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Concepção contemporânea de direitos humanos, impasses e educação

DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA

2.1 Concepção contemporânea de direitos humanos, impasses e educação

A vivência, defesa e promoção dos direitos humanos se constituem como um dos principais desafios de nossa época. Não é tarefa fácil defini-los. Como foi discutido no capítulo anterior, eles abrangem variados significados e interpretações23. Trata-se de uma

polissemia das posições políticas e sociais e das próprias metamorfoses sofridas ao longo de sua construção histórico-social. A ideia, comum, que perpassa entre seus defensores, ainda que sob determinados interesses, é a ideia de universalidade. Por esta, compreende-se a proposição de que todas as pessoas, independentemente de sua condição étnico-racial, socioeconômica, religiosa, física e intelectual, política, de opção sexual, de nacionalidade, dentre outras, são sujeitas e detentoras de direitos humanos, por pertencerem a uma única espécie: humana24.

Uma caracterização contemporânea de direitos humanos incorpora uma série de conquistas, reivindicações e conceitos, mas mantém, como unidade, a perspectiva da possibilidade de construção de uma sociedade alicerçada sobre o princípio da dignidade

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Para um maior debate acerca deste assunto, consultar ESTEVÃO, C. Direitos humanos, justiça e educação. Educação, Sociedade & Culturas, Portugal, n. 25, p. 43-81, 2007.

24Não se trata, aqui, da concepção jusnaturalista moderna, ou doutrina dos direitos naturais, desenvolvida no

século XVII, com Escola de Direito Natural, tendo como representantes Hobbes, para quem o Estado político seria construído por meio de uma ação racional resultante da iniciativa livre dos indivíduos, e posteriormente Locke, autor da teoria da liberdade, para proteger e garantir o direito à propriedade privada. Estes pensamentos fundamentaram as doutrinas políticas de tendência liberal subsidiando a formação do Estado liberal, conforme se lê em Dornelles (2006). A ideia que perpassa a concepção contemporânea de universalidade assenta na proposição que decorre da reflexão do próprio ser humano que a ela chegou de maneira historicamente dada. Benevides (2004) enfatiza que foi uma grande revolução no pensamento e na história da humanidade chegar à reflexão conclusiva de que todos os seres humanos detêm a mesma dignidade, como ficou expresso, por exemplo, na Declaração de 1948.

humana, que luta e defende melhores condições de vida, de acesso aos bens produzidos historicamente pelas pessoas, que permitem aos homens e mulheres humanizarem-se. Por isso, os direitos humanos são interdependentes, inter-relacionados e indivisíveis, pois comportam os pressupostos necessários para que todas as pessoas possam ter uma vida digna. Nesta perspectiva, expressam um marco ético-político que serve de crítica e orientação, tanto real quanto simbólica, em relação às diferentes práticas sociais, jurídicas, econômicas, educacionais, na luta sempre inconclusa por uma ordem social mais justa (MAGENDZO, 1994 apud SANTOS, R., 2007), que objetiva um modo de produção e organização social na qual não haja a exploração e dominação do ser humano sobre o outro.

Neste trabalho foi adotada uma concepção crítica25 de direitos humanos, que os

situam como expressão de um processo histórico, político, social e ideológico, realizado por meio das lutas sociais, na perspectiva de uma ordem social mais justa.

Os direitos humanos são frutos das lutas contínuas de homens e mulheres presentes na história [...] a luta por liberdade, igualdade e fraternidade entre as pessoas, grupos, etnias, culturas e sociedades; enfrentou e continua a enfrentar graves obstáculos políticos, social, econômicos, cultural [...] sempre estamos buscando satisfazer nossas necessidades e aspirações por uma vida digna, feliz e realizadora que pressupõe: liberdade, vivência, trabalho, memória, solidariedade e responsabilidades históricas e sociais. (WILSON, 1997, p. 24).

Para Arendt (1979), citada por Piovesan (2002), os direitos humanos não são algo dado, mas uma construção, invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Considerando a historicidade desses direitos, destaca-se a chamada concepção

contemporânea de direitos humanos, introduzida com o advento da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, de 1948, fortalecida, complementada, pelos Pactos de 1966 (Direitos Civis e Políticos; Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993 (PIOVESAN, 2002).

