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3 CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

3.1.6 Conflito como força transformadora

Não obstante o conflito ser comumente considerado uma perturbação que rompe com a harmonia e equilíbrio constituidores do estado normal da sociedade, ele mostra toda a sua importância como fator impeditivo da estagnação social. Por conseguinte, o conflito não pode ser visto somente como uma patologia social. Conflito é também vitalidade. Um fenômeno fisiológico de desenvolvimento, que apresenta relevância social. Spengler (2010, p. 261) indica que os conflitos não têm, necessariamente, um sentido negativo.

Ao perceber a sociedade como um tecido de relações humanas que se diferencia e transforma sem cessar, o conflito deve, obrigatoriamente, fazer parte dessa constatação como o meio pelo qual muitas dessas alterações acontecem. É por isso que, em princípio, a importância sociológica do conflito não é questionada. Admite-se apenas que ele produza ou modifique grupos de interesse e organizações.

Se não existe sociedade sem conflito, e o conflito só pode aparecer nos sistemas democráticos, a conclusão que se deve chegar é que ele opera como um elemento de interação positiva do homem dentro da ordem social. Enfim, nem todo conflito é negativo. Pelo contrário, é por meio do conflito que muitas sociedades se desenvolvem. A sociedade, assim, aparece sob nova luz quando vista pelo ângulo do caráter sociologicamente positivo do conflito.

Nos limites da observação acessível ao pesquisador, constatou-se um majoritário entendimento de que o conflito pode ser considerado uma interação positiva. Atualmente, uma percepção positiva do conflito pode ser encontrada em Warat, (1990, 2001); Fonkert (1999); Folger e Bush (1999); Vezzula, (2001, 2003), entre outros. Tanto que para Schnitman (1999) o conflito é uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento; Bush e Folger (1999) entendem que o conflito é potencialmente transformativo, ou seja, “a argúcia oferece aos indivíduos a capacidade de desenvolver e integrar suas capacidades de força individual e empatia pelos outros”.

Também Schinitman (1999a) percebe no conflito uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento. Folger e Bush (1999) vão além e compreendem o conflito como parte integrante da vida e capaz de gerar mudanças, conforme descrevem em seu livro “La promessa de mediación” (1996). Explicam esses autores que o conflito é construtivo ou transformativo quando oferece aos indivíduos a oportunidade de desenvolver e integrar suas capacidades de força individual e empatia. Quando tais capacidades são realizadas, passos significativos são dados em direção à mudança pessoal e social.

De fato, considerando que o conflito é uma das mais vívidas interações entre indivíduos, este pode ser o responsável

por trazer mudanças e estimular inovações. Tendo em vista que o conflito é inevitável e, de algum modo, até salutar (especialmente se a sociedade na qual se insere pode ser chamada de democrática), o importante são os meios de manejá- lo, fugindo da ideia de que precise ser coercitivamente combatido e eliminado, passando a encará-lo como um fato inerente e relevante ao tecido social (MONDARDO, 1999). Conforme a abordagem dada aos conflitos, eles podem ser capazes de provocar mudanças e resultados positivos, como evidencia o Quadro 25, que não aconteceriam caso não tivesse se instaurado o dissenso:

Quadro 25 – Causas e consequências no contexto do conflito

Fonte: Mondardo (1999)

Em oposição à ideia ainda corrente que negativa o conflito, Warat (1999) fala numa “pedagogia do conflito”, uma pedagogia que vê o conflito como algo positivo, como algo intrínseco ao homem. Desenvolve-se o conflito positivo, traduzido em uma dimensão emancipatória. Trata-se de uma perspectiva de abordagem na qual, na superação das diferenças, não há vencedores nem vencidos, mas indivíduos autônomos, que se comunicam dialogicamente.

A sociedade para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e de competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis. Sociedades definidas, verdadeiras, não resultam apenas de forças sociais positivas ou da inexistência de fatores

negativos. A sociedade, tal como a conhecemos, é o resultado de ambas as categorias de interação (positivas e negativas), que se manifestam desse modo como inteiramente positivas (SIMMEL, 1983, p. 123-124).

Decorre daí que a maneira como são tratados os conflitos pode indicar o nível de democracia que a sociedade assimilou (GRANJA, 2012), por isso não se pode perder de vista a estreita relação entre conflito e poder e entre este último e os meios através dos quais se têm administrado as situações conflitivas, notadamente a Justiça estatal. Sendo assim, as estruturas de poder social oferecem um cenário interessante à discussão dos meios de resolução dos conflitos.

