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1. ELEMENTOS ESSENCIAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

2.6. O conceito de dano moral

São muitas as definições de dano moral que podem ser encontradas na doutrina pátria e estrangeira. Para que se possam extrair os principais pontos de caracterização do instituto, serão compiladas as mais importantes. É oportuno ressaltar que o dano moral, neste item, será analisado em sua concepção ampla, e não em seu sentido estrito. A diferença entre ambas as espécies será explicada posteriormente.

Henri Lalou define o dano moral como o atentado aos direitos extrapatrimoniais: os direitos políticos, os direitos inerentes à personalidade – direito à vida, liberdade, honra – e os direitos de família264. No que tange a esse ponto, o posicionamento deste estudo coaduna-se com o esposado pelo autor, na medida em que se sustenta que a lesão aos direitos da personalidade é o grande elemento identificador dos danos morais.

René Savatier entende que o dano moral pode se travestir de um sofrimento psíquico, o chamado pretium doloris, ou então, com bastante frequência, ser uma dor moral de origem diversa, como a lesão à reputação, à autoridade legítima, ao seu pudor e ao seu amor próprio estético265. A definição de René Savatier é muito importante para este trabalho, pois prenuncia a divisão que se pretende fazer entre dano moral em sentido amplo e dano moral em sentido estrito, o pretium doloris mencionado pelo autor.

Jaime Santos Briz, por sua vez, define os danos não patrimoniais como aqueles cuja valoração em dinheiro não tem a mesma base de equivalência que caracteriza os patrimoniais, por afetarem elementos ou interesses de difícil valoração pecuniária266.

Teresa Ancona Lopez, vislumbrando a questão por outro ângulo, pondera que o dano é sempre consequência de uma lesão a um direito, seja ele patrimonial ou não, e que a pessoa deve servir de medida do dano em vez do patrimônio, pois aquela tanto pode ser

264 LALOU, Henri. La responsabilité civile: principes élémentaires et applications pratiques, p. 219-220. No mesmo sentido, Carlos Alberto Bittar (Responsabilidade civil – teoria e prática, p. 16-17). Esse autor caracteriza o dano moral como o dano relativo a elementos do complexo valorativo intrínseco do indivíduo, em suas projeções na sociedade. Segundo ele, são morais os danos aos atributos valorativos da pessoa, enquanto ser integrado socialmente, ou seja, os danos aos elementos que a individualizam como ente, como a honra, a reputação e as manifestações do intelecto.

265 SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile en Droit français, p. 101. Da mesma forma, Henri Mazeaud e Léon Mazeaud utilizam-se do termo prejudice moral para caracterizar os danos que não se referem de maneira alguma ao patrimônio e causam, com frequência, uma dor moral à vítima, como a lesão corporal, o atentado à honra, reputação, liberdade pessoal, vida e a violação de domicílio (Traité théorique et

pratique de la responsabilité civile delictuelle et contractuelle. 3. ed. Paris: Librarie du Recueil Sirey, 1938a.

t. I, p. 361).

266 BRIZ, Jaime Santos. La responsabilidad civil – derecho sustantivo y derecho procesal. 3. ed. Madrid: Montecorvo, 1981. p. 140-141. Com entendimento semelhante, também Wilson Melo da Silva (O dano

lesada no que é quanto no que tem. Uma causa moral pode determinar um grave prejuízo econômico, da mesma forma que uma causa material pode determinar um prejuízo moral267. Há ainda lesões que acarretam conjuntamente prejuízos morais e materiais, como em rigor é o caso do dano estético, sobre o qual se tecerá comentários no item 2.10.

Apresentado um panorama sintético do entendimento que se faz acerca dos danos morais, ressaltar-se-ão alguns pontos relevantes para o posterior desenvolvimento do trabalho, sempre considerando que a ordem constitucional protege os indivíduos de qualquer ofensa – ou ameaça de ofensa – à sua personalidade, sendo o dano moral a concretização dessa ofensa.

De início, ressalta-se posicionamento favorável a que as definições de dano moral levando em conta apenas os elementos “dor” e “sofrimento”268 devem ser substituídas por aquelas que efetivamente reconhecem elementos mais definidos, como, por exemplo, a lesão a direitos da personalidade, para a caracterização desse dano. Na verdade, a dor é meramente a sintomatologia do dano moral, não sendo essencial para sua caracterização269. Em face da assertiva ora expressa, listam-se as seguintes características próprias desse tipo de dano:

1. O dano moral é, em geral, considerado uma lesão de direito não patrimonial, quando se entende o patrimônio como o conjunto de bens materiais da pessoa, mas pode ser identificado, como aqui se faz, com uma lesão psicofísica, capaz de atingir o patrimônio moral do indivíduo.

