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Democracia no contexto brasileiro e a ascensão da educação em direitos humanos A educação em direitos humanos e sua trajetória estão diretamente relacionadas com

DIREITOS HUMANOS, EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA

2.4 Democracia no contexto brasileiro e a ascensão da educação em direitos humanos A educação em direitos humanos e sua trajetória estão diretamente relacionadas com

os movimentos sociais, especificamente, no caso da América Latina, na resistência aos regimes militares que assolavam toda a região, ao longo da segunda metade do século XX. 32

O texto de Santos, B. (1998) intitulado Elite é politicamente democrática, mas socialmente facista não está paginado. Por isso, nas citações literais, o número da página não foi indicado.

Não condizente com esta história, a educação em direitos humanos opera numa perspectiva crítica, de contestação à injustiça, contra ausência de democracia e da utilização da violência física como meio de luta política, conforme se lê em Candau 2000.

No século XVI, Maquiavel (2004) fundamentou as ideias de um Estado autossuficiente. Labutou pela instauração de um Estado estável, que tivesse como princípio a ordem. Na sua obra, O Príncipe, de 1513, Maquiavel (2004) explica que um bom governo deve ser capaz de resistir aos inimigos e aos golpes da sorte (fortuna). O príncipe deve possuir a virtù, uma qualidade política necessária e não relacionada à moral. O autor descreve as atitudes que um soberano deve possuir, não somente para tomar o poder, quanto para se manter nele. Sua máxima se expressa na frase: os fins justificam os meios, que indica o uso de meios imorais como aceitáveis, quando se tem por objetivo o sucesso do Estado33.

Para Santos, B. (2008), como já mencionado, a era atual é de sociedades politicamente democráticas, mas socialmente fascistas. Esse fascismo social, explica o autor, é um regime que se caracteriza por diferenças sociais tão grandes, que algumas pessoas ostentam poder de veto sobre as outras. Neste caso, há pessoas que ficam sem qualquer tipo de poder de decisão, inclusive sobre suas próprias vidas, estando sujeitas ao veto de uma minoria poderosa, constituindo-se numa sociedade privada de direitos fundamentais.

Não se desconsidera, neste texto, a importância dos processos de (re)democratização vividos nas últimas décadas, particularmente no Brasil, principalmente no que se refere à participação nos processos eleitorais, aos direitos de livre associação, à liberdade de imprensa, aos direitos das minorias sociais, dentre elas as mulheres, à possibilidade de comunicação e expressão. Entretanto, a forma pela qual a democracia se estabeleceu — liberal representativa — tem não só conservado, como ampliado, as desigualdades sociais, a pobreza e a exclusão historicamente construídas.

A construção dessa democracia política, no país, se justifica pelo longo período de escravidão, que determinou comportamentos de submissão, mando e conformismo em relação à negação de direitos. A pessoa escrava também foi privada de sua dignidade humana, ao ser tratada como simples objeto ou mercadoria. Naquele momento, entendia-se que para ser

pessoa, era preciso ter certos requisitos, como, por exemplo, local de nascimento, cor da pele

e relações sociais, conforme se lê em Viola (2007) e Candau (2008b).

33Maquiavel (2004) esclarece que seus conselhos não eram originais e que já tinham sido adotados na prática por

diversos governantes, realizando uma leitura de como eram as relações políticas no seu tempo. Sua preocupação estava relacionada à fraqueza política e militar da Itália. Desejava ver um governo que unificasse o país e expulsasse os invasores estrangeiros que estavam a devastá-la. Maquiavel almejava tornar seu país um Estado forte. Na sua obra destacam-se também os principados civis e eclesiásticos. Em relação ao primeiro, o cidadão comum pode ser príncipe de sua nação pelo apoio dos compatrícios do povo e dos nobres.

