso Mafrense. O arrendatário, que possuía em torno de trinta fazendas de gado e tinha sócios (dentre eles seu irmão Julião Afonso), ganhou juntamente com herdeiros diretos da Casa da Torre as primeiras outorgas de terras no Piauí; esse seleto grupo detinha o poder em quase todo o território, e o mantinha através da violência e do autoritarismo (ALVES, 2003).

Contudo, muitas outras incursões surgiram. As principais criações extensivas de gado eram preponderantemente comandadas por criadores oriundos de Salvador e Olinda; nesse passo, conforme Andrade (1975), as regiões com maiores concentrações de criações de gado margeavam os maiores cursos d’água do sul/sudeste piauiense. Cabe ressaltar que esse processo ocorria também impulsionado pelo ímpeto em expandir o domínio de novas terras da sesmaria antes inexplorada.

Araújo et al (2006) e Lima (2016) concordam que, com o passar do tempo, a população piauiense possuía indivíduos suficientes para que as terras ocupadas se tornassem uma província; esta constatação veio da incursão de jesuítas pela sesmaria e, como resultado da reunião entre vários fazendeiros, foi escolhida a primeira sede da província do Piauí, sediada em área central do povoamento, às margens do riacho Mocha, onde se localizava uma das fazendas de Mafrense. Assim, como marco principal da freguesia de Nossa Senhora da Vitória, foi criada, em 1697, uma igreja de mesmo nome. Esta freguesia viria a se tornar, posteriormente, Oeiras, a primeira capital do estado.

Dessa maneira, é possível destacar que a ocupação com feições econômico- exploratórias da pecuária extensiva em território piauiense é reconhecidamente a principal atividade do estado do período colonial até meados do século XIX. Contudo, Moraes (2006) lembra que mesmo a criação de gado sendo a principal atividade da época, não se deve considerá-la um ciclo econômico, justamente pela falta de dinamismo da atividade. Ela só se

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Segundo Alves (2003), esta família baiana tinha uma instituição intitulada de Casa da Torre, que injetava recursos financeiros em aventureiros, caçadores indígenas, visando ocupar terras para praticar a pecuária extensiva.

sustentou no estado em decorrência de crises enfrentadas por outras atividades econômicas voltadas para o mercado exterior, como a açucareira e a de mineração; nesse caso, a criação de gado monta em território piauiense um processo de autossubsistência, atendendo principalmente ao mercado regional. Ademais, a pecuária abastecia outros mercados, como o litoral baiano e o mercado mineiro (a logística da pecuária piauiense será aprofundada após o exame de qualificação).

Mesmo com força de mercado e atendendo parte das necessidades da população que crescia paulatinamente, a economia necessitava de outras atividades, e não fosse somente a pecuária; assim, em meados de 1700, como explica Silva (2016), o plantio de algodão foi trazido às terras do Piauí, seguido pela mandioca, arroz, feijão e milho.

Nesse ínterim, a pouca dinâmica econômica em território piauiense aliava-se ao problema da falta de governabilidade, que reforçava o poderio dos grandes proprietários das fazendas. O fazendeiro, para consolidar o seu poder absoluto, impunha ordem em seu entorno; mas quem mexia na questão dos impostos que deveriam ser voltados para a coroa portuguesa eram os párocos. Porém, isso sequer ilustrava um modelo de governança que a região necessitava. Assim, a partir da mobilização do povo, em 1717, o primeiro município piauiense foi fundado: a Vila de Mocha, que correspondia a todo o território piauiense (ARAÚJO et al, 2006).

Seguindo os rumos de consolidação do território piauiense, o algodão surgiu da necessidade de expandir a produção voltada para o mercado internacional; no século XIX, a Guerra de Secessão nos Estados Unidos fez este comércio impulsionar, trazendo um incremento na receita gerada na Província piauiense, o que tornou a economia algodoeira a segunda mais importante do estado, perdendo somente para a pioneira pecuária extensiva (MORAES, 2006).

Portanto, a agricultura de exportação piauiense ganhava contornos relevantes para o cenário internacional; assim, a ocupação territorial que se iniciou no sul do estado agora aponta para o litoral, a fim de buscar novos domínios a serem explorados (CARVALHO, 2016).

Com o final da Guerra de Secessão (em 1865), a colheita de algodão sofreu uma grande queda na sua produção, que atingiu seu pior rendimento em 1872, ocasionando o surgimento de novas atividades, como a extração de borracha da maniçoba e cera de carnaúba. Contudo, mesmo estas atividades extrativistas tiveram um declínio na sua exploração.

No início do século XX, a economia agrária piauiense, até então baseada na combinação entre pecuária extensiva e lavoura algodoeira, inserir-se-ia no mercado internacional pelo extrativismo vegetal da borracha da maniçoba, cera de carnaúba e amêndoa de babaçu. Esse extrativismo, porém, logo sofreria refluxos: a exploração de borracha de maniçoba paralisou-se totalmente por volta de 1920, em face a entrada, no mercado mundial, da que era produzida no sudeste asiático. As exportações de cera de carnaúba e de amêndoa de babaçu interromperam-se em torno dos anos 1950, e suas explorações se limitaram ao fornecimento de matérias- primas às indústrias locais que, por seu turno, restringiram-se ao fornecimento de subprodutos às indústrias do Centro-sul e ao abastecimento, com óleos comestíveis e outros derivados, do mercado regional (MORAES, 2006, p. 177).

