• Nenhum resultado encontrado

1 - O Direito, como instrumento social de solução de conflitos esteve historicamente tendente a equilibrar-se entre duas tendências, de um lado, a garantia da realização da segurança jurídica, quando privilegia preceitos normativos expressos em costumes ou em normas e de outro lado, garantia da realização da justiça, quando põe em destaque as necessidades sociais de cada momento, e de cada caso concreto, ou ideais que se sobrepõem às normas jurídicas. Disto surge a importância de se conhecer o quanto se aceita, em cada sociedade, a liberdade judicial na criação do Direito e quais os seus limites.

O tema está presente nas discussões dos filósofos e juristas desde a Grécia, a tal ponto de ter influenciado o surgimento do Direito Romano, ter influenciado a mais importante mudança no Commom law e ter transposto o curso da história para atingir nossos dias como tema da atualidade.

2 - O Direito moderno surgiu da crença na idéia de que seria possível submeter a justiça a um sistema fundado na razão humana. O Direito natural pressupõe que a natureza identifica-se com o bem e este é uma manifestação da ordem racional à qual basta que o homem se ajuste para a realização do reino da justiça. O Direito natural é a manifestação maior da eqüidade, de inspiração universalista e apresenta como uma de suas principais conquista o reconhecimento do controle do Estado pela sociedade, e se expressa nas declarações de Direitos humanos de cunho universalista e no reconhecimento da soberania do povo para, através de seus representantes, afirmar o Direito, bem como para reformar o seu conjunto. Assim, se imaginou que seria possível compatibilizar o Direito positivo com o Direito natural.

A codificação do Direito e as correntes que proclamaram um tratamento científico para o Direito não foram suficientes para pacificar as posições em torno da necessidade de aplicação da lei igual para todos. Assim, a eqüidade ainda resiste, não mais nos moldes em que existiu na formação do Direito Romano, ou no antigo sistema da equity anglo-saxã, ou seja, como critério de distribuição de justiça, desvinculado de parâmetros previamente estabelecidos e aceitos socialmente, mas na praxe judiciária impulsionada pelas escolas e teorias que descobriram que a codificação e a diferenciação da sociedade moderna não é suficiente para alcançar a justiça, que é o objetivo de toda organização social.

3 - Imediatamente após a edição do primeiro Código Civil, o Código de Napoleão, as divergências entre jus-naturalismo e positivismo jurídico afloraram.

As correntes do pensamento jurídico, principalmente na França e na Alemanha vieram demonstrar que a codificação, ao invés de acabar com a divergência, acirrou-a. Algumas escolas ressaltaram a importância de se privilegiar a busca do Direito no ideal de justiça, como a escola do Direito livre, o realismo jurídico e a jurisprudência dos interesses, enquanto outras se concentraram na necessidade da segurança jurídica, como a escola da exegese e a escola da jurisprudência dos conceitos.

4 - No plano metodológico a discussão orientou-se entre a possibilidade de um tratamento científico do Direito e um tratamento do Direito como campo do conhecimento prático. No primeiro sentido orientou-se a sociologia do Direito e a teoria pura do Direito. Assim é que, durante muito tempo o Direito foi concebido como uma ciência, a qual tem por objeto a norma imposta pela autoridade com competência para tal ou uma exigência de ordem social reconhecida tradicionalmente. Escapam ao âmbito do Direito qualquer outra consideração, como, por exemplo, a adequação daquela para as necessidades sociais ou do caso concreto ou a razoabilidade.

O argumento da autoridade competente, no entanto, não foi suficiente para atender aos reclamos de uma sociedade constantemente agredida por regimes totalitários, o que afasta o Direito, cada vez mais, do conceito de justiça. Surge, então, a necessidade, tanto no plano metodológico, quanto no plano da praxe, de um novo fundamento para o Direito, que não seja o simples reconhecimento da autoridade como competente para editar uma norma, ou a concepção abstrata de justiça.