A prática do coronelismo impregnou, também, a cultura brasileira. Havia, naquele momento histórico, um sistema nacional paralelo, de dominação privada, protagonizado por coronéis que detinham o poder político e econômico. Nesse período, o voto era restrito a uma pequena parte da população. As mulheres, e em alguns períodos, os negros e analfabetos não tinham o direito de votar e, os últimos, quando o conquistaram, foram presos ao voto de cabresto. As mulheres só conseguiram conquistar o direito ao voto, no Brasil, em 1932. (VIOLA, 2007; CANDAU, 2008b).

No Brasil, formou-se um Estado de elites e oligarquias, por meio da dominação política e da exploração socioeconômica. Essa minoria dominante nunca se comprometeu verdadeiramente com os interesses da população, sempre atuando em benefício de interesses próprios. Essa dominação estende-se até os dias atuais, sobretudo pela capacidade e as estratégias que essa classe apresenta como dirigente, na cooptação das reivindicações das classes trabalhadoras e no atendimento de seus interesses. Disto decorre sua permanência no poder.

Esse quadro aponta para a fragilidade da democracia no país. Holanda (1956), ao analisar o processo da democracia no Brasil, discute alguns dos obstáculos que dificultaram a sua consolidação. Na análise do autor, a democracia foi importada por uma aristocracia, que procurou acomodá-la onde fosse possível, para atender seus interesses de classe. Ressalta que os movimentos aparentemente reformadores, no país, partiram quase sempre de cima para baixo, sem a participação popular. Dessa forma, para o autor “[...] a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido [...]” (HOLANDA, 1956, p. 160).

Diante desse cenário tristonho e complexo, onde tudo parece ocorrer segundo uma perspectiva hegemônica, ainda é possível encontrar concepções alternativas àquelas de um mundo neoliberal, que são construídas pelos movimentos sociais e populares, que produzem outras visões de mundo. Experiências reais que apresentam outras formas de construção e relações democráticas, caracterizadas pela participação e pelo posicionamento reflexivo- crítico, diante do modelo hegemônico vigente não só no Brasil como no mundo. Um exemplo a ser citado são as cooperativas de produção de trabalho associado, no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)34. Para Dal Ri e Vieitez (2004, p. 46)

[...] a organização mais avançada [...] é a Cooperativa de Produção Agropecuária (CPA), ou seja, cooperativa socializada de gestão democrática ou de autogestão. As características básicas desse tipo de empreendimento são as seguintes: a inexistência do trabalho assalariado; distribuição igualitária do excedente econômico; o trabalho coletivamente organizado; e

34

Para maiores informações, consultar: DAL RI, N. M.; VIEITEZ, C. G. Educação democrática e trabalho associado no movimento dos trabalhadores rurais sem terra e nas fábricas de autogestão. São Paulo: Ícone: Fapesp, 2008.

a gestão democrática. A gestão democrática aqui é uma autogestão da cooperativa pelos próprios trabalhadores, com base em instâncias decisórias como assembleias gerais, núcleos de base, setores de produção e de serviços, e outros mecanismos de tomada de decisão pelo coletivo de associados ao empreendimento. O autogoverno, com a tomada de decisões coletivas e diretas, é um dos elementos que diferencia esse tipo de cooperativa, dentre tantos outros existentes.

A organização do modo de produção do MST baseia-se no trabalho associado, e com isso propicia uma organização que se difere radicalmente do escopo dos padrões capitalistas de produção.

[...] Ele é um movimento de luta e, ao mesmo tempo, o demiurgo de uma economia distinta da economia burguesa dominante. É um sujeito ativo e até altissonante na luta de classes na ordem social brasileira. Mas a sua luta, diversamente do que ocorre com as demais organizações populares, dá-se também imediatamente no terreno da organização da produção. A reivindicação da reforma agrária não é apenas reivindicação de acesso à terra, de distribuição de terra para quem não tem e a quer, mas a exigência do direito de promover in continenti uma reorganização não-capitalista das relações de produção num segmento da economia agrária. (DAL RI; VIEITEZ, 2004, p. 47, grifos dos autores).