A Declaração de 1948 afirma a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos. Nesta, é reconhecida a garantia dos direitos civis e políticos, para observância dos direitos sociais, econômicos e culturais, e vice-versa, pois se um deles é violado, os demais também o são. Naquela, tem-se a pessoa como requisito único para a titularidade de direitos. Ao contemplar os direitos civis e políticos, e os direitos econômicos, sociais e culturais, a

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Herkenhoff (1994) e Dornelles (2005) distinguem os direitos humanos em três concepções, a saber: a) concepções idealistas; b) concepções positivistas; c) concepções crítico-materialistas. Esta é inspirada na obra de Marx, principalmente, em sua obra intitulada A questão judaica, de 1844. Nessa concepção, o reconhecimento de direitos e garantias resulta de um processo histórico marcado por contingências políticas, econômicas e ideológicas, e que se expressa por meio de uma conquista da história social.

Declaração combina, por meio das lutas sociais que ocorreram, o discurso liberal e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade e o valor da igualdade, conforme se lê em Piovesan (2006).

A partir da Declaração de 1948, com o princípio da universalidade de direitos, surge um sistema internacional, integrado por tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Neste momento histórico, passa a existir o compromisso ético, político e social, entre determinados Estados Nacionais, de que garantem em seus territórios e na relação com os demais, a proteção e promoção dos direitos humanos como valores fundamentais da democracia formal.

Para Piovesan (2002), essa concepção contemporânea é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, surgindo a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Na visão da autora, se a Segunda Guerra Mundial tinha significado a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução.

Este movimento de internacionalização dos direitos, ainda de acordo com a autora, buscava fortalecer a ideia de que a proteção dos direitos não deveria se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição de cada Estado exclusivamente, visto que se trata de interesse legítimo internacional.

De acordo com Sacavino (2009), essa concepção contemporânea traz duas consequências importantes. A primeira se refere à revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, visto que, a partir de então, admitem-se intervenções no plano nacional, em defesa da proteção dos direitos humanos quando estes forem violados e para garantir sua efetivação. A segunda se refere à afirmação da ideia de que a pessoa deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de direito.

Assim, tem-se a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pelos processos de universalização e internacionalização desses direitos, compreendidos sobre o prisma de sua indivisibilidade.

A Declaração de Direitos Humanos de Viena, 1993, aprovada por consenso por 171 participantes, reafirma a concepção da Declaração Universal de Direitos Humanos, 1948, quando, em seu parágrafo 5º, afirma:

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os direitos humanos, de forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, indepentendemente dos seus sistemas político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

O princípio de universalidade dos direitos humanos, fundado na visão da modernidade, é fortemente questionado pelas perspectivas do multiculturalismo e do relativismo cultural, que afirmam ser a Declaração de 1948 uma construção ocidental. Este talvez seja um dos maiores desafios dos direitos humanos nos dias atuais. Não cabe aqui uma discussão sobre esta questão26, mas vale a pena observar a avaliação de Trindade (apud

PIOVESAN, 2002, p. 102): “Compreendeu-se [por ocasião da Declaração de Viena] finalmente que a universalidade é enriquecida pela diversidade cultural, a qual jamais pode ser invocada para justificar a denegação ou violação dos direitos humanos.”

Ressalte-se que a Declaração de 1948 constitui um documento produzido num momento histórico, sob determinadas condições sociais e com as disputas de poder entre forças sociais da época. No contexto de emergência da Guerra Fria, de conflitos entre capitalismo e comunismo, o conteúdo do artigo XVII da Declaração aponta para uma opção de forma de organização socioeconômica: a capitalista.

I – Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com os outros.

II – Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Entretanto, a Declaração de 1948 não se constitui apenas de um acordo entre os Estados capitalistas de então. Sugere, em vários artigos, a incorporação da dimensão social de direitos, contemplando as lutas dos países socialistas e reafirmados por meio do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.