Observa-se assim que a economia piauiense, em suas melhores chances de se consolidar e aumentar a receita interna, foi freada por um movimento imprevisível do capital, a partir da substituição de matérias-primas no cenário mundial. O século XX vascularizou as possibilidades de o estado acompanhar a tendência do comércio mundial, mas nem mesmo a atividade extrativista fez o Piauí manter-se no mercado; a difusão do capitalismo, como apresentado historicamente aos piauienses, traz consigo a exclusão e a criação pujante das desigualdades sociais.

Essa condição piauiense é sentida no rumo que a pecuária extensiva tomou: ainda no século XXI, ela é uma das atividades mais praticadas no estado; contudo, ainda guarda um caráter de subsistência herdado das condições que a criação de gado encontrou no Piauí.

Um dos outros fatores de altos e baixos na economia piauiense foi seu efetivo populacional e as relações que os indivíduos mantinham entre si; com poucas casas, sendo que a maioria pertenciam aos fazendeiros, as trocas comerciais eram diminutas, fazendo com que a vida naquela época fosse difícil, em decorrência do relativo isolamento das comunidades e da distância entre os povoados.

Segundo Lima (2016), essa distância entre grandes propriedades e povoados ganhou a alcunha de “roça do comum”, onde os vizinhos podiam passar para procurar suas cabeças de gado, mas eram terminantemente proibidos de levantarem currais ou casas.

Alves (2003) sinaliza a irregularidade em que se dava a instalação desses aglomerados, de forma muito aleatória, pois a tendência era sempre a busca por localidades onde a água fosse de fácil acesso. A concentração da população atual no Piauí é espelho dessas ocupações, pois as maiores médias de habitantes por metro quadrado margeiam os principais rios do estado.

O atraso observado no desenvolvimento econômico-social do Piauí na época também é justificado pela concentração de terras nas mãos dos poucos fazendeiros. Castro (2008) reforça que o patronado rural exercia forte influência, através da criação de relações oligárquicas que só se fortaleceram com o passar do tempo.

Nessa organização social, surgiram dois principais tipos de latifundiários, que tinha como objetivo consolidar o poder dos grandes proprietários no Piauí:

[...] a Provisão [...] manteve a presença de grandes proprietários absenteístas, garantindo propriedades e permitindo a ampliação de posses; e oficializou a existência, a partir dos arrendatários e posseiros, de grandes proprietários residentes e domiciliados nas terras. [...] Investidos de poder da terra, os latifundiários residentes compuseram uma fração hegemônica de poder econômico, político e social no Piauí; a partir de seus interesses e necessidades, estruturou-se a vida em sociedade; investiram-se de autoridade oligárquica sobre seus domínios, habitantes e cargos, melhoraram estradas, ampliaram e adornaram-se do pequeno número de povoados; e ainda se desfrutando plenamente da nova condição de proprietários já reproduziram relações de exploração de trabalho de livres pobres e libertos na condição de agregados, moradores ou de trabalhadores escravizados, nas lidas das fazendas (LIMA, 2016, p. 37-38).

É possível afirmar, dessa forma, que essa estrutura que aumentava o abismo entre os grandes proprietários e os pequenos agricultores perdura até o século XXI. Assim, aliada à grande concentração de terras, a especulação sobre o território era tida por muitas vezes mais como reserva de valor do que como simplesmente uma unidade de produção agropecuária. Igualmente essa situação gerava certa fragilidade social na base da pirâmide social (CASTRO, 2008).

Diante desse cenário, constata-se que na verdade, desde sua colonização, o Piauí abrigou relações entre alguns personagens: os grandes fazendeiros, os índios nativos, os escravos e trabalhadores que acompanharam a pecuária extensiva. Como bem exemplifica Priore (2016), o sertanejo, o vaqueiro, o tropeiro, enfim, os conhecidos “homens do caminho” (nascidos nas primeiras incursões coloniais) foram peças fundamentais para a diversificação da economia e para o cotidiano do território.

Essa miscelânea, embora gerando conflitos, comprova que a formação do Piauí está alicerçada não só nos grandes produtores agropecuários, mas também no pequeno produtor, no trabalhador braçal, que constantemente era tensionado a manter-se sobre o domínio da exploração gerada pelo tipo de produção que se instalava em território piauiense.

A estratificação social estruturada no campo gerou formas diferentes de reprodução social; enquanto o grande produtor tinha seus esforços voltados para o mercado capitalista e para a especulação fundiária, ao trabalhador era incumbida a tarefa de produzir para a sua própria subsistência; o labor na terra e o apego à sua rotina diária molda o camponês piauiense, personagem que, a partir de então, é recorrente na história do estado, a exemplo de todo o Brasil.

Assim, a pari passu da modificação produtiva do Piauí principalmente a partir da década de 1950 (que será explorada mais detidamente no tópico seguinte), surgem os cultivadores livres que ocupavam as lacunas entre as fazendas piauienses; eles serviriam, como demonstra Moraes (2006), para sustentar os indivíduos sendo muito importante para aqueles; contudo, diante das atividades economicamente relevantes para o mercado, a pequena produção foi ofuscada historicamente, tomada quase como invisível e rotulada como uma atividade de subsistência direcionada para a força de trabalho.

No desenrolar da história, a “invisibilidade” do sitiante (pequeno produtor) acompanha as vascularidades que o capitalismo agrário construiu no Piauí, contrastando em corpo e forma em relação à agropecuária de mercado. O que não se via (ou por simples conveniência não se queria ver) demonstra sua grande importância para o desenvolvimento econômico e social do estado. A convivência sempre conturbada agrava-se com o desenvolvimento do mercado capitalista e a instalação avassaladora de uma força do capital reinventada para o mundo globalizado: o agronegócio.

1.3 Avanço de novas forças econômicas no rural piauiense e a valorização do “novo