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3 CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

3.3 O MONOPÓLIO ESTATAL PARA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS E O POSITIVISMO JURÍDICO

3.3.3 A tutela coletiva no Brasil

A previsão legal de proteção aos direitos coletivos no Brasil é recente. A Lei da Ação Civil Pública, de 1985, foi a primeira a tratar efetivamente do tema, inaugurando uma nova fase do direito processual, em que se começa a abandonar a visão individualista do processo e passa-se a vê-lo como instrumento de defesa também de interesses coletivamente considerados.

Antes da Lei da Ação Civil Pública, o único diploma legal para tal fim era o da ação popular, introduzida em nosso ordenamento pela Constituição Federal de 1934 e pela Lei Federal nº 4.717/65. Todavia, tal ação não era suficiente para assegurar uma efetiva tutela dos interesses coletivos: primeiro, porque o seu objeto era limitado, se restringindo, naquela época, às matérias concernentes ao patrimônio público e à moralidade administrativa; e, segundo, porque o cidadão geralmente se

85A Resolução n°. 125/2010 do CNJ preconiza a “solução de conflitos pré-processual”, circunstancia que depende de estrutura própria, ainda não implantada nos sistemas judiciais dos Estados, bem como implica em uma mudança de paradigma na sociedade e do próprio Poder Judiciário, que precisará se reconfigurar.

86 Encontrando-se o próprio Governo como o maior litigante em numero de feitos ajuizados.

encontrava em situação de desvantagem perante os entes públicos réus na ação popular, que invariavelmente possuíam melhores condições para se defender em juízo.

Desse modo, apenas com o advento da Lei da Ação Civil Pública, a tutela dos direitos coletivos lato sensu passou a ser efetiva. Isso porque a Lei da Ação Civil Pública ampliou as hipóteses de cabimento de demandas visando à tutela dos direitos difusos e coletivos, podendo tal ação ser utilizada não somente para a proteção do patrimônio público, que já era tutelável via ação popular, mas, da mesma forma, para a proteção do meio ambiente e dos consumidores, bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, bem como qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

A Lei da Ação Civil Pública foi seguida pela Lei n° 7.853/89, que disciplina especificamente a tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos de pessoas portadoras de deficiência, e pela Lei n° 7.913/89, que prevê a ação civil pública de responsabilidade por danos aos investidores do mercado de valores mobiliários.

A Constituição Federal de 1988 teve papel fundamental na tutela dos direitos coletivos, uma vez que ampliou o objeto da ação popular, permitindo a sua utilização também para a preservação do meio ambiente e da moralidade administrativa e previu a possibilidade de mandado de segurança coletivo. Posteriormente, foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que contemplou a viabilidade da ação civil pública por ofensa a direitos da criança e do adolescente.

Mas a ideia de uma tutela coletiva abrangente começou a ganhar força com a promulgação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) que ampliou o espectro de direitos, consagrando figuras como a “defesa coletiva dos consumidores” e “interesses individuais homogêneos”, inclusive aperfeiçoando diversos dispositivos da Lei da Ação Civil Pública e regulamentando no ordenamento jurídico brasileiro o processo coletivo.

Importante apontar ainda a edição da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) e da Lei Antitruste (Lei nº 8.884/94): a primeira visa o combate dos atos ilícitos praticados por funcionários públicos no exercício de suas funções, criando mecanismos para a repressão e devolução aos cofres públicos

das quantias desviadas; e, a segunda dispõe sobre a prevenção e a repressão de infrações econômicas.

Por fim, o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03) cria uma série de normas protetivas às pessoas maiores de sessenta anos, bem como regulamenta o uso da ação civil pública para a defesa dos interesses desses indivíduos. Esses diplomas legais compõe um sistema de vasos intercomunicantes que dialogam entre si, possibilitando uma aplicação recíproca, formando o que se convencionou chamar hoje de “microssistema de tutela coletiva”. Ada Pellegrini Grinover (1999, p. 29) dá a devida conotação ao tema:

A tutela jurisdicional dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos representa, neste final de milênio, uma das conquistas mais expressivas do Direito brasileiro. Colocados a meio caminho entre os interesses públicos e os privados, próprios de uma sociedade de massa e resultado de conflitos de massa, carregados de relevância política e capazes de transformar conceitos jurídicos estratificados, os interesses transindividuais têm uma clara dimensão social e configuram nova categoria política e jurídica.

Alexandre Gavronski (2010, p. 71-73) chega a referir que a “tutela coletiva brasileira está entre as mais avançadas do mundo”, elencando basicamente, três aspectos:

1. A amplitude de seu objeto (que protege quaisquer direitos ou interesses difusos, difusos ou individuais homogêneos, vale dizer, que comportarem proteção coletiva em razão de sua homogeneidade) atende a dessubstantivação própria da pós- modernidade;

2. A opção por uma legitimidade coletiva concorrente disjuntiva conferido tanto a um Ministério Público dotado de configuração constitucional particularmente favorável ao exercício da tutela coletiva como as associações da sociedade civil e, ainda, recentemente, à Defensoria Pública, vocacionada constitucionalmente à defesa

dos necessitados, que favorece o incremento da participação nessa tutela jurídica, ao tempo em que assegura um mínimo de igualdade frente aos grandes responsáveis pelas lesões e ameaças a direitos coletivos (de regra o próprio Estado e grandes empresas), sem o que não se pode estabelecer consensos negociais legítimos em defesa dos referidos direitos, visto que a desigualdade tende a resultar em subjugação;

3. A previsão de instrumentos extraprocessuais que contribuem significativamente para a informalização das soluções jurídicas contra a violação ou ameaça dos direitos coletivos.

