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Processo e ação comunicativa

3. EQÜIDADE, CONSTITUIÇÃO E PROCESSO

3.2. Aspecto procedimental da democracia

3.2.2. Processo e ação comunicativa

Jürgen Habermas formula uma concepção em que explora a possibilidade de convivência através do consenso baseada em uma ética do discurso segundo a qual a única racionalidade é a do diálogo.

O Direito moderno foi dissociado de motivos éticos e atingiu o seu último estágio no Estado Social Democrático de Direito. O positivismo reduziu o Direito a procedimentos que servem a uma justificação do poder.

O Direito foi utilizado como uma chave capaz de mediar todas as relações sociais. A sociedade correta era a que estava organizada de acordo com um programa jurídico. A organização autopoiética do Direito deu origem a um sistema jurídico que não consegue manter uma troca direta com seus mundos circundantes, nem influir neles de modo regulatório. A comunicação sobre o que seja jurídico e injurídico perde o seu sentido social-integrador.

Descartada a opção pelo Direito natural, que subordinava o Direito vigente a padrões suprapositivos, as alternativas que restam para a racionalidade na

aplicação e na fundamentação do Direito são as saídas da hermenêutica jurídica, do realismo e do positivismo jurídico.

A hermenêutica jurídica estabelece uma pré-compressão valorativa, da qual decorre uma relação preliminar entre norma e estado de coisas, abrindo o horizonte para ulteriores relacionamentos. “... a pré-compreensão, inicialmente difusa, torna-se mais precisa à medida em que, sob a sua orientação, a norma e o estado de coisas se constituem ou concretizam reciprocamente”.174 Este relacionamento é influenciado por princípios comprovados historicamente, portanto, de contexto ético-tradicional. A indeterminação deste processo circular é reduzida paulatinamente pela referência a princípios.

De outra parte, o positivismo jurídico pretende: “fazer jus à função da estabilização de expectativas, sem ser obrigado a apoiar a legitimidade da decisão jurídica na autoridade impugnável de tradições éticas”175. Com isto pretende-se garantir a consistência de decisões ligadas a regras e tornar o Direito independente da política.

O agir comunicativo supera a antiga dicotomia entre o juspositivismo e jusnaturalismo: “a tensão entre princípios normativistas que correm o risco de perder o contato com a realidade social, e princípios objetivistas, que deixam fora de foco qualquer aspecto normativo, pode ser entendida como admoestação para não nos fixarmos numa única orientação disciplinar, e, sim, nos mantermos abertos a diferentes posições metódicas (participantes versus observador), a diferentes finalidades teóricas (explicação hermenêutica do sentido e análise conceitual versus descrição e explicação empírica), a diferentes perspectivas de papéis (o do juiz, do político, do legislador, do cliente, do cidadão) e a variados enfoques pragmáticos na pesquisa (hermenêuticos, críticos, analíticos, etc.)”.176

O sistema de Direito compreendido a partir da teoria do agir comunicativo corresponde a um novo paradigma. O modo como o sistema de Direito e os princípios do Estado de Direito podem ser realizados no contexto da respectiva sociedade em um terceiro paradigma de Direito, que denota uma compreensão procedimentalista do Direito, que não se identifica com o Direito formal burguês e nem com o Direito materializado do Estado social.

174 HABERMAS, Jürgen: Direito e Democracia, entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 247.

175 Idem, ibidem, p. 250.

176 HABERMAS, Jürgen: Direito e Democracia, entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 23.

A função integradora da ordem jurídica se alcança com as condições de aceitabilidade racional e da decisão consistente, que seguem de uma série de critérios na prática da decisão judicial.

O agir comunicativo é caracterizado pela interação de ao menos dois sujeitos capazes de linguagem e ação que, com meios verbais e extraverbais, estabelecem uma relação interpessoal. Agir de acordo com normas leva em conta que estas exprimem um entendimento existente em um grupo social, cujo enunciado apresenta-se como um meio de comunicação e que supõe sujeitos isolados. Na circunstância do agir comunicativo interpretar é concordar com definições de situações suscetíveis de consenso.