2. O dano moral sempre envolve abalo aos direitos da personalidade ou direitos fundamentais, que são direitos da personalidade ínsitos na Constituição Federal. No viés constitucional da matéria, muito se disserta acerca de um direito geral de personalidade, do qual decorrem inúmeros outros direitos. Verifique-se o Enunciado 274, da IV Jornada de Direito Civil:

“Enunciado 274: Os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1o, III, da

267 LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético – responsabilidade civil, p. 22.

268 São exemplos de definições nesse sentido as apresentadas por José de Aguiar Dias (Da responsabilidade

civil, t. II, p. 721); Wilson Melo da Silva (O dano moral e sua reparação, p. 355) e Yussef Said Cahali

(Dano moral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 19).

269 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil – da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos, p. 129.

Constituição (princípio da dignidade humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação”.

3. O dano moral, ao contrário do material, não é homogêneo e pode se apresentar em uma multiplicidade de formas, exigindo também variedade nos meios de reparação270. De fato, há várias espécies de dano moral, tantas quantas puderem decorrer da cláusula geral de tutela da pessoa humana, enquanto o dano material admite uma única divisão, entre danos emergentes e lucros cessantes, sempre derivando de interesse que causa prejuízo economicamente apreciável271.

4. Ainda que o elemento “dor”, em suas modalidades física ou emocional, esteja presente na maior parte dos casos em que se verifica o dano moral, em verdade este se trata de puro reflexo ou consequência da lesão. Anderson Schreiber ressalta ser possível a ocorrência de dano moral sem o tão mencionado sofrimento, fornecendo o exemplo do indivíduo que tem sua imagem utilizada em um contexto publicitário. A referida vítima pode até nem sofrer psicologicamente com a exposição de suas feições, mas, pelo simples fato de não ter autorizado a exibição, esta configura uma lesão concreta ao direito de imagem e, por decorrência, um dano moral272.

5. Por fim, o dano moral suscita prejuízo que não pode ser avaliado economicamente por critérios matemáticos – dano emergente e lucros cessantes, por exemplo –, devendo ser estimado mediante outros critérios, que oscilam bastante, dependendo da natureza jurídica atribuída à indenização dos danos morais.

As características retromencionadas são atinentes ao dano moral causado à pessoa física tão somente, e não podem ser expandidas para o âmbito da reparação de danos morais causados à pessoa jurídica. De fato, as pessoas jurídicas não têm direitos fundamentais ou direitos da personalidade, que são próprios da pessoa humana. Entende-se

270 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil, t. II, p. 721. Roxana Cardoso Brasileiro Borges ressalta que os direitos da personalidade não são numerus clausus (Direitos de personalidade e dignidade: da responsabilidade civil para a responsabilidade constitucional. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões controvertidas – responsabilidade civil, v. I, p. 561). Sendo assim, decerto também não o podem ser os danos morais.

271 MELO, Diogo L. Machado de. A função punitiva da reparação dos danos morais (e a destinação de parte da indenização para entidades de fins sociais – artigo 883, parágrafo único, do Código Civil). In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.), op. cit., p. 97.

272 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil – da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos, p. 198.

que quem poderia se enquadrar nos critérios ora apresentados são os representantes legais da pessoa jurídica, mas não ela própria. Frise-se que a pessoa jurídica não é titular nem mesmo da tão aclamada honra objetiva, tratando-se, tal consideração, de mero estratagema para garantir o ressarcimento de danos materiais de difícil reparação (por dificuldade de comprovação). No que tange ao direito à imagem, este possui uma concepção diferente da observada na pessoa física. De fato, nesta última, a imagem é um atributo constitucional, que pode até mesmo visar à preservação da integridade psíquica de seu titular. No tocante à pessoa jurídica, está relacionada aos prejuízos financeiros oriundos da mácula à sua reputação perante o mercado.

Convém ressaltar, entretanto, que o entendimento aqui esposado é minoritário, tendo em vista o disposto pelo art. 52 do CC273, bem como pela Súmula n. 227 do STJ, que consolidou, na jurisprudência, a existência e possibilidade de reparação de danos morais da pessoa jurídica.

