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1 INTRODUÇÃO 31 1.1 O PROBLEMA DE PESQUISA

1.1 O PROBLEMA DE PESQUISA

1.1.1 Conflitos ambientais e tutela coletiva 1 Conflitos ambientais

De maneira geral, os conflitos ambientais podem ser conceituados como tipos de “conflitos sociais que expressam lutas entre interesses opostos que disputam o controle dos recursos naturais e o uso do meio ambiente comum” (ALEXANDRE, 1999a, p. 23), entendido este em suas dimensões natural, cultural e artificial, donde incluir-se na designação conflito ambiental também aqueles originados no meio urbano e/ou em decorrência do Estatuto da Cidade.

O conflito ambiental pode ser entendido também como “o jogo de interesses opostos que emergem no contexto da disputa pela apropriação e uso do meio ambiente comum” (ALEXANDRE, 1999b, p. 18) ou ainda como resultado de uma pretensão à exploração de um bem ambiental no momento em que outrem busca impedir ou regulamentar essa iniciativa. Conforme Alexandre existe uma:

capacidade crescente da sociedade civil organizada de impedir que projetos empresariais de desenvolvimento sejam implementados à revelia de um processo efetivo de discussão pública e democrática junto às comunidades envolvidas. Isso parece comprovar que, ao longo dos últimos anos no Brasil, tem-se percebido, como característica muito própria e marcante, a maturação política gradual de setores sociais sensíveis aos problemas socioambientais, cuja consequência é o incremento desses

8 Quando mais não seja para evidenciar que se tratam de situações não resolvidas e que comportam tratamento científico.

conflitos na sociedade. (ALEXANDRE, 1999b, p. 14).

A existência de conflitos ambientais, segundo acentua Fink (2002, p. 113), decorre da “continuidade de um complexo modelo de exploração econômica, caracterizado pela ação predatória, e da evidente necessidade de preservarem-se os recursos naturais ainda existentes”. Ou, como sustenta Milaré (2000, p. 33), eles emergem de um fenômeno elementar, segundo o qual “os homens, para satisfação de suas novas e múltiplas necessidades, que são ilimitadas, disputam os bens da natureza por definição limitados”.

Os conflitos ambientais podem ser subdivididos em duas vertentes: (a) os conflitos de uso e ocupação, nos quais ocorre uma disputa entre particulares ou destes com o Poder Público, em relação a determinado bem ou recurso ambiental; e (b) os conflitos entre empreendedores, públicos ou privados, que intentam a exploração dos recursos naturais, e a sociedade civil, que defende sua preservação ou conservação.

O conflito ambiental é espécie do gênero conflito social, verificando-se que nos primeiros também ocorrem enfrentamentos sociais e confrontos de forças organizadas contra o Estado (REYNAUD, 2001), podendo-se dizer que são multilaterais, sendo uma das partes necessariamente a sociedade, titular do direito de fruição de um ambiente natural livre de degradação, consoante dispõe a Constituição Federal. As disputas pelos bens ambientais, em qualquer de suas vertentes, representam um campo vasto de estudo que não prescinde de uma perspectiva interdisciplinar.

1.1.1.2 Tutela coletiva

A defesa dos interesses da coletividade historicamente esteve associada ao próprio governo e, posteriormente, ao Ministério Público9. Porém, esboços de uma Justiça Coletiva já vinham sendo traçados desde o início da década de 60, que se concretizaram, em parte, com a edição da Lei n°. 4.717/65, que instituiu a Ação Popular, reconhecendo o direito de qualquer

9 A Constituição de 1934 pela primeira vez faz referência expressa ao Ministério Público.

cidadão de promover a defesa dos interesses de todos. Nascia ali um ramo da ciência do Direito denominado Tutela Coletiva.

Em 1985 vem a lume a Lei da Ação Civil Pública (Lei n°. 7.347/85), que pela primeira vez traz para o ordenamento jurídico nacional expressões como interesses difusos ou coletivos. Mas a terminologia tutela coletiva começou a ganhar força a partir dos anos 90, com a promulgação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n°. 8.078/90) que ampliou o espectro de direitos, consagrando figuras como a “defesa coletiva dos consumidores” e “interesses individuais homogêneos”. A partir de então, começou-se a desenhar o que se convencionou chamar hoje de “Microssistema de Tutela Coletiva”.

Atualmente, a Tutela Coletiva é promovida no Brasil com amparo em quatro leis especiais. As três acima citadas (Lei da Ação Popular, Lei da Ação Civil Pública e Código de Proteção e Defesa do Consumidor), e a Lei n°. 8.429/92, que trata da Improbidade Administrativa, compondo um sistema de vasos intercomunicantes que dialogam entre si, possibilitando uma aplicação recíproca e combinada.

A mais importante de todas as características da tutela coletiva brasileira, possivelmente, seja a sua amplitude, que assegura a defesa de “qualquer interesse difuso e coletivo” (art. 1°, inciso IV, da Lei da Ação Civil Pública), bem como aos “interesses individuais homogêneos” (art. 81, inciso III, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor).

