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A concepção das professoras, coordenadoras, diretoras e funcionárias em relação à cidadania e educação escolar

COORDENADORAS, DIRETORAS E FUNCIONÁRIAS

5.2 A concepção das professoras, coordenadoras, diretoras e funcionárias em relação à cidadania e educação escolar

Relacionada à luta pela dignidade humana, está o exercício da cidadania, tanto em nível individual quanto coletivo, nas diversas áreas de atuação da sociedade e no âmbito da esfera pública. Contudo, assim como as reflexões sobre os direitos humanos e a democracia, a cidadania parece ser um termo distante dos debates que ocorrem dentro das escolas e na formação inicial e continuada de professores e professoras, embora, nos projetos político- pedagógicos das duas escolas, conste o exercício da cidadania como um objetivo constante a ser perseguido e que, dentre as dezesseis entrevistadas, doze tenham afirmado que o papel da escola é a formação de cidadãos críticos, conforme escrito na lei. Eis alguns exemplares de falas:

[pensativa] Então, seria formar o cidadão, né? Em tudo, não só na escrita e leitura, mas socialmente. (MARIANA E1, 2007).

Pode falar a frase de todo mundo? Formar cidadãos críticos, conscientes e participativos, que é o que todo mundo fala e que nós aprendemos? [risos]. (ESTER E1, 2007).

O objetivo da educação da educação, como diz a lei, [sorrisos] formar cidadãos críticos e participativos. (DIRETORA E1, 2007).

O papel da educação escolar é formar cidadãos conscientes atuantes e com discernimento, pessoas dignas. Eu acho que é isso. (COORDENADORA E2, 2009).

[pensativa] Formar o cidadão, certo? (NATÁLIA E2, 2009).

Dentre essas doze entrevistadas, três apontam que a formação do cidadão crítico passa necessariamente pela sua preparação para concorrer a uma posição no mercado de trabalho.

Ai. Fazer uns cidadãos amanhã melhores com o estudo porque sem um

estudo não vão conseguir um bom emprego, uma boa locação, não vão fazer

faculdade, vão ficar parados. Então o estudo para eles é muito importante, saber ler e escrever, ter um emprego, uma casa própria. (JOANA E1, 2007, funcionária, grifos nossos).

Formar o cidadão pleno. Eu acho que formar e capacitar o cidadão para que ele consiga, depois é isso que eu te falei: é buscar um bom serviço. Como? Com uma formação plena que ele está tendo na escola, porque precisa, porque a concorrência é muito grande hoje. Então se você não chega lá num pé de igualdade, você irá estar sempre excluído. (DIRETORA E2, 2009, grifos nossos).

Formar cidadão, né? Consciente, crítico, que tenha respeito pelas pessoas, né? [...] porque o que eu sempre falo com as crianças que para nós vivermos a vida não é como eles estão pensando: o outro xingou e você dá um murro e bate e você resolve, não é assim. Você tem que aprender que vai ouvir muito não, você vai ouvir muita coisa que não quer ouvir. Então você não pode [ser agressivo] Você tem que aprender a aceitar o não. Você tem que respeitar, você tem que pedir licença, você tem que pedir ‘por favor’. Como que você vai arrumar um trabalho? Como você vai chegar assim no seu trabalho? Você vai chegar assim no seu trabalho? Tem que saber se arrumar, né? Você tem que saber se portar, conversar com as pessoas, não é gritando, não é batendo, não é [pensativa] eu acho que é isso aí. Se formar o cidadão que

tenha pelo menos, sei lá, respeito, eu acho que já é alguma coisa.

(COORDENADORA E1, 2007, grifos nossos).

Das falas citadas, pode-se inferir que as entrevistadas reproduzem o discurso oficial das políticas educacionais, sobretudo aquele expresso na LDBEN (1996), que dispõe sobre os princípios e fins da educação nacional, afirmando no artigo 2o, que a “[...] educação [...]

inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Os projetos político-pedagógicos das duas escolas também se fundamentam nessa concepção de cidadania e, conforme visto em outro momento, neles

constam, explicitamente, como objetivos do Ensino Fundamental os que estão elencados nas políticas educacionais, nos PCN’s (1997).

De modo geral, esses dados parecem indicar que uma das funções sociais desempenhadas pela escola capitalista, a preparação da força para o mercado de trabalho, encontra espaço de legitimação, ainda que inconscientemente, pelas profissionais da educação. O sistema capitalista dissemina a crença de que as desigualdades são geradas por questões individuais do não aproveitamento das oportunidades oferecidas e da falta de esforços das pessoas em aproveitar as chances advindas, principalmente pela educação escolar, uma vez que a escola já fora democratizada.

