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Prova e liberdade judicial

6. EQÜIDADE, PROVAS E ARGUMENTAÇÃO PRÁTICA NO ÂMBITO

6.1. Prova e liberdade judicial

argumentação nos Juizados Especiais Cíveis.

6.1. Prova e liberdade judicial

6.1.1. Livre convencimento e sistema legal de provas

A extensão dos poderes do juiz na produção e na valoração das provas é matéria de especial interesse no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, em face não apenas das características do seu procedimento, mas também em razão de uma nova postura que se exige do juiz em um processo compatível com o Estado Democrático de Direito, que é o signo do século que agora se inicia.

O papel do juiz na produção das provas sempre foi de especial interesse, desde Roma, onde o processo era presidido pela oralidade e pelo princípio do livre convencimento. Cabia à parte trazer as provas a juízo e o juiz tinha poder absoluto sobre sua valoração, segundo a parêmia mihi factum, dabo tibi ius.

O sistema da prova legal presidiu o processo medieval, quando ao juiz não era conferido o poder de valorar o conteúdo da prova segundo critérios subjetivos. Assim, por exemplo, o testemunho de um servo não tinha a mesma força do testemunho de um nobre.232 Este sistema vinculava a atividade do juiz às hipóteses e às formas com que as provas deveriam ser produzidas, bem como à sua valoração, deixando ao juiz o papel de mero aplicador passivo da norma.

O sistema de provas do Código de Processo Civil conserva resquícios tanto do Direito Romano quanto do Direito medieval. Isto se manifesta na especificação das provas, que faz a produção das provas depender da iniciativa das partes, como no antigo Direito Romano, bem como na existência de várias regras sobre os meios de descobrimento da verdade, inspirada no sistema legal de provas.

232 SILVA, Ovídio Baptista da e GOMES, Luiz Fábio: Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.p. 296.

Assim é que ainda subsistem alguns resquícios deste sistema, por exemplo, o depoimento de uma pessoa impedida não tem o mesmo valor legal que o de uma pessoa não impedida, mesmo que o seu depoimento esteja em consonância com o conjunto probatório (art. 405, a contrário senso), a não ser que não haja outras provas a serem produzidas.

Da mesma forma, não pode ser aceito o testemunho do incapaz, mesmo que ele tenha credibilidade, em face dos demais elementos do processo e do conhecimento prático (art. 405 e 405, § 1o, do Código de Processo Civil). De igual forma é o legislador, e não o juiz, quem valora a prova no caso de revelia (art. 319), considerando verdadeiros os fatos alegados pelo autor, sem submetê-los ao critério de verossimilhança.

Também se nega valor à reprodução de documentos não autenticados, sem se indagar sobre a idoneidade que tenham para demonstrar a verdade, mesmo que sua autenticidade não seja contestada (art. 365, III) e existem ainda regras sobre o valor das provas no caso de prova testemunhal para contratos acima do equivalente a 10 salários mínimos (art. 407 do Código de Processo Civil).

Tudo isto deixa a impressão de que o legislador não delegou por completo ao juiz uma das mais importantes atividades do exercício da jurisdição, que é o ato de valorar a prova, a qual tem por finalidade reproduzir, no processo, o estado de coisas.

Não obstante o sistema da persuasão racional ser o que rege a produção e apreciação das provas, ainda é grande a influência do sistema da prova legal no Código de Processo Civil.

O papel do juiz em um sistema de provas com estas características é bastante tímido, pressionado entre as valorações tarifárias próprias do sistema legal de provas e o poder dispositivo das partes. A sua função eqüitativa é bastante limitada e o papel que lhe cabe aproxima-se de um operador que trabalha sob o critério único da subsunção.

Uma tendência oposta a esta é a de se valorizar um ativismo judicial do tipo inquisitorial, que também não é garantia de um processo justo.233 Naquele sistema, o Estado coloca-se como tutor dos interesses individuais e o Direito privado é absorvido pelo Direito público.

O Direito patrimonial do indivíduo passa a ser interesse deste apenas enquanto membro de um determinado grupo social, o que implica em negação da liberdade individual. Um processo deste estilo não é libertário e, portanto, não promove a dignidade da pessoa humana, porque não observa a esfera da autonomia privada.

O processo moderno, pautado pelos princípios do Estado Democrático de Direito não pode estar vinculado a nenhuma destas tendências extremas. A atuação judicial característica das tendências da atualidade não se confunde com arbitrariedade, mas tem como parâmetro uma inarredável atitude dialógica por parte do juiz.

O juiz deve ter papel ativo na condução do processo, de forma a anular os obstáculos que impedem que o processo funcione como um espaço comunicativo no qual se realiza a solução de conflitos segundo a ética da democracia, a qual se expressa no valor da dignidade humana. Tais obstáculos são identificados no formalismo, nos altos custos, na morosidade, na falta de informação, e que atingem especialmente os interessados em litígios de pequena monta.