Contudo, alguns impasses permanecem. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 apregoa, em seu artigo primeiro, que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Disso decorrem as redações de constituições, por exemplo, em vários países do mundo, afirmando que todos são iguais perante a lei. Apesar do anúncio repetido várias vezes, a realidade mostra, infelizmente, que as pessoas são tratadas como desiguais.

Quando se afirma que as pessoas nascem iguais, esclarece Dallari (1998), o que se está afirmando é que nenhuma nasce valendo mais do que a outra, ou seja, como seres humanos,

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Para um debate acerca destes temas, consultar: SANTOS, B. de S. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, Portugal, n. 48, p. 11-32, jun. 1997.; BAUMAN, Z. A universalidade ilusória. In: BAUMAN, Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus. 1997. p. 47- 89.; PIOVESAN. F. Desafios e perspectivas dos direitos humanos: a inter-relação dos valores liberdade e igualdade. In: MACKENZIE. Fronteiras do direito contemporâneo. São Paulo: Faculdade de Direito – Mackenzie, 2002. p. 97-104.

todos são iguais, não importando o local de nascimento, a condição social ou econômica, a etnia a qual se pertence ou a cor da pele.

Para assegurar a validade dessa afirmação, é preciso garantir a todas as pessoas, de maneira igual, o direito de acesso aos bens histórico-culturais produzidos pela humanidade. Todas as pessoas devem ter garantido os direitos à moradia, à alimentação saudável, aos cuidados de saúde, da escolha ao trabalho digno, de acesso aos bens e serviços oferecidos pela vida em sociedade, de participar da vida pública, dentre outros.

Porém, o capitalismo neoliberal tem agido como uma máquina de expropriação de direitos, que joga na competição irracional do mercado o destino de milhões de pessoas, substituindo o conceito de direitos pelo de igualdade de oportunidades, conforme se lê em Demo (2003), Borba (2008) e Flores (2009).

Deste contexto, Flores (2009), com quem se concorda, defende a (re)invenção dos direitos humanos, em tempos de neoliberalismo globalizado. Por serem os direitos humanos uma construção histórica, enfatiza o autor, as discriminações, os preconceitos, as injustiças e as desigualdades também o são, e devem ser desconstruídas urgentemente.

Conforme argumenta o autor, a perspectiva tradicional hegemônica confunde os planos da realidade e das razões, conforme ficou expresso na Declaração de 1948, que no seu preâmbulo tomou os direitos humanos como um ideal a ser conseguido e paradoxalmente nos artigos 1 e 2 os mesmos apareceram como um ideal conquistado.

Para a reflexão teórica dominante, os direitos ‘são’ os direitos; quer dizer, os direitos humanos se satisfazem tendo direitos. Os direitos, então, não seriam mais que uma plataforma para se obter mais direitos. Nessa perspectiva tradicional, a idéia do ‘que’ são os direitos se reduz à extensão e à generalização dos direitos. A idéia que inunda todo o discurso tradicional reside na seguinte fórmula: o conteúdo básico dos direitos é o ‘direito a ter direitos’. Quantos direitos! E os bens que tais direitos devem garantir? E as condições materiais para exigi-los ou colocá-los em prática? E as lutas sociais que devem ser colocadas em práticas para poder garantir um acesso mais justo a uma vida digna? (FLORES, 2009, p. 33).

A partir desta consideração, para o autor, os direitos humanos

são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida [...] os direitos humanos não devem confundir-se com os direitos positivados no âmbito nacional ou internacional [...] Admitir que o direito cria direito significa cair na falácia do positivismo mais retrógrado que não sai do seu próprio círculo vicioso. (FLORES, 2009, p. 34, grifos do autor).

Conforme argumenta Flores (2009), os direitos humanos são um instrumento cultural utilizado para evidenciar a tensão existente entre os direitos reconhecidos legalmente e as práticas sociais, revelam sua violação cotidiana, que reivindicam, outra forma de procedimento que garanta do direito algo que é ao mesmo tempo exterior e interior às normas nacionais e internacionais.