De maneira geral, a maior parte das crianças entrevistadas, da escola 1 e nas conversas informais com as da escola 2, disse que é importante frequentar a escola para, no futuro, conseguir trabalho remunerado. Algumas ressaltaram a importância de aprender a ler e a escrever para ingressarem na faculdade. Um aspecto chamou atenção durante a entrevista com um aluno (JER) de 11 anos, da terceira série, escola 1. Ele disse que o direito das crianças é “ter um futuro bom”. Parece significativo, neste momento, reproduzir parte da entrevista realizada para elucidar o quê, na opinião do aluno, significa ter um futuro bom.

Quantos anos você tem? Onze. Com quem você mora? Com minha mãe,

meu padrasto e nove irmãos. Você acha que as crianças têm direitos? Têm.

Quais? Ter um futuro bom. E que futuro bom é esse? Trabalho. Trabalhar na

Coca, na Marilam, de pedreiro. O que mais? Vender melancias, vender frutas. Para que vender melancias e frutas? Pra ajudar ele. Ajudar ele no

quê? A comprar comida pra dentro de casa. Para comprar alimento? É. Mais algum? Ele pode trabalhar num lugar que faz porta. Marceneiro? É. E, por exemplo, você acha que criança tem direito de brincar ou você acha que ela tem que trabalhar? Trabalhar e um pouquinho brincar. Um pouquinho de brincar? É. O que seria esse pouquinho? Uns cinquenta minutos. Você acha que a criança tem mais que trabalhar do que brincar? Sim. E você acha que a criança tem o direito de vir pra escola? [silêncio longo] Ou você acha que tem que trabalhar? Tem que trabalhar. E estudar? Estudar

também. O que é mais importante estudar ou trabalhar? Estudar. Por quê? Por quê? Pra aprender mais. Aprender para quê? Pra você ter um futuro bom. E quais são os deveres da criança? Trabalhar. O que mais? Vender alguma coisa. Algo mais? Sair na rua catando papelão. Catar papelão para

quê? Pra ajuda a comprar os alimentos dele. Você gosta de vir à escola?

Gosto. Por quê? Gosto porque a escola é muito legal. O que você aprende

na escola? Aprendo lê, escrevê. E você acha importante ler e escrever?

Acho. Por quê? Porque dá um futuro bom90. (grifos nossos).

90

De acordo com o relato de uma das professoras da escola (E1, 2007), esse aluno falta muito na escola para poder ajudar a mãe a catar papelão na rua. Segundo a professora, são vários os alunos e alunas na mesma condição. Sobre esse ponto, conforme ressalta Dallari (1998, p. 51), “não basta dizer que todos têm direito de ir à escola [...] Na realidade, não está assegurado para todos o direito à educação [...] quando a pobreza obriga as crianças a procurar trabalho muito cedo, não lhes deixando tempo e disposição para a escola.”

Parece que a escola capitalista tem obtido êxito no processo de internalização, na mente de jovens e crianças, de que um dos maiores valores da escola reside no preparo para o mercado de trabalho. Entretanto, não se trata do trabalho no sentido de emancipação humana: a escola capitalista não tem o trabalho como princípio educativo, tal como é posto pela educação socialista91. A escola oferecida pela classe dominante visa a preparação de pessoas

para as relações sociais do modo de produção capitalista. Mas, pela fala deste aluno, é possível inferir a marginalização de grande parte de pessoas de baixa renda, que deixam de ocupar um lugar no processo de produção da estrutura capitalista.

Outras quatro entrevistadas apontam que o papel da escola não se resume apenas ao aprendizado da leitura e da escrita, mas uma formação que prepare os alunos e alunas para a vida; contudo, parece que não conseguem explicitar o quê seria essa formação para a vida.

Bom, eu acho que formar, se eu fosse falar uma palavra colocaria formação, mas eu pensaria em formação, [pensativa] não vou ficar falando somente jargões, mas é que realmente penso assim, a formação de uma criança crítica. Uma criança que sabe estabelecer relações entre um acontecimento e outro, uma criança que saiba se virar sozinha, então nesse sentido falo o termo formação. (JOSEANE E1, 2007).

Ah, não é só aprender a ler e a escrever, mas principalmente ser uma pessoa melhor. (BÁRBARA E1, 2007, funcionária).

[pensativa] Olha, eu acho assim, que não seria bem educar, mas preparar para a vida, porque eu acho que a educação tem que vir de casa, né? Preparar para a vida através da educação, mas a educação escolar mesmo. (ÉRICA E2, 2009).

