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Direito, moral e política

3. EQÜIDADE, CONSTITUIÇÃO E PROCESSO

3.1. Sistema social e sistema jurídico

3.1.2. Direito, moral e política

O Direito, que na antigüidade tinha uma ligação muito forte com aspectos mágicos e religiosos, atingiu a modernidade com a pretensão de purificação. Nas palavras de Habermas. “... o Direito encolheu, ficando reduzido a uma única dimensão”.158 O sistema jurídico continua sendo o único lugar onde o Direito pode preservar sua forma por virtude própria e, também, sua autonomia.

A vinculação entre Direito, moral e política é necessária. Se o Direito se reduzisse apenas às ordens do legislador político, dissolver-se-ia em política. Se o Direito se mantivesse fiel apenas à justiça da lei, independente da política e da moral, perderia sua identidade, por desaparecerem os pontos de vista legitimadores.

O Direito racional tem a função de encontrar um equivalente para o Direito sagrado e para o Direito consuetudinário. Este equivalente articula-se em um nível pós-tradicional da consciência moral e submete o Direito moderno a princípios e o transpõe para o nível da racionalidade procedimental. O pensamento procedimental relaciona a razão do moderno Direito natural, que é, essencialmente, razão prática, ou seja, “... a razão de uma moral autônoma”.159

O Direito positivo é submetido a princípios morais, segundo a idéia do contrato social que se utiliza de procedimentos para fundamentação da ordem jurídica. Exige-se, por isso, distinção entre normas, princípios justificadores e processos.

Neste contexto, observa-se uma importante característica do Direito na atualidade que é o retorno à sua concepção como experiência ética. O radicalismo de certas concepções do positivismo levou a um isolamento total do ordenamento jurídico, como se não fosse este fruto da experiência humana, o que o levou a se constituir em mero instrumento da perversidade do Estado e das autoridades que o representavam.

Uma guinada no Direito encaminhou-o na direção de valores que devem sempre presidir as decisões políticas e jurídicas. De um lado, o sistema jurídico e as

158 HABERMAS, Jürgen: Direito e Democracia, entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 232.

159 HABERMAS, Jürgen: Direito e Democracia, entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 238.

relações internacionais (pelo menos como objeto de retórica) pautam-se nos Direitos fundamentais como argumento até mesmo para intervenções militares.

No plano do Direito processual, verifica-se uma intensa identificação entre a moral e o Direito, especialmente em face da exigência de legitimidade. É que tanto a racionalidade quanto a autonomia do Direito não resultam diretamente do seu conteúdo, mas do fato de obedecerem a procedimentos legítimos auto-regulados.160

No plano do Direito interno, não são raras, especialmente nos últimos anos, as hipóteses em que o próprio legislador, sensível a estes aspectos, reconhece, na discussão do caso concreto, o poder para a decisão final em questões que envolvem nítido conteúdo de outros sistemas de ordem política, moral, etc. A título de exemplo, lembro que através de ação popular se permite a anulação de ato ofensivo à moralidade administrativa (art. 5o., inciso LXXIII da Constituição Federal). De outra parte, a moralidade, a finalidade e a eficiência são requisitos do ato administrativo, o que permite o controle jurisdicional nesses aspectos (art. 37 da Constituição Federal).

A ordem constitucional é o centro de um sistema jurídico em torno do qual gravitam princípios e normas inferiores. A Constituição alcança nossos dias com grau de importância que não alcançou em épocas anteriores. Muito mais do que no passado, ela é a carta da cidadania, é onde os corpos sociais autônomos encontram respaldo para se relacionarem juridicamente. Funciona como uma grande responsável pelo acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político.161

A construção do sistema jurídico faz-se com a contribuição da norma abstrata e também de outros elementos. Estes são os interesses trazidos ao debate que se trava em cada conflitos ou no conjunto dos conflitos, processados com a mediação do Estado através da atividade jurisdicional. Tais interesses representam um substrato de fundamental importância para a interpretação da norma, e, portanto, para a compreensão do seu sentido, através do que se convencionou denominar de interpretação jurisprudencial, que não é fruto apenas da concepção de mundo que tem o julgador, mas também desses interesses sociais que se encontram em confronto.

Tais interesses concretos em debate permitem não só a colheita do sentido que o legislador quis dar à norma, mas também a extração de um sentido

160 GUERRA FILHO, Willis Santiago: Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna. Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 1997, p. 32

161 GUERRA FILHO, Willis Santiago: Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna. Porto Alegre: Livraria

diferente que se alcança pelo senso comum da comunidade jurídica, que permite até mesmo a negação de eficácia a determinado dispositivo jurídico.

Com isto, manifesta-se uma rica contribuição da Sociologia para a construção do Direito, em que realidades sociológicas, econômicas, culturais, etc passam a integrar o conteúdo do Direito por força da atuação jurisdicional. A exigência de atendimento a estas realidades não pode ser compreendida como contrária ao ordenamento jurídico, e sim de acordo com este, a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico.