A primeira crítica vem com a tópica, e a constatação de que as soluções para os problemas jurídicos nem sempre ocorrem no plano das concepções sistemáticas. Em muitas ocasiões o jurista necessita utilizar-se do conhecimento prático para a solução de questões que são essencialmente jurídicas, embora tenham contato com o Direito, como, por exemplo, o reconhecimento do estado de fato, as vicissitudes da linguagem, etc. Nestas situações o intérprete trabalha com topoi, que são lugares comuns, voltados para um tipo de saber que não é sistematizado nem cientificamente, nem no plano do Direito positivo.

O Direito apresenta-se, assim, como um campo para um discurso em que os participantes devem estar muito mais voltados para encontrar soluções adequadas, segundo uma lógica que não é apodítica, mas é a lógica do razoável. As respostas do Direito não são as respostas do tipo certo e errado, mas do tipo adequado e inadequado, pois não há uma resposta única para o caso concreto.

A argumentação prática, de forte presença na decisão judicial, apesar de submeter-se irresignada aos preceitos sistemáticos, não pode conviver sem eles,

como demonstra Canaris, ao formular uma nova concepção de sistema, não do tipo axiomático, ao estilo da concepção do Direito como uma espécie de “matemática social”, mas uma espécie de sistema que assegura campos para a erupção da eqüidade na mobilidade, na abertura e nas denominadas cláusulas gerais.

5 - O Direito constitucional, na atualidade, adquiriu importância ímpar com o Estado Social de Direito e passou a ser visto como o centro estrutural do sistema constitucional, que reconhece, inclusive, valor à produção normativa por sujeitos não integrantes do Estado. O Estado é o centro principal da produção normativa, mas não é o único. Existem outros sujeitos cujo papel mediador entre o público e o privado deve ser reconhecido.

Isto não significa, entretanto, que o Direito é anárquico. Alguns parâmetros devem ser observados como decorrência do nível de organização social que alcançamos. É indispensável que seja assegurado o Estado de Direito, os Direitos humanos fundamentais, a separação de poderes como pressupostos de uma organização social justa, ao mesmo tempo em que se reconhece a autonomia individual. Cremos não se enquadrar nestes pressupostos algum tipo de pluralismo que descarta o papel do Estado como mediador dos interesses particulares e grupais, assim como os que dispensam a importância do ordenamento jurídico como parâmetro de expectativas a serem legitimadas por meio das decisões judiciais.

6 - Neste contexto, a eqüidade é prestigiada como parâmetro de criação judicial do Direito, com o que se alcança a concretização dos Direitos e garantias fundamentais na solução dos casos concretos, utilizando-se, para isto, de eficientes argumentos de ordem dogmática e prática, com instrumentos como a interpretação da norma abstrata, a interpretação dos fatos, a direção do processo, valorizando, na medida do possível, elementos de ordem sistemática e elementos tópicos.

7 - A criação judicial como realização dos Direitos fundamentais é fenômeno representativo do Direito na atualidade em todo o mundo. Os sistemas funcionais da modernidade são complexos, o que significa dizer que os sistemas (jurídico, econômico, político, ético, etc) são diferenciados. A complexidade, entretanto, não é radical. Há intercomunicação entre os sistemas de forma que o sistema jurídico recebe influência de outros sistemas, ao passo que, também, os influencia, até mesmo como decorrência do Estado de Direito que é típico da modernidade.

Isto leva o Direito a atuar também em sintonia com o sistema ético, em intercomunicação que se concretiza através dos Direitos e garantias fundamentais,

o que leva a uma nova visão do Direito, que tem por centro a Constituição e os princípios constitucionais garantidores dos Direitos fundamentais, onde a atividade judicial passa a ter grande importância no desenvolvimento do Direito. Os juízes cada vez mais assumem papéis políticos sem que, com isto, signifique que passem a substituir os políticos. O que se verifica em todo o mundo é uma atividade criadora intensa do poder judiciário, que decorre também da expansão do próprio estado, o qual passou a assumir um papel, não apenas de árbitro dos interesses sociais em jogo, mas também de participante deste jogo, com o Estado Social de Direito.