A escola muita gente pensa que é o lugar que educa. Eu acho que educação começa no lar. Os funcionários e os professores não têm o dever de estar educando, mas de estar ensinando os conteúdos escolares, mas não é o que nós vemos. A escola faz papel de mãe, de babá, de tudo. (LUANA E2, 2009, funcionária).

Retomando a questão específica da cidadania, esta é, também, uma palavra polissêmica, que encerra em seu bojo várias concepções, a depender dos objetivos por ela pretendidos, a partir de determinado ponto de vista de classe social. Há concepções, por exemplo, calcadas na doutrina neoliberal, nas quais o Estado age, na verdade, a favor da propriedade privada e as pessoas são vistas como cidadãs consumidoras. A escola, nessa ótica, tem como papel a adaptação das pessoas ao modo de produção capitalista, preparando- as para o mercado de trabalho. Outras concepções estão fundamentadas na ideia de identidade 91A esse respeito, consultar: PISTRAK, M. M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão

Popular, 2000.; ROSSI, W. G. Pedagogia do trabalho: raízes da educação socialista. São Paulo: Editora Moraes, 1981.; ROSSI, W. G. Pedagogia do trabalho: caminhos da educação socialista. São Paulo: Editora Moraes, 1982.

nacional, e a formação das pessoas baseia-se mais no modelo de educação moral e cívica, enfatizando a identidade nacional, o respeito à Pátria, os temas patrióticos e, principalmente, os deveres para com o Estado. Existem concepções, por outro lado, que se situam numa perspectiva crítica em relação às duas anteriores, que podem ser concebidas como cidadania passiva (BENEVIDES, 1998b) ou de baixa intensidade (SANTOS, B., 2008). Por isso, a perspectiva crítica em relação à cidadania formal parte do princípio de participação das pessoas nas tomadas de decisão na esfera pública, a cidadania ativa, conforme visto em Benevides (1998b).

Quanto às reflexões de cidadania apresentadas pelas entrevistas, é possível apontar algumas posições que se distinguem, com diferentes níveis de elaboração. Há professoras, como Joseane (E1, 2007), Ester (E1, 2007), Talita (E2, 2009) e Liliane (E2, 2009), e duas funcionárias, Juliana (E2, 2009) e Luana (E2, 2009), que apontam a cidadania ligada ao exercício dos direitos e deveres. Eis um exemplo de fala: “O ato da pessoa exercer os seus direitos e deveres dentro da sociedade em que ela vive” (JOSEANE E1, 2007). Duas professoras parecem indicar uma relação da cidadania com os direitos e valores humanos.

Ah, cidadania? Respeito, educação. (ÉRICA E2, 2009). Cidadania? Saúde, educação também. (NATÁLIA E2, 2009).

Cidadania é você colaborar com as pessoas, é você se doar para os outros, participar da vida. (JÚLIA E1, 2007).

Uma professora apresenta uma reflexão vaga, e uma das coordenadoras não conseguiu elaborar uma reflexão acerca da cidadania.

[pensativa] O que nós temos que está, ué? Vivendo hoje em dia mesmo o que está na atualidade, o cidadão até crítico que respeita o outro. (MARIANA E1, 2007).

Cidadania? Meu Deus! [risos] Ai. Cidadania seria, é [pensativa] o cidadão [pensativa] não. Ai. Eu não sei responder. (COORDENADORA E1, 2007).

As outras duas funcionárias parecem indicar uma relação entre cidadania e democracia, no sentido de poder eleger os representantes para os cargos políticos.

[pensativa] Ah, eu acho que a cidadania é [pensativa] eu acho que é basicamente o respeito mesmo, né? Você ter uma educação legalzinha pra estar tratando com as outras pessoas. É ser cidadão, é você ter o direito de optar por um governo, por uma pessoa que está ali na direção acima de nós

e que vão decidir leis e tomar decisões importantes. Eu acho que cidadania é isso: lutar por uma vida melhor. (BÁRBARA E1, 2007, funcionária). Ah, é o direito da escolha da gente, ou não? (JOANA E1, 2007, funcionária).

As duas diretoras e uma coordenadora parecem apontar para uma perspectiva mais ampla de cidadania, incluindo uma possível articulação entre cidadania e os direitos humanos.

Ai. Cidadania [pensativa] pessoas conscientes que respeitam o local onde vivem, que são pessoas [pensativa] que exercem os seus direitos. Seria tão bom que todo mundo conseguisse exercer sua cidadania, soubesse discernir o que é certo, o que é errado, se soubesse educar. Então eu acho que [pensativa] uma pessoa cidadã, um bom cidadão é uma pessoa que tem uma certa cultura. Então sem a educação, infelizmente não há a cidadania. (COORDENADORA E2, 2009).