A responsabilidade por conferir sentido a um determinado princípio ou norma constitucional não é apenas dos políticos, a quem foi conferido um mandato para tal em nome da maioria da sociedade, mas também dos juízes, a quem foi conferido o poder de solucionar os conflitos reais da sociedade, de acordo com uma pauta previamente estabelecida na Constituição e nas leis, sejam tais conflitos mais ou menos abrangentes.

O Direito, na atualidade, é concebido a partir da constituição e, mais especificamente, a partir dos princípios constitucionais, na linha de uma concepção substancial do devido processo legal. No contexto da concretização dos Direitos fundamentais e da realização das necessidades sociais, chega a ser muito tênue a distinção entre Direito e política e os juizes adquirem um importante papel político. Isto se traduz também em uma manifestação da eqüidade como contribuição para a formação e compreensão do Direito.

Na diferenciação entre a política e uma concepção do Direito por princípios, Dworkin aponta a existência de duas visões opostas a respeito do tema: a primeira entende que as convicções políticas não devem representar nenhum papel nas decisões jurídicas, seguindo a concepção de que Direito e política pertencem a mundos inteiramente diferentes e independentes; a segunda concebe Direito e política como sendo exatamente a mesma coisa, e que os juízes agem como se fossem legisladores.162 Ambas as posições são rejeitadas.

Em questões de princípios, o que há é que o próprio texto constitucional não é decisivo sobre o seu conteúdo. Cabe, então, aos juízes preencher os conteúdos e, para isto, não há como se eximir de utilizar critérios políticos. A análise desta questão resolve-se mediante duas idéias básicas: a idéia da intenção do constituinte e a da distinção entre Direito substancial e processo (due process of law).

Com relação à intenção do constituinte, nem os interpretativistas nem os não interpretativistas chegam a uma explicação razoável sobre o papel do juiz na realização dos postulados políticos da carta de Direitos.

Os primeiros entendem que deve ser buscada a intenção original do constituinte. Ocorre que isto não é possível sem uma análise que escapa em grande parte ao conteúdo do Direito. As discussões sobre aspectos históricos, sociológicos, éticos, religiosos, lingüísticos e, até mesmo, psicológicos, como a discussão sobre se determinada omissão é fruto de negação ou delegação do constituinte originário não constam do texto e são muito frágeis, não se podendo estabelecer sobre eles respostas do tipo certo/errado. Tais análise são, portanto, altamente subjetivas, donde se conclui que as correntes interpretativas têm, na prática, um forte conteúdo de criatividade judicial.163

De outra parte, os não interpretativistas, que advogam a possibilidade de os juízes confrontarem as decisões legislativas com modelos retirados de outras fontes além do texto, como “a moralidade popular, teorias de justiça bem fundadas ou algumas concepções de democracia genuínas”164 não se desvencilham do texto ninguém propõe a atuação judicial a partir de uma tábula rasa. Desta forma, ambas as teorias não desconsideram nem o texto nem os motivos dos que a fizeram, antes procuram colocá-los no contexto adequado.

De igual sorte apresenta-se despida de sentido a distinção entre processo e substância. Dworkin aponta para a doutrina que permite ao tribunal tomar decisões sobre questões referentes ao processo (due process of law) sem, no entanto, poder apreciar questões referentes às decisões sobre Direitos substanciais, que caberiam exclusivamente às casas legislativas. Aponta a inconsistência de tal distinção pela impossibilidade de se distinguir de forma nítida entre processo e substância, com o que se torna inevitável que o juiz de tome decisões sobre Direitos substanciais: “... os juízes podem acreditar que a resposta utilitarista à questão dos Direitos individuais é a correta – que as pessoas não tem nenhum Direito. Mas essa é uma decisão substantiva de moralidade política. E outros juízes discordarão”.

Outro aspecto em que elementos de política se destacam na decisão judicial é nas questões de discriminação positiva. Estas considerações sobre pontos de entrelaçamento entre eqüidade e Direito servem não apenas para sistemas jurídicos de tradição do Common law, em que a eqüidade surge tanto de fatores históricos ligados às origens destes sistemas jurídicos quanto do fato de ser um

163 idem, ibidem, p. 44. 164 Idem, ibidem, p. 44.

ordenamento construído casuisticamente, mas também para ordenamentos como o nosso, construído a partir de um sistema normativo.

Instrumentos como a ação civil pública, manejável por sujeitos que representam interesses grupais e difusos, levam à atuação jurisdicional e, com freqüência, à solução de questões em que os interesses em destaque são de natureza grupal ou difusa cujo conteúdo tem forte conotação política. São assim, por exemplo, as questões ambientais, de defesa do consumidor, do patrimônio público, histórico, etc.

Neste caso, os argumentos quase sempre são pautados pelo princípio da proporcionalidade, de forma explícita ou implícita, e sempre apontam as conseqüências da decisão que podem “melhorar” a comunidade como um todo em detrimento da que representa o Direito individual.