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Os limites dos documentos internacionais e nacionais para a efetivação da educação em direitos humanos numa concepção crítica

APROXIMAÇÕES PARA UMA PERSPECTIVA CRÍTICA

3.2 Os limites dos documentos internacionais e nacionais para a efetivação da educação em direitos humanos numa concepção crítica

A Declaração de 1948, como dito em outro momento, preconiza em seu artigo primeiro que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade de direitos. Mas, como

bem pondera Arendt (apud FORTES, 2010, p. 7), os seres humanos não nascem livres e iguais em dignidade e direitos, mas conquistam esses direitos em processos de construção e reconstrução, de organização e luta política.

Conforme pontua Viola (2010), a Constituição de 1988 trouxe o debate sobre as possibilidades de construção de políticas públicas na área dos direitos humanos no país. Ressalta o autor que uma política pública na área da educação em direitos humanos terá sentido quando os princípios dos direitos humanos orientarem a sua elaboração, implementação e avaliação, com a participação ativa da população.

Assim, questiona-se: as políticas públicas de direitos humanos e as que com ela dialogam diretamente pretendem mesmo, com seus anúncios/discursos, uma educação para emancipação humana? Não será feita uma abordagem mais detalhada da análise do discurso oficial sobre o tema por fugir ao escopo deste texto. Restringir-se-á a discussão a alguns comentários de que, mesmo anunciando a educação em direitos humanos, o Estado pode estar escamoteando os seus interesses de atendimento à ordem capitalista.

Nos PCNs há uma contradição, visto que, se por um lado, existe uma preocupação com as questões sociais, por meio dos Temas Transversais, por outro, há todo um interesse de adequação ao sistema neoliberal, conforme dito anteriormente. Os PCNs surgem no início do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Para atender às recomendações de organismos financeiros internacionais, o país iniciou sua reforma educacional por meio do assessoramento de um grupo de especialistas da Espanha, Argentina e Chile e outros países que já haviam realizado suas reformas neoliberais. Acrescente-se, na maior parte, os professores e professoras que nem sequer chegaram a conhecer os PCNs.

Na realidade, o processo de construção dos Parâmetros não envolveu de modo significativo os professores e muitos nem sequer chegaram, até o momento, a conhecê-los e muito menos a assimilá-los. Em geral, entre os docentes há bastante ceticismo em relação às sucessivas reformas curriculares, principalmente porque o discurso da melhoria da qualidade do ensino não vai, em geral, acompanhado de medidas efetivas de aperfeiçoamento das condições de trabalho dos docentes e de um salário digno. (CANDAU, 2000, p. 84-85).

Para Jacomeli (2004a, p. 7), falar em “[...] PCNs e temas transversais é discutir a base de sustentação teórica dessa proposta: o pensamento liberal, repaginado através do neoliberalismo, e o pensamento escolanovista, agora ‘enriquecido’ pelo construtivismo.”

O PNEDH (2006, p. 17) apoia-se em documentos e recomendações dos organismos internacionais, dentre eles, o Programa Mundial de Educação para os Direitos Humanos

(PMEDH) e seu Plano de Ação, da ONU, 2005. Os objetivos balizadores do Programa, conforme estabelecido no artigo 2º são:

a) fortalecer o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais; b) promover o pleno desenvolvimento da personalidade e dignidade humana; c)

fomentar o entendimento, a tolerância, a igualdade de gênero e a amizade

entre as nações, os povos indígenas e grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos; d) estimular a participação efetiva das pessoas em

uma sociedade livre e democrática governada pelo Estado de Direito; c)

construir, promover e manter a paz. (grifos nossos).

Em relação à educação básica, o PMEDH (2006, p. 23-24, grifos nossos) tem por princípios norteadores:

a) a educação deve ter a função de desenvolver uma cultura de direitos humanos em todos os espaços sociais; b) a escola, como espaço privilegiado para a construção e consolidação da cultura de direitos humanos, deve assegurar que os objetivos e as práticas a serem adotadas sejam coerentes com os valores e princípios da educação em direitos humanos; c) a educação em direitos humanos, por seu caráter coletivo, democrático e participativo,

deve ocorrer em espaços marcados pelo entendimento mútuo, respeito e responsabilidade; d) a educação em direitos humanos deve estruturar-se na

diversidade cultural e ambiental, garantindo a cidadania, o acesso ao ensino, permanência e conclusão, a equidade (étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre outras) e a equidade da educação; e)

a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais da educação básica e permear o currículo, a formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o projeto político-pedagógico da escola, os materiais didático-pedagógicos, o modelo de gestão e avaliação; f) a prática escolar deve ser orientada para a educação em direitos humanos,

assegurando o seu caráter transversal e a relação dialógica entre os diversos atores sociais.

A educação em direitos humanos nasce no contexto que seguiu após a Segunda Guerra Mundial, com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), com determinados propósitos e discursos, conforme visto nos capítulos anteriores. Portanto, não se pode negligenciar o contexto histórico em que emerge a educação em direitos humanos e a sua afirmação ao longo dos anos.

A hegemonia neoliberal vem se afirmando no plano internacional, apesar das crises do capitalismo, e os diversos governos, até mesmo aqueles de esquerda não se posicionam de maneira contrária, aderindo à lógica capitalista, principalmente em relação às políticas econômicas. Neste contexto, os direitos humanos, que fazem parte da agenda internacional, são reconhecidos e (re)situados, conforme se lê em Candau (2008a).

