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Prova e a superação da dicotomia privado-público no processo

6. EQÜIDADE, PROVAS E ARGUMENTAÇÃO PRÁTICA NO ÂMBITO

6.2. Prova em uma perspectiva constitucional

6.2.1. Prova e a superação da dicotomia privado-público no processo

O Direito processual tradicionalmente teve caráter privado. Em Roma, era ônus da parte trazer a juízo o demandado, fazendo uso, inclusive, da força física, não cabendo ao juiz o poder de tomar iniciativas neste sentido. A iniciativa do impulso era das partes, embora o tribunal não carecesse, de todo, da faculdade de tomar certas decisões.237

O Direito processual, ou Direito “adjetivo”, era concebido como um apêndice, acessório do Direito substancial ou Direito material, e a ação nada mais era do que o Direito material em movimento, que mais tarde veio a inspirar a concepção civilista do Direito de ação.

O surgimento do Estado moderno repercutiu na teoria do Direito de ação, que passou a ser visto não mais como mera reação contra a lesão do Direito, mas como um Direito autônomo, exercitável contra o Estado e independente em face da relação jurídica de Direito material.

A visão de um processo de caráter público não foi absorvida com facilidade pela cultura jurídica. Como lembra Dinamarco, “nos espíritos permaneceu a marca privatista”,238 e mesmo em um Direito processual codificado permaneceu a tendência para aplicá-lo como se de Direito privado se tratasse.

Deste modo formou-se a cultura processual pátria, com a tônica na defesa de Direitos individuais disponíveis, em que se relega ao juiz um papel muito tímido, seja na condução do processo, seja na efetividade das decisões.

Basta lembrar o amplo poder de disposição das partes sobre as provas, os ônus dele decorrente e a dependência que o condutor do processo tem em relação à produção das provas, e até as restrições impostas ao juiz sobre a valoração das provas, como no caso da revelia do réu ou em hipóteses várias em que há resquício do sistema legal de provas.

237 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de: Do formalismo no Processo Civil: São Paulo. Ed. Saraiva. 1997, p. 17.

238 DINAMARCO, Cândido Rangel: A instrumentalidade do processo. 10ª. Edição. São Paulo: Malheiros Editores.

As funções atribuídas ao juiz na efetividade do Direito sempre foram muito limitadas. Tradicionalmente foi ressaltado o aspecto secundário da jurisdição e só muito recentemente se admite, por exemplo, a execução específica das obrigações de fazer.

De igual sorte, a divisão em processo de conhecimento e de execução, baseada na crença exacerbada na autonomia privada, que em muito prejudica a efetividade do processo. Presume-se que o objetivo primeiro do processo de conhecimento é apenas impor o cumprimento da obrigação, e, uma vez imposta, o devedor voluntariamente a cumprirá. Caso não cumpra, cabe ao credor, novamente, acionar o Judiciário para que haja o cumprimento, com subterfúgios em pressões sobre a vontade do obrigado no sentido de fazer cumprir a obrigação, e, só então, com eventual desapropriação dos bens do devedor.

Nestas linhas, caracteriza-se no Direito processual civil um aspecto privatista, supervalorizando a autonomia individual e fazendo depender da iniciativa das partes o impulso processual. Este processo não atende às necessidades da sociedade moderna, pois a promessa da igualdade formal, na qual ela se baseia, não foi cumprida. O fato de tal garantia estar insculpida nos textos constitucionais não permitiu que uma classe muito importante de demandas e de pessoas tivesse acesso à jurisdição.

Em oposição a esta abordagem, surge o Direito processual como Direito público. Ocorre que a tendência a um processo de cunho inquisitorial, em que o Estado se apresenta como tutor dos interesses individuais e estes são submetidos ao interesse público, também não atende às exigências do Estado Democrático de Direito, pois sufoca a autonomia individual.

O processo compatível com o Estado Democrático de Direito reclama uma nova visão em que se garanta o acesso à ordem jurídica justa, de modo que os Direitos e garantias fundamentais passam a ser o centro, a fonte principal do Direito, caindo por terra a tradicional dicotomia público-privado.