Viola (2007) considera que as lutas travadas pelos movimentos sociais demonstram que a formulação dos direitos humanos traz em si mesma sua reformulação, de modo que os direitos conquistados se transformam na sustentação dos direitos a serem almejados. Acredita o autor que, assim como as ações de resistência à ditadura construíram a base social para as lutas de (re)democratização, os direitos civis e políticos, garantidos e elencados pela Constituição de 1988 podem vir a se transformar, também, na base de sustentação das lutas sociais pelos direitos econômicos, culturais e sociais, objetivando a garantia da efetividade do princípio da indivisibilidade dos direitos, visto que, “[...] a inexistência de uns significa a ameaça dos demais, da mesma maneira que a crise dos direitos humanos representa a própria crise da ordem democrática.” (VIOLA, 2007, p. 132).

A educação em direitos humanos também contribui, enquanto educação crítica que contesta, questiona e visa, em última instância, contribuir com a superação do modelo hegemônico vigente. A este respeito, para Benevides (1998b, p. 173)

A educação [...] para os direitos humanos, [...] tem como premissa a superação da antiga visão liberal e ‘neoliberal reformada’ — sobre educação e cidadania. Isto é, aquela concepção do cidadão como indivíduo livre perante o Estado (o que é essencial), mas visto de forma fragmentada, como só contribuinte, ou só consumidor definido pelas regras do mercado, ou só o

eleitor que precisa ser conquistado, ou o trabalhador qualificado que deve ser ‘reciclado’, ou a elite dirigente mandatária ‘por direito divino’ etc. Tal superação significa reconhecer sim o cidadão como membro [...] de classes sociais diferenciadas, [...] em conflito. Cumpre reafirmar: reconhecer, ainda, que o cidadão é sujeito de direitos e deveres, mas também sujeito criador de direito.

Vários autores e autoras, como, por exemplo, Bobbio (1992) e Benevides (1998b), além de documentos internacionais e nacionais reconhecem que não há democracia sem a vigência dos direitos humanos e vice-versa. Mas não se trata de qualquer democracia, é preciso explicitar qual democracia. É preciso, então, defender uma democracia, na concepção de Santos, B. (2008), de alta intensidade. O objetivo deve ser, argumenta o autor, de sair de uma democracia tutelada, restrita, de baixa intensidade, para chegar à democracia de alta intensidade, que torne o mundo cada vez menos confortável para o neoliberalismo.

Embora o discurso dos direitos humanos possa até ser farsante, conforme se tentou demonstrar nos itens anteriores, pois é usado com determinados interesses, como alerta Demo (2003), assim como toda linguagem plantada no espaço de poder, não se pode negar que representa processo fundamental de comprovação da própria sociedade como sujeito de história.

Neste sentido de mudança e transformação social, a educação escolar, por meio do trabalho que realiza, pode “[...] ajudar a preparar os alunos para uma nova sociedade; a ajudar ao aluno transitar do estado de consciência alienada para a superação de seu estado de classe; servir de ponto entre a realidade atual e a que se quer construir.” (ORSO, 2008, p. 62).

A escola, como outras instâncias da sociedade, como partidos políticos, sindicatos, igreja, movimentos sociais, associações, tem um papel fundamental a desempenhar na luta por mudanças estruturais na sociedade que contribuam para romper com a lógica do capital. Como já citado anteriormente, “trata-se de entender a escola como um ambiente conflituoso, permeado constantemente por contradições no qual ocorrem, diuturnamente, ‘lutas pedagógicas’ que podem vir a somar-se com a luta sócio-política, em prol da transformação social.”. (RUIZ, 2008, p. 225).

Como afirma, categoricamente, Orso (2008, p. 62), “[...] ou nos organizamos e lutamos pela transformação da sociedade ou então não teremos uma educação de nova modalidade nem construiremos um novo homem” e uma nova mulher.

A educação em direitos humanos é referenciada em vários documentos internacionais e nacionais como fundamental para a efetivação de uma cultura de direitos humanos e de formação de cidadãs e cidadãos críticos. Essa é a discussão que será tomada no próximo

CAPÍTULO 3