Exterior, pois as constituições e tratados ‘reconhecem’ — evidentemente não de um modo neutro nem apolítico — os resultados das lutas sociais que se dão fora do direito, com o objetivo de conseguir um acesso igualitário e não hierarquizado ‘a priori’ aos bens necessários para se viver. Interior, porque essas normas podem dotar tais resultados de certos níveis de garantias para reforçar o seu cumprimento (certamente não de um modo neutro nem à margem das relações de forças que constituem o campo político). (FLORES, 2009, p. 34).

O autor esclarece que não deprecia as lutas que se pautam na teoria jurídica tradicional, pois são muito importantes para uma efetiva materialização dos direitos. Flores (2009, p. 34), na verdade, se opõem “as pretensões intelectuais que se apresentam como ‘neutras’ em relação às condições reis nas quais as pessoas vivem.”

Defende, a partir disto, o autor, o direcionamento para o qual se pretende caminhar por meio das lutas sociais para acesso aos bens necessários para se viver: a dignidade humana.

Entenda-se por dignidade não o simples acesso aos bens, mas que tal acesso seja igualitário e não esteja hierarquizado ‘a priori’ por processos de divisão do fazer [humano — divisão social, sexual, étnica e territorial] que coloquem alguns, na hora de ter acesso aos bens, em posições privilegiadas, e outros em situação de opressão e subordinação. Mas, cuidado! Falar de dignidade humana não implica fazê-lo a partir de um conceito ideal ou abstrato. A dignidade é um fim material. Trata-se de um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja ‘digna’ de ser vivida. (FLORES, 2009, p. 37).

Conclui, portanto, o autor, que o conteúdo básico dos direitos humanos não é o direito a ter direitos, mas o conjunto de lutas “pela dignidade, cujos resultados, se é que temos o poder necessário para isso, deverão ser garantidos por normas jurídicas, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade.” (FLORES, 2009, p. 39).

Neste sentido, afirma-se a educação como um direito humano e condição, também, para defesa e luta por outros direitos. “Foi ela [a educação] que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma

população educada tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadania civil e política.” (CARVALHO, 2008, p. 11).

Nesta perspectiva, é preciso repensar a educação e perspectivar possibilidades de se (re)construir escolas públicas de qualidade, para o atendimento dos filhos e filhas das classes trabalhadoras, que, geralmente, não têm oportunidade de participar de outros meios de apropriação do conhecimento científico sistematizado.

A educação, no contexto de crítica ao neoliberalismo, se situa no combate à pobreza política, conforme defende Demo (2003). O autor esclarece nem sempre ser visível a ligação da educação com o combate à pobreza material, porque nem sempre a educação distribui benefícios econômicos, embora ressalte que a mesma detém impacto econômico, por meio da empregabilidade no ritmo de inovação globalizada competitiva. A força da educação, na concepção de Demo (2003, p. 30), está na força política.

O que a escola pode oferecer de melhor ao pobre é o saber pensar politicamente plantado. A todos a escola básica deve estar aberta, em termos públicos e gratuitos, para propiciar a oportunidade de ascender à condição de sujeito autônomo. Fazendo escola, dificilmente o pobre fica mais rico, mas pode ficar mais emancipado, politicamente falando. Pode ser capaz de se confrontar coletivamente organizado.

Desta citação, depreende-se a relação entre educação e direitos humanos, uma vez que a escola pública, laica, gratuita e de qualidade pode e deve ser, entre outras instituições, propulsora de constituição da consciência político-crítica e, a partir daí, de projeto alternativo de combate à ideologia dominante, visando à superação da pobreza política, criando espaços de construção de sujeitos de direitos, como afirmou Arendt (1979), de uma cidadania concebida como o direito a ter direitos (ARENDT 1979), pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado, mas um constructo. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. E, neste espaço, o direito de pertencer a uma comunidade política, que permita a construção de um mundo mais justo, por meio do processo de afirmação dos direitos humanos, conforme se lê em Lafer (1997). Disto depreende-se não somente o direito, mas a necessidade do exercício da cidadania para que os direitos humanos se materializem. Este será o assunto do tópico a seguir.