O Direito processual próprio para sociedade complexa dos nossos dias tem conotação público-social. O juiz, atuando como mediador eficiente na solução de conflitos, necessita de poderes para o que se exige uma nova concepção de processo. Não se mostra compatível com o papel que se exige do juiz, no processo moderno, a inércia e a omissão, deixando à iniciativa das partes o poder de direção probatória, pois esta também tem caráter público-social.

É neste contexto que se destacam aspectos sociais do Direito, como o reconhecimento de novos sujeitos processuais com legitimidade para atuarem independentemente de manifestação dos reais interessados, técnica que permite alcançar o exercício do Direito de ação em questões em que os sujeitos, por motivos vários, não se sentem estimulados a demandar em juízo, mas ao mesmo tempo se preserva a imparcialidade do julgador como garantia do princípio da demanda.

Tal processo centra-se na idéia de criar um processo civil no qual a parte menos hábil, menos culta, menos rica possa se encontrar em pé de igualdade material e não apenas formal em relação ao seu adversário.

A exigência de um processo em que o juiz exerce papel preponderante é cumprido no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, onde se permite a supressão das deficiências das partes mediante a aplicação do princípio da informalidade (art. 2o, da Lei no. 9.099/95), da instrumentalidade das formas (art. 13 da Lei 9.099/95). Também na produção das provas o juiz exerce um papel mais ativo, podendo determinar a produção de provas, na concepção de que esta não se relaciona com singelos interesses privados, mas diz respeito à atividade de interesse público, que é a jurisdição.

O órgão judicial tem também o dever de advertir os litigantes a respeito das irregularidades e incompletudes de seus pedidos e alegações.

Um dos princípios que denotam o caráter público do processo é o princípio da preclusão e a divisão do processo em fases, o que exige que os atos sejam realizados na fase processual correspondente e dentro de determinado espaço de tempo, findo o qual o ato já não se poderá realizar.239 De outra parte, um sistema recursal que faz cada fase do processo se subordinar a preclusões que dependem do interesse das partes coloca em cheque os poderes de condução do processo de que deve dispor o juiz, submetendo-o à discricionariedade das partes.

Um procedimento oral, concentrado e informal mostra-se incompatível com um rígido sistema de preclusão, pois aqui as fases tendem a se confundir temporalmente. Ademais, no procedimento oral, o juiz tem papel de destaque na condução e produção de provas, o que dificulta o reconhecimento de preclusão, que pela sua própria natureza, ocorre em relação às partes.

A atividade do juiz, neste particular, caracteriza-se como supletiva e auxiliar, ultrapassando a posição de mero árbitro fiscalizador da observância das

“regras do jogo” para alcançar status de ativo participante, com vistas a evitar a perda da causa pela escassa habilidade da parte.

Ativismo judicial não se confunde com arbitrariedade. É indispensável uma atitude dialógica por parte do juiz. Não é o Estado-Juiz o senhor dos interesses em confronto, mas apenas um mediador, devendo as partes terem a oportunidade de expor suas pretensões de forma eficaz: “o monólogo apouca necessariamente a perspectiva do observador e, em contrapartida, o diálogo, recomendado pelo método dialético, amplia o quadro de análise, constrange à comparação, atenua o perigo de opiniões preconcebidas e favorece a formação de um juízo mais aberto e ponderado”.240

O processo apresenta-se, neste contexto, como o espaço para um diálogo ponderado, em que a atividade dos interessados, mediada pelo Estado-Juiz dá-se em termos de cooperação na busca da decisão mais razoável. Dinamarco observa que: “é preciso, de um lado, reprimir a inquisitoriedade que dominou o processo penal autoritário; e, de outro, abandonar o comportamento desinteressado do juiz civil tradicionalmente conformado com as deficiências instrutórias deixadas pelas partes no processo”.241

Sob este paradigma, o processo apresenta-se como um espaço para o exercício da cidadania.