Em complemento, o conflito é uma forma de interação social possibilitadora de elaborações evolutivas no concernente a instituições e estruturas sociais, possuindo a capacidade de constituir-se num espaço em que o próprio confronto é um ato de reconhecimento do outro, produzindo, simultaneamente, uma transformação nas relações daí resultantes (WARAT, 2000). Mas essas transformações passam pela conscientização de que estar em conflito é apenas uma das possíveis formas de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades. Outra possível forma de interação é a cooperação, que pode brotar como um segundo estágio avançado do conflito.

3.1.6.1 Transformando o conflito em cooperação

Mas como o conflito poderia se transformar em cooperação? De partida, o que se sabe é que ocorreu o contrário. Riane Eisler (2007), autora do livro "O cálice e a espada", advoga a existência do patriarcado, uma cultura surgida há 4.000 a. C., caracterizada por guerras constantes, relações de dominação-submissão, predomínio de uma pequena porcentagem da classe dominante política e sacerdotal em relação à massa da população, crueldades e torturas, mulheres sem direitos humanos e destruição ecológica.

Eisler (2007) contrapõe às sociedades patriarcais, uma sociedade de parceria, de colaboração, de cooperação entre os sexos, que teria existido 6.000 anos antes, segundo descobertas

arqueológicas oficiais, que ela denomina de sociedade gilânica74. De outro lado, a Teoria Geral dos Sistemas examina questões de como os sistemas colapsam em períodos de extremo desequilíbrio e são substituídos por sistemas diferentes.

De grande interesse para o estudo de como um sistema social pode ser substituído por outro, é o trabalho de Humberto Maturana e Francisco Varela, do Chile, e de Vilmos Csányi e Gyorgy Kampis, da Hungria. Eles estudam a auto-organização dos sistemas vivos através do que Maturana chama de autopoiese (MATURANA, 1997), do grego auto, próprio, e poieses, criação, e Csánye chama de autogênese (CSÁNYE, 1985).

Csánye descreve como os sistemas se formam e se mantém através do processo que ele chama de replicação. Basicamente, um processo de autocópia, a replicação pode ser observada no nível biológico: para replicarem-se continuamente, as células trazem consigo o que Csánye chama de informação replicacional do código genético ou DNA. Mas esse processo ocorre em todos os níveis: molecular, biológico e social, pois cada sistema tem suas próprias características de replicação, que formam, expandem e mantém a coesão dos sistemas. Veja- se o que diz Eisler (2007, p. 137):

A replicação de ideias, como observa Csányi, é essencial, antes de tudo, para formar e depois manter os sistemas sociais. Claramente, o tipo específico de informação replicativa adequada à sociedade de parceria (por exemplo a ideia básica de igualdade) é totalmente inadequada para uma sociedade dominadora. As normas (ou aquilo considerado normal e correto) nesses dois tipos de organização social são, como vimos, diametralmente opostas.

Assim, para substituir uma organização social de parceria por uma outra baseada na dominação pela força foi necessário efetuar mudanças fundamentais nas informações replicantes vigentes.

74 Sociedade de parceria. Também denominada por Maturana de Sociedade Matriztica.

Bertalanffy (1973, p. 28) traz a noção de retroalimentação positiva, entendida como “a parte do produto do sistema que é reintroduzida nele como informação [que] provoca ampliação ou acentuação do desvio do output do sistema em relação às normas ou tendências que o vinham caracterizando até então." Maria José Esteves de Vasconcellos (2002, p. 223-224) complementa:

A retroalimentação positiva conduz, portanto, a uma mudança do sistema: ou produz ruptura no sistema, se os parâmetros deste não comportarem desvios tão grandes; ou produz mudanças qualitativas em seu funcionamento, se suas características comportarem uma evolução ou um salto descontínuo ou uma mudança qualitativa para novas formas de funcionamento. Nesse caso costuma-se dizer que esse tipo de feedback é um mecanismo morfogenético (morfo=forma), ou seja, um mecanismo que produz a gênese ou surgimento de formas novas de funcionamento.

Efetivamente, a possibilidade de o sistema aberto, como o social – caracterizado por se manter a si mesmo em contínua troca de energia com o ambiente, apresentando importação e exportação, construção e demolição dos materiais que o compõem –, evoluir para um grau de complexidade superior depende apenas do tipo de input que recebe (LUHMANN, 1983).

Se na antiguidade a substituição da sociedade de parceria pela androcracia75 se deu à custa de guerras e de destruição espiritual, hodiernamente, a inversão desta tendência, paradoxalmente, parece atribuir não apenas ao conflito, mas, sobretudo, aos meios de seu tratamento, o atributo de ideia replicante apta a promover transformações na sociedade, abrindo um portal para uma nova cultura de paz e tolerância.

75 É a condição social que consiste na supremacia masculina, ou seja, em que todo o poder é dado aos indivíduos masculinos.