Um cidadão pleno com todos os seus direitos e deveres é [pensativa] respeitados e postos em prática. Eu acho que isso é cidadania: você ter acesso a tudo que o cidadão precisa para viver bem em sociedade, viver bem, tendo casa, comida, trabalho, saúde e segurança, mas também cumpridor dos seus deveres. (DIRETORA E2, 2009).

É a nossa participação na sociedade, o direito da nossa participação. (DIRETORA E1, 2007).

Um aspecto que chamou particularmente a atenção nas reflexões das professoras, coordenadoras, diretoras e funcionárias, durante a realização das entrevistas, foi a total ausência de menção do Estado na promoção da cidadania. Nesse sentido, parece que a perspectiva do Estado mínimo para as questões sociais, veiculada pelas políticas neoliberais, também vem sendo internalizada pela população. Por isso, foi questionado às entrevistadas quais direitos consideravam importantes o Estado garantir. Algumas professoras pareceram ficar surpresas com tal proposta para reflexão. Uma (TALITA E2, 2009) gesticulou para que o gravador fosse desligado e posteriormente disse que não sabia dizer se o Estado tinha alguma responsabilidade em relação à questão de garantia e promoção de direitos. Grosso modo, a maior parte das entrevistadas mencionou os direitos sociais como educação, saúde, lazer e moradia. Com a abertura da discussão do papel do Estado na esfera social, vieram à tona questões sobre a qualidade da educação escolar, que passa necessariamente pela valorização das profissionais da educação. A fala da coordenadora (E2, 2009) é ilustrativa sobre esse ponto.

Eu acho que na nossa área, a educação de qualidade, professores bem capacitados porque eles [Secretaria Estadual de Educação] estão capacitando

muito os coordenadores e nós estamos repassando [às professoras] e direcionamos o trabalho, mas eu acho que a capacitação do[a] próprio[a] professor[a] seria muito bom também, porque nós teríamos uma qualidade melhor, maior entendimento e etc. A questão salarial é indiscutível, pois todo mundo que ganha bem, que ganha melhor, se dedica mais, se empenha e vem feliz trabalhar. Ela [a pessoa] se doa mais. A estrutura escolar tem que ser boa tanto a parte física quanto a parte pedagógica, de livros, de tudo. Essa parte eles estão melhorando, estão mandando bastantes livros, estão se preocupando com a parte pedagógica, então isso nós vemos que a Secretaria está se preocupando, mas a parte humana, que é a parte da capacitação de professores ainda falta um pouco, a parte salarial. Agora eu acho que a questão da saúde pública também. Não existe ninguém que aprende bem com a saúde precária do jeito que nós estamos. Eu acho que o ser humano tem que ter o direito a uma boa moradia, saúde, educação e lazer, sem essas coisas o ser humano não consegue ser feliz. E isso quem tem que garantir é o Estado.

A diretora (E2, 2009) que afirmou que a escola precisa preparar os alunos e as alunas para disputar uma vaga no mercado de trabalho, parece questionar as pretendidas oportunidades advindas da escolarização, conforme apregoa o neoliberalismo. Parece que, para ela, é preocupante a escola trabalhar com o intuito de que os alunos e alunas possam concorrer a uma vaga no mercado de trabalho, se não há oferta de trabalho para todos. Isso, sob seu ponto de vista, pode até mesmo desmotivar os alunos e as alunas a estudarem.

Olha, eu acho essencial, [o] que nós precisamos ter são condições de boa educação e acesso à saúde pública também de qualidade. Precisa ter também mercado de trabalho, porque isso impulsiona muitas vezes, nós ficamos assim: vamos estudar, porque você [o aluno e a aluna] precisa ser alguém, mas se as portas se fecham, se não veem uma perspectiva lá na frente, o jovem vai ficando desmotivado. Ah, estudar para quê? Depois eu não vou ter chance. Então, eu acho assim, precisa ter uma garantia de oferta de

trabalho para todo mundo, saúde e educação de qualidade. Segurança, você

tem que ter tranquilidade, segurança para estar encaminhando o seu filho para ir e vir, certa tranquilidade, meu filho está na escola, eu estou tranquila e não isso que muitas vezes nós estamos vendo por aí, a criança vai à escola, é uma bomba que estoura, é uma agressão física que ela sofre. Então, eu acho que é um conjunto de fatores que contribui com o sucesso do cidadão lá na frente. (grifos nossos).