Ao contrário da razão prática, a razão comunicativa não é fonte de normas de agir. O seu conteúdo normativo reside apenas no fato de quem age de forma comunicativa ser obrigado a apoiar-se em pressupostos pragmáticos e a empreender idealizações atribuindo significado idêntico a enunciados, a levantar pretensões de validade em relação ao que profere e a considerar os destinatários imputáveis, autônomos, e verazes consigo mesmos e com os outros.177 O conceito tradicional de razão prática transforma-se em fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores da opinião e preparadores da decisão na democracia exercitada conforme o Direito.

Quando a razão prática é substituída pela razão comunicativa, alcança-se muito mais do que uma simples troca de etiqueta. O objetivo proposto é transportar o conceito de razão para o medium lingüístico, aliviando-o da “ligação exclusiva com o elemento moral”.

O sentido da lei depende de interpretações derivadas de consenso e a linguagem apresenta-se como meio de compreensão e entendimento. O que é verdadeiro, portanto, não passa de convenção. A razão comunicativa não fica adstrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sóciopolítico, mas suas possibilidades encontram-se no meio lingüístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam.

A linguagem exsurge como meio universal de incorporação da razão. Os pensamentos articulam-se através de proposições, que são partes elementares de uma linguagem gramatical, apresentável como verdade, entendida como a aceitabilidade racional, “como o resgate de uma pretensão de validade criticável sob as condições

comunicacionais de um auditório de intérpretes alargado idealmente no espaço social e no tempo histórico”.178

A ação comunicativa é orientada pela compreensão, ou seja, concordância dos participantes à comunicação sobre a validade de uma expressão e à interação, ou seja, o reconhecimento intersubjetivo da pretensão de validade. O Direito e a moral apresentam-se como normas de segundo grau, porque só se deve recorrer a elas em caso de falência dos meios normais de comunicação e coordenação da ação.

Habermas aponta para a tensão entre faticidade e validade na categoria do Direito, que se manifesta nas duas dimensões da validade jurídica, decorrente, de um lado, da garantia de implementação de expectativas de comportamentos sancionados pelo Estado, com a segurança jurídica, e de outro, da legitimidade das expectativas de comportamento assim estabilizadas.

A validade social das normas do Direito é determinada pelo grau em que conseguem se impor, ou seja, pela sua possível aceitação no círculo dos membros do Direito. A função dos argumentos jurídicos consiste em elevar o nível de aceitação real de decisões motivadas, diminuindo o seu caráter de surpresa. “... uma vez que os argumentos, enquanto garantias para contextos de decisão, são de difícil substituição, o jurista tem a impressão de que os argumentos justificam a decisão e não as decisões os argumentos”.179

Os esforços de reabilitação e as formas empiristas retraídas não conseguem devolver ao conceito de razão prática a força explanatória que ele tivera no âmbito da ética e da política, do Direito racional e da teoria moral, da filosofia da história e da teoria da sociedade.

Habermas admite uma visão procedimental para o Direito privado, mas não para o Direito público, em áreas como Direito constitucional, Direito penal e processual penal, que são contíguos a aspectos morais, e que precisam de uma justificação material.

No Direito privado há possibilidade de atuação de mecanismo de comunicação que substitua o Direito como medium. Em lugar do Direito como meio de comunicação, devem coexistir procedimentos de regularização de conflitos, que são adequados à estrutura do agir orientado ao entender-se. Em lugar da autoridade

178 HABERMAS, Jürgen: Direito e Democracia, entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 33.

vem o debate, ou seja, processos de formação discursivos de vontade e procedimentos de debate e decisões orientados ao consenso.

Na medida em que a autoridade da lei como meio de comunicação é substituída por processos discursivos de formação da vontade e procedimentos de debate e decisão orientados ao consenso, se reconhece de forma muito nítida a eqüidade, pois se manifesta uma espécie de justiça que é buscada e legitimada pelos próprios interessados, que estão mais habilitados para tal.

Este conceito de justo não faz referência a uma concepção heterônoma, mas é relacionado às necessidades do próprio conflito. Neste sentido, Aristóteles já registrava que “... em algumas cidades-Estados os juízes são chamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem o meio-termo, obterão o que é justo. Portanto, justo é um meio-termo já que o juiz o é.”180