A despeito desse fato, posicionamento contrário, e semelhante ao aqui defendido, vem sendo sustentado por doutrina abalizada. Pietro Perlingieri é um dos integrantes da corrente em foco; ao estudar a questão do ponto de vista do Direito Constitucional, assim se manifesta o doutrinador:

“Para as pessoas jurídicas o recurso à cláusula geral da tutela dos ‘direitos invioláveis’ do homem constituiria uma referência totalmente injustificada, expressão de uma mistificante interpretação extensiva fundada em um silogismo: a pessoa física é sujeito que tem tutela, a pessoa jurídica é sujeito, ergo, à pessoa jurídica deve-se aplicar a mesma tutela. Daqui uma concepção dogmática e unitária da subjetividade como fato neutro. O valor do sujeito pessoa física é, todavia, diverso daquele do sujeito pessoa jurídica. [...] É necessário adquirir consciência da identidade apenas aparente de problemáticas como, por exemplo, o segredo, a privacidade e a informação. Estes aspectos assumem valor existencial unicamente para a pessoa humana; nas pessoas jurídicas, exprimem interesses diversos, o mais das vezes de natureza patrimonial. O sigilo industrial, o sigilo bancário, etc.

273 A norma em comento possui a seguinte redação: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.

podem também ser em parte garantidos pelo ordenamento, mas não com base na cláusula geral de tutela da pessoa humana. Deve ser recusada, por exemplo, a tentativa de justificar o sigilo bancário com a tutela da privacidade. Esta exprime um valor existencial (o respeito da intimidade da vida privada da pessoa física); aquele, um interesse patrimonial do banco e/ou do cliente”274.

No mesmo sentido preleciona Gustavo Tepedino, que concede interpretação diferenciada ao art. 52 do CC, ao sustentar que este, ao contrário do entendimento esposado pela maioria dos doutrinadores, reconhece que somente as pessoas físicas possuem direitos de personalidade. Para o autor, a norma apenas admite que a proteção cabível a tais direitos, em algumas hipóteses, seja estendida para a proteção da pessoa jurídica275.

Nessa esteira, verificam-se as lições de Maria Celina Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barbosa, as quais, juntamente com Gustavo Tepedino, abordam outra questão problemática ínsita no mesmo tema: os danos morais das pessoas jurídicas que não possuem fins lucrativos. Nessa hipótese, segundo os doutrinadores, em caso de lesão à honra, não se estaria diante de danos materiais, mas sim de outra categoria, a dos danos institucionais276, que atingem a pessoa jurídica em sua credibilidade ou reputação277, mas não são danos morais.

274 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Renovar: Rio de Janeiro, 2007. p. 157-158.

275 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: ____ (Coord.). Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 55-56. Em acréscimo, o autor disserta que: “As lesões atinentes às pessoas jurídicas, quando não atingem, diretamente, as pessoas dos sócios ou acionistas, repercutem exclusivamente no desenvolvimento de suas atividades econômicas, estando a merecer, por isso mesmo, técnicas de reparação específicas e eficazes, não se confundindo, contudo, com os bens jurídicos traduzidos na personalidade humana (a lesão à reputação de uma empresa comercial atinge – mediata ou imediatamente – os seus resultados econômicos, em nada se assemelhando, por isso mesmo, a chamada honra objetiva, com os direitos da personalidade)”.

276 Esta é uma das poucas hipóteses em que seria possível aceitar a existência de outro tipo de dano, uma vez que é difícil de ser enquadrado em qualquer uma das duas modalidades. A matéria, no entanto, ainda foi objeto de poucos estudos e exige mais reflexão. Inclina-se aqui pelo entendimento de que os referidos danos institucionais sejam mesmo danos materiais, pois prejudicam o escopo ou finalidade das mencionadas pessoas jurídicas, ainda que sem fins lucrativos.

277 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana – uma leitura civil-constitucional dos danos morais, p. 191-192: “A propósito, não se pode deixar de assinalar a enorme incongruência da jurisprudência nacional, seguida pela doutrina majoritária, no sentido, de um lado, de insistir que o dano moral deve ser definido como dor, vexame, tristeza e humilhação e, de outro, de defender a ideia de que as pessoas jurídicas são passíveis de sofrer dano moral. Das duas, uma: ou bem não mais se sustenta aquela definição – e outra, mais ampla, faz-se necessária –, ou bem a pessoa jurídica, pela sua própria natureza, não tem legitimidade

Por fim, faz-se necessário mencionar, sobre o tema, a existência do Enunciado 286, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, que possui a seguinte redação: “Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. Observa-se que, a despeito do entendimento majoritário propalando que a pessoa jurídica pode ser objeto de dano moral, há forte corrente doutrinária em sentido contrário, com a qual este estudo se coaduna.