A funcionária Juliana (E2, 2009)92 foi a única que colocou no debate o papel do Estado

a respeito da esfera econômica, (re)distribuição de renda, fator gerador de desigualdades.

O que é importante? [se indagou baixinho] Eu acho assim, a igualdade social em primeiro lugar. Eu acho que não adianta falar em educação, saúde, se o social está comprometido. Eu acho que o problema maior é o problema social, a desigualdade, principalmente em São Paulo, que nós vemos. Aqui

em [nomeou o nome da cidade], nós não vemos tanto esse problema, apesar de que tem, mas como eu venho lá de São Paulo, então dá um choque. Lá tem muita desigualdade. Tem poucos que ganham muito e muitos que ganham pouco. Então dá aquela diferença. Existe criança fora da escola. Aqui nós não temos esse problema. Outro dia, conversando com a minha mãe, ela falou assim: Nossa, vocês estão repondo o sábado ainda. Em São Paulo, acho que nem fizeram e se fizeram foi muito rápido93. Quando dei aula lá, realmente vi que não tem esse compromisso com a educação como a que tem no interior. Eu senti principalmente que aqui [nomeou a escola] tem compromisso, os professores são comprometidos e as crianças gostam da escola. Elas vêm para a escola, não têm faltas, não tem evasão, nada. E eu já fui coordenadora lá [em São Paulo] e já tive que ir atrás de aluno. Então essa é uma experiência para estar falando. Lá existe esse problema e é por conta também da desigualdade social. Daí o que acontece? Famílias desestruturadas e as crianças ficam perdidas.

Desde que chegou de São Paulo, essa funcionária, professora readaptada, trabalha na mesma escola (E2) e, talvez por isso, não tenha tido a oportunidade de conhecer outras realidades sócio-econômicas como a em que se insere a escola 1. Nela há, sim, repetência e evasão de alunos e alunas. Muitos dos alunos e alunas fazem na escola a principal refeição do dia. Desses alunos e alunas, conforme escrito em outro momento, a maior parte não possui moradia adequada, saneamento básico94, alimentação e vestimentas adequadas95. O direito à

educação escolar também lhes é usurpado, quando não se oferece, pelo menos, aquilo para a qual a escola, inclusive na concepção liberal burguesa, foi criada: os rudimentos da leitura e da escrita. Infelizmente a escola capitalista não tem assegurado minimamente a transmissão de conhecimentos científicos e culturais, como pode ser percebido principalmente em relação ao nível de conteúdos ministrados na quarta série da escola 1, já frisado em momento anterior.

A educação (escolar) foi muito citada pelas entrevistadas como um direito social. Mas parece que, na prática, há uma dificuldade enorme em garantir esse direito. Isso perpassa 93Reposição de aulas em decorrência da greve realizada por parte da categoria docente. No semestre em que

foram realizadas as entrevistas na escola 2, houve uma greve dos professores e professoras de vários níveis de ensino e em vários pontos de cidades de São Paulo. Nesta escola, também ocorreu a paralisação de professoras, diretora, vice-diretora e coordenadora. A escola era considerada uma das escolas-chefe para impulsionar professores e professoras de outras escolas a também aderirem à greve. Contudo, de acordo com esta própria professora (readaptada), a diretora foi coagida por uma representante oficial do governador do Estado, num dia de domingo no qual não havia ninguém na escola, a convencer as professoras a voltarem da greve imediatamente, sob pena de ser transferida para uma cidade longínqua. A vice-diretora, coordenadora, professoras e professores se sensibilizaram em relação à causa da diretora e, naquela mesma semana, voltaram da greve.

9408/08/07. Hoje um aluno perguntou à professora Joseane se iria chover. Ela respondeu-lhe que, pelo tempo,

achava que não. O aluno cabisbaixo disse baixinho: “que pena, hoje eu queria toma banho.” (CADERNO DE CAMPO E1, 2007).

95

“Nesses primeiros dias de observação, indignei-me com alguns aspectos, pois as crianças são bem simples, roupas batidinhas e com chinelinho nos pés, quando não, um tênis gastado. Frequentemente é possível observá-las chupando o dedo ou fazendo carinhos na cabeça ou exibindo uma garrafinha pet com suco artificial ou um pacote de bolacha recheada.” (CADERNO DE CAMPO E1, 2007). No inverno, muitas crianças frequentavam a escola sem agasalho e com sandálias nos pés. Os lábios ficavam roxos.

desde as questões de políticas públicas educacionais, como a valorização dos professores e