A colaboração das partes tem relevante papel na formação de um processo que se funda da certeza de que uma decisão será tomada (não se admitem soluções no liquet) e na incerteza quanto ao seu resultado: “... a incerteza motiva a aceitação dum papel e conjuntamente também da relação desse papel, que absorve gradualmente a incerteza. Se não existir essa incerteza, então não ocorre um processo jurídico singular...”, certeza esta que leva a que “...todos os outros participantes tem de ser induzidos através do próprio sistema específico do processo jurídico a uma cooperação justificativa da causa”.234

O ativismo judicial associado à colaboração das partes deve dar o norte do processo com fundamento nos valores da democracia, os quais adquirem sua melhor expressão nos princípios decorrentes do devido processo legal.

Neste novo processo, inspirado no princípio do devido processo legal, a livre investigação e valoração das provas, ao lado da oralidade, da publicidade e do fortalecimento dos poderes instrutórios do juiz apresentam-se como indispensável instrumento na busca do fundamento de um processo justo, sendo este o sentido que orientou o legislador ao editar a Lei no. 9.099/95.

No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis foi criado um sistema de provas que se orienta no sentido do respeito ao devido processo legal, do fortalecimento dos poderes instrutórios do juiz, o que relativiza o critério do ônus subjetivo e da prova tarifada encontrada no Código de Processo Civil.

Este processo, mais dialógico e aproximativo mostra-se mais adequado para os conflitos típicos de uma sociedade de massa e, em especial, para aquela classe de conflitos que, em razão de sua menor complexidade, sempre estiveram excluídos do âmbito da prestação jurisdicional.

6.1.2. Prova e motivação no Direito da atualidade

A produção de prova judicial envolve não apenas a reprodução dos fatos no processo, mas também a argumentação a respeito deles, com o objetivo de se inferir outros fatos não completamente demonstrados, conhecidos como prova indiciária, e sobre as conseqüências jurídicas dos fatos demonstrados.

Não é suficiente que seja demonstrado o fato com o objetivo de que o juiz se convença da sua existência. Exige-se também que o juiz exponha os motivos que o levaram a convencer-se daquela conclusão (art. 93, inciso IX, da Constituição Federal). Por isto, a prova deixa de ser um problema da parte e passa a ser também um problema do juiz.

A argumentação prática tem, assim, a função de demonstrar a ocorrência do fato e, portanto, acha-se intimamente vinculada ao dever de motivar, não se podendo afirmar a realização deste sem o auxílio daquela.

Dada a diversidade de fatos que fazem parte do cotidiano, levando às mais diferenciadas combinações de conseqüências jurídicas, não é possível disciplinar detalhadamente os meios de demonstração de sua ocorrência.

Somente em um sistema de discurso mais livre é possível se chegar ao assentimento sobre a ocorrência de um fato, daí porque a motivação, em tema de prova, deve ser a argumentação fundada na estrutura do real, e não em simples interpretação ou aplicação de um preceito jurídico. Como lembra Perelman: “... a motivação da sentença jamais pode limitar-se à explicitação dos institutos, por mais generosos que sejam: sua função é tornar a decisão aceitável por juristas e, principalmente, pelas instâncias superiores que teriam de conhecê-la”.235

Estes argumentos, quando colocados em um procedimento orientado pela técnica tradicional, inspirada no sistema da prova legal, quase sempre giram em torno da interpretação ou aplicação de um dispositivo legal, ou seja, a argumentação é majoritariamente dogmático-jurídica e o ato da procura da verdade apresentar-se-á como uma limitada subsunção, sem preocupações com aspectos não legais, como a busca da justiça.

Em um processo dialógico, a técnica jurídica é substituída pela argumentação com base em princípios, em que sobressaem aspectos axiológicos e práticos. Aqui sobressairão, como objetivos do processo, a solução do conflito segundo o parâmetro do justo, em que a argumentação sobre provas será voltada para a reprodução mais fiel possível dos fatos, de acordo com valores jurídicos, como a boa-fé.

Viehweg, sobre este ponto, lembra que: “... quem se envolve em uma situação discursiva, assume deveres, o que outra vez é algo bastante compreensível para o jurista prático. Pois este conhece os seus deveres processuais, que lhe incumbe cumprir como deveres de afirmação, fundamentação, defesa e esclarecimento”.236

A argumentação se voltará à estrutura do real, com análise sobre ligações de sucessão, como vínculo causal, relação de fim e meio, ligação de co-existência, etc.

A argumentação prática não é arbitrária, mas controlada. O controle da subjetividade ocorre com a publicidade que é ínsita ao devido processo legal, obtemperada com o contraditório e o duplo grau de jurisdição. As razões da decisão devem ser expostas, em face do princípio constante do art 93, inciso IX da Constituição Federal, com o que se dá também publicidade à atividade jurisdicional. Mais do que a simples publicidade, tal regra permite uma argumentação racional em segundo grau de jurisdição, com o que o juiz é controlado também por esse auditório especializado.

É interessante, para o juiz e para as partes, que haja consenso em torno da decisão, o que indica a necessidade de se tentar eliminar qualquer resistência em relação a ele, evitando, por conseqüência, o maior número possível de subjetivismo na apreciação das provas. A sua preocupação, portanto, será a de demonstrar que a decisão é a melhor solução para o conflito, e tentar convencer os integrantes da comunidade jurídica (partes, advogados, juízes de segundo grau), de que deve ser mantida e executada.