8 - Em face das características dos princípios, que passam a assumir um novo e importante papel no Direito da atualidade, se destaca um fraco nível de determinações, que lhe permite compatibilizar-se com outros mantendo a unidade e coerência sistemática, as decisões, inclusive as decisões judiciais passam a ser vistas e tratadas como frutos de diálogo.

O processo ganha, assim, forte conteúdo do agir comunicativo e o Direito reforça o seu aspecto procedimental. A ação é vista como um Direito constitucional, inaugurando um novo ramo denominado Direito processual constitucional. O novo processo não pode ser vinculado à concepção tradicional, de cunho privatista, que serve de mero instrumento dos Direitos subjetivos, e cuja condução fica a cargo das partes, das quais depende o impulso inicial e a produção da prova. Também não pode ter conotação inquisitorial, em que o Estado atua como guardião dos interesses particulares. O novo processo deve ser visto como instrumento social de solução de conflitos, com caráter público-social, e identificado com a ação comunicativa e com a valorização dos poderes judiciais de direção do processo, com o que se garante o princípio do acesso à justiça.

O procedimento instituído é instrumento democrático para o acesso à justiça nas causas de menor complexidade, não apenas no plano formal mas no plano substancial, o que se denota com uma atividade estatal que não apenas veda o uso de instrumento de impedimento ao uso deste Direito, mas lhe garante efetividade.

9 - Os princípios decorrentes do devido processo legal são de observância obrigatória nos Juizados Especiais como decorrência da própria característica de órgão do Poder Judiciário. Isto significa que todo e qualquer processo deve ser pautado pela observância do devido processo legal, com a observância das formalidades mínimas para o exercício da jurisdição, como o princípio da inércia, da igualdade, do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e motivação. Trata-se de uma nova visão sobre o formalismo.

Além disso, os Juizados Especiais regem-se por princípios procedimentais que lhe são próprios, ligados à necessidade de uma maior ação comunicativa e da necessidade de eliminação de apontadas barreiras no acesso à Justiça. A criação de princípios próprios para os Juizados Especiais denota a formação de um novo sistema processual, desvinculado do Código de Processo Civil, o qual não pode servir de fonte subsidiária para os Juizados Especiais, porque fundado em pressupostos e filosofia própria, incompatível com a realidade que agora se afigura.

Este novo sistema é caracterizado por uma forte presença de normas de natureza princípiológica e base em conhecimento prático, como a experiência comum. Além disso, reclama do juiz uma intensa atividade criativa no campo processual e até mesmo na condução do processo na direção dos mecanismos para solução de controvérsia.

10 - Um campo em que esta atividade criativa do juiz mais se destaca é no campo do Direito probatório. Aqui a lei se afasta da frustrada tentativa de criação de regras rígidas, ao estilo das provas tarifadas, para deixar à discricionariedade do juiz a produção e a valoração da prova. Há autorização, inclusive, para a produção de provas de ofício, ou seja, sem requerimento da parte, o que reflete, no Direito processual, o abandono do caráter privatista do processo e o tratamento da prova como ela deve ser, ou seja, como demonstração de fatos da vida que comumente se rebelam contra as formatações axiomáticas, e para os quais são de grande utilidade a sabedoria prática e o conhecimento técnológico, a primeira traduzida na lei pela experiência comum, sacramentada pelos princípios constitucionais, em especial o do contraditório e da ampla defesa.

Neste terreno a atividade judicial encaminha-se para a argumentação prática, com importantes reflexos na forma de motivação das decisões e uma revisão das conseqüências da revelia e do dogma do ônus da prova.

Neste aspecto, o procedimento instituído para os Juizados Especiais apresenta-se como um instrumento adequado para cumprir os objetivos do processo em uma sociedade que se pretende moderna – o fortalecimento da ação comunicativa e a realização de Direitos fundamentais.