A ONU elaborou o PMEDH (2005), que defende uma leitura liberal dos direitos humanos, ao elencar, entre outros objetivos, o fortalecimento ao respeito dos direitos humanos e às liberdades fundamentais e o estímulo à participação da população em uma sociedade livre e democrática governada pelo Estado de Direito. Conforme discutido no capítulo II, a democracia defendida e implementada pelo liberalismo é a representativa, como renúncia à participação efetiva da população nos processos decisórios e as liberdades fundamentais vinculam-se à defesa da propriedade privada.

As leituras desses documentos, tanto nacionais quanto internacionais, indicam, na maior parte das vezes, um trabalho, na perspectiva dos direitos humanos, voltado ao desenvolvimento de hábitos, atitudes e valores, como cooperação, respeito, amizade etc. São estabelecidas várias metas e ações, mas não se questiona a estrutura social e não se aborda a socialização dos meios de produção. Esvazia-se a educação em direitos humanos de seu caráter político, como já assinalado em outra parte deste texto. Conforme argumenta Orlandi (2007, p. 238, grifos da autora), em relação, por exemplo, à Declaração de 1948

[...] o exercício da igualdade vem sempre acrescido de um enunciado que atravessa toda a Declaração: ‘a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar numa sociedade democrática’. Não se abre mão da ordem pública e se visa precipuamente à liberdade, à justiça e à paz no MUNDO.

Não há um investimento significativo por parte do governo em ações práticas para a concretização da proposta de educação em direitos humanos. Candau (2007, p. 410) considera que, no campo de formação de professores e professoras, as iniciativas para discutir a temática são tímidas ainda, e esta é uma questão urgente “[...] se queremos colaborar para a construção de uma cultura dos direitos humanos que penetre as diferentes práticas sociais”. Silva, A. A. (2010) destaca a falta de elaboração e aquisição de recursos didático-pedagógicos em direitos humanos.

A Constituição (1988) e a LDBEN (1996) garantem o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, mas, na prática, se assistiu à implementação da visão construtivista, fundamentada nos experimentos clínicos de Piaget. “O ministério inundou todo o sistema educativo com uma linguagem psicológica: o Construtivismo. [...] O Construtivismo foi supervalorizado. Só se pensava em psicologia, psicologia, psicologia. O ministério financiava cursos de Construtivismo39.” (SANTOMÉ apud ANDRADE, 2007, p. 120).

39Jacomeli (2004a) defende uma aproximação das teorizações de Piaget, precursor do Construtivismo, com os

postulados da Escola Nova, marcado por uma postura teórica eclética que é característica do pragmatismo. Essa teoria, tal como foi incorporada, na opinião da autora, pelas políticas educacionais visa atender os interesses neoliberais.

Em relação à gestão democrática do ensino público a Constituição (1988) a elege como um princípio da Educação Nacional. Na escola, o Conselho de Escola, é o órgão máximo de deliberações. Entretanto, a constituição deste órgão colegiado se dá por meio da

representação dos segmentos de alunos e alunas, pais e mães, professores e professoras,

funcionários e funcionárias e de diretores/diretoras de escola. A democracia funciona, no âmbito escolar, de maneira indireta, por meio da representação.

Servilha (2008) constata em sua pesquisa que, embora a gestão democrática da escola pública proponha o exercício da democracia e a legitimação da participação das pessoas na construção coletiva na tomada de decisões, seja em assuntos pedagógicos, financeiros ou administrativos da unidade escolar, pouco resta para que as unidades escolares deliberem devido às suas ações estarem atreladas a uma série de determinações pré-estabelecidas pelas secretarias estaduais e municipais de educação40. Acrescenta que a autonomia da escola

esbarra, também, em outras questões como a formação precária de professores e professoras, más condições de trabalho, baixos salários, pouco interesse de alguns segmentos da comunidade escolar (pais e mães, alunos e alunas, professores e professoras), além do excesso de burocracia e da concentração de poder na figura do(a) diretor(a). Assim conclui a pesquisadora:

O discurso em defesa da democratização do acesso e do ensino de boa qualidade, da participação da comunidade local e escolar quanto à tomada de decisão permeia a legislação oficial desde o período pós-ditadura militar até nossos dias. Porém, o modelo continua centralizador, mesmo quando seus decretos, pareceres, leis dizem o contrário. A gestão continua regulamentada e ordenada de cima para baixo, atendendo ao ideário neoliberal. (SERVILHA, 2008, p. 129).

De um lado, os documentos que tratam dos direitos humanos apresentam limitações a sua efetivação na prática. De outro, apresentam lacunas que permitem a batalha pela materialização dos direitos. Neste processo de lutas a educação escolar (na perspectiva dos direitos humanos) desponta como instrumento capaz de colaborar com as lutas sociopolíticas mais amplas por uma sociedade mais justa. Isto é assunto do próximo tópico.

40O objetivo da pesquisa consistiu em investigar a autonomia das unidades escolares nos aspectos pedagógicos,

administrativos e financeiros, tanto na legislação vigente quanto na prática das escolas públicas, municipal e estadual, no município de Marília.

3.3 As possibilidades: aproximações para afirmação de uma concepção crítica de