A dessubstantivação referida por Gavronski (2010) pode ser compreendida a partir das palavras de J.J. Gomes Canotilho (1992), quando anota que a ciência jurídica pós-moderna parte do reconhecimento dos limites da regulação dos problemas sociais, econômicos e políticos por meio do direito, que, por isso, de ativo, dirigente e projetante, passa a ser mais reflexivo, autolimitado ao estabelecimento de mecanismos de interferências entre os vários sistemas autônomos da sociedade. Daí definir-se esse modelo de direito como pós-intervencionista, dessubstantivado, processualizado, neocorporativo ecológico e medial.

Em reforço estão os ensinamentos de Celso Campilongo (2000, p. 160), que qualifica o direito pós-moderno de mais leve, mais completo e mais aberto, e afirma estar “em curso de estabilização uma nova concepção de regra de direito: negociada, flexível, consensual, pragmática”. Essas características pretendem fazê-lo mais voltado a definir os meios de mediação dos conflitos do que propriamente a apresentar as soluções antecipadamente.

Contudo, a tutela coletiva precisa estar em permanente evolução para enfrentar os tempos de uma sociedade de massa cada dia mais globalizada, na qual as demandas coletivas tendem a aumentar. A questão que se põe em foco é: ou o direito coletivo se renova e se adéqua às novas necessidades sociais, ou perderá em grande parte sua efetividade e contribuirá para elevar o nível de tensão social, na medida em que estará

impotente em seu objetivo de promover o equilíbrio e a paz na sociedade, contendo os abusos de poder.

3.3.3.1 Tutela coletiva extraprocessual

Um dos principais autores que tratam do assunto, Alexandre Amaral Gravonski, (2010) salienta que, dada a importância da tutela coletiva brasileira, esta deve se manifestar não apenas no processo coletivo, através do Ministério Público e demais legitimados para promoverem as ações civil públicas, mas também “na possibilidade para firmarem acordos coletivos” (GAVRONSKY, 2010, p. 83). Sob este mesmo fundamento:

[...] interessa uma abertura cada vez maior da tutela coletiva para instrumentos que incrementem a participação social, como as audiências públicas, bem como a crescente ampliação da tutela extraprocessual enquanto via participativa de equacionamento das controvérsias coletivas. As técnicas extraprocessuais de tutela coletiva, para este autor, são de duas ordens: a primeira relativa à informação, nas quais estariam alinhados o inquérito civil, a requisição de documentos e informação e as audiências públicas; e a segunda de criação e concretização do direito, nas quais se inserem a recomendação, o compromisso de ajustamento de conduta e o acordo coletivo. As contribuições específicas dessas técnicas extraprocessuais de tutela coletiva são elencadas por Gavronski (2010, p. 84):

1. maiores facilidades na comparação com as técnicas processuais para o desenvolvimento da função medial do direito frente aos demais subsistemas sociais (política e economia em destaque);

2. incremento da informalidade; 3. incremento da participação; e

4. redução da litigiosidade proporcionada pela construção do consenso do qual dependem essas técnicas para serem resolutivas, redução sem a qual o sistema judicial tende à saturação em uma sociedade complexa.

Por último, conclui o citado autor asseverando (GAVRONSKI, 2010, p. 91):

[...] as técnicas extraprocessuais de tutela coletiva possuem uma enorme e ainda pouco explorada potencialidade de assegurar a adaptação do direito brasileiro ao paradigma jurídico emergente, com sensíveis ganhos para o desempenho do respectivo papel de regulação e integração social, especificamente no que se refere à efetividade dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Importante salientar, como faz Gavronski (2010, p. 92), que as “técnicas extraprocessuais, com sua afinidade frente ao novo paradigma jurídico (procedimental, informal e participativo) ou sua vocação para a busca do consenso”, não tornam dispensável a tutela jurisdicional sem seu respectivo aprimoramento. Ao revés, da jurisdição dependem essas técnicas, quando a negociação não funcionar, o consenso for rompido ou os acordos descumpridos, ou sempre que a desigualdade entre as partes ou a atuação falha dos intervenientes ensejarem ilegítimas violações dos direitos difusos.

Igualmente merece registro o fato de que a tutela coletiva extraprocessual não pressupõe concessões com os direitos indisponíveis ou flexibilização da legislação ambiental, senão apenas disciplinar os aspectos relacionados ao modo, tempo e lugar para implementação desses mesmos direitos, buscando a sua plena efetividade.

3.3.4 Resolução de conflitos socioambientais no Sistema de