1.1.1.2.1 Indisponibilidade do meio ambiente

A tutela coletiva está visceralmente animada pelo princípio da indisponibilidade dos interesses coletivos. A Constituição Federal, em seu art. 225, consagrou o meio ambiente como bem de uso comum do povo:

Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê- lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O meio ambiente, como os demais direitos transindividuais, sendo de todos, implica na ideia de que ninguém, individualmente, dele possa dispor, resultando no seu caráter indisponível. Todavia, a prática tem demonstrado que esta indisponibilidade vem sendo flexibilizada, notadamente nos Termos de Compromisso de Ajustamento de Conduta, nas Transações Penais relativas a crimes contra a natureza e nos próprios Licenciamentos Ambientais, dando margem a acalorada e atual discussão teórica, cujas linhas gerais estão delineadas nas páginas seguintes.

1.1.1.2.2 A legislação ambiental

A tutela coletiva, no sistema brasileiro, vinculado à tradição românico-germânica, vale-se da lei para dirimir os conflitos a ela submetidos, no que se diferencia do direito anglo-saxônico ou common law, que prioriza os costumes e os precedentes judiciais.

Não obstante o país dispor de um dos mais avançados e modernos sistemas jurídicos do mundo em matéria de proteção à natureza, a degradação ambiental está a beira de provocar um colapso em algumas regiões, sem que esse sacrifício tenha revertido minimamente em benefício dos interesses nacionais, como ocorreu nas nações industrializadas. Esta constatação confirma um pressuposto importante da tese, segundo o qual a legislação ambiental é ambivalente, porquanto a par de trazer conquistas indiscutíveis, mostra-se em grande parte ineficaz.

Tal digressão fundamenta a presunção de que o modelo de positivismo jurídico vigente tem servido, inclusive, para aumentar os conflitos na sociedade, e induz à ideia de que o meio ambiente requer outro olhar, uma visão sistêmica, ou um outro paradigma, que não se satisfaça apenas em aplicar sobre os comportamentos humanos, complexos e imprevisíveis, um gabarito abstrato (lei), com o único propósito de dotar essas condutas de decidibilidade, ou seja, passíveis de serem subsumidas em um silogismo racional (sentença).

Ao enquadrar ou subsumir um caso concreto à lei, verifica- se, uma simplificação violenta da grandiosidade criativa e mutante da vida. O discurso jurídico mostra-se, portanto, descompassado, frio e distante, faltando-lhe aderência ao mundo concreto.

1.1.1.2.3 A lei da ação civil pública

Com o advento da Lei n° 7.347/85, que instituiu a ação civil pública, criou-se um instrumento processual importantíssimo para a tutela dos direitos coletivos, que teve o grande mérito de legitimar, ao lado do Ministério Público e entre outros entes públicos, as associações representativas da sociedade civil (art. 5°) como artífice da defesa ambiental.

A Lei da Ação Civil Pública, em seu art. 5°, § 6°. – introduzido posteriormente por força do art. 113, do Código de Defesa do Consumidor –, estabelece que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”10.

A maioria dos autores que se ocupa dos estudos em direito ambiental tem afirmado que o compromisso de ajustamento de conduta configura uma transação, porém com peculiaridades próprias (FINK, 2002), assertiva que desafia maior transparência e democratização deste instrumento que, mesmo não tendo sido concebido no espírito da resolução negociada de conflitos ambientais, costuma ser utilizado, em muitos casos, como forma de obter o “consenso” à maneira de termos de acordo convencionais e não de instrumento de garantia da legislação e de concepções de justiça social. Existe, também, uma literatura acadêmica que referencia tal resignificação (MIO, CAMPOS, FILHO, 2004, p. 1).

1.1.1.2.4 O Ministério Público como protagonista da defesa ambiental

A Constituição Federal, no art. 129, inciso III, atribuiu-se ao Ministério Público a função institucional de exercer “a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. A instituição, essencial à administração da Justiça (art. 133, CF), encontra-se, pois, legitimada a defender o meio ambiente (e demais direitos difusos) e a esgrimir a tutela coletiva.

10 O instrumento possui fonte de respaldo jurídico também no artigo 79- A da Lei de Crimes Ambientais (Lei n°. 9.605/98).

A atuação do Ministério Público, tanto na esfera federal como no âmbito dos Estados, não se circunscreve apenas ao processo judicial, lançando mão de técnicas extraprocessuais como os compromissos de ajustamento de conduta, o inquérito civil, as recomendações, as audiências públicas e outros instrumentos de tutela coletiva, na busca de uma maior efetividade e concretude.

1.1.1.2.5 O monopólio do Poder Judiciário

Ao tomar para si o monopólio da jurisdição ambiental, fulcrado no princípio da indisponibilidade dos bens ambientais, o Poder Judiciário determina o direito a ser aplicado ao caso concreto de modo impositivo. Desta forma o Estado pretende tratar o conflito ambiental através da aplicação do direito positivo, pressupondo a impossibilidade de haver transação nessa área11.

Por conseguinte, a jurisdição aparece como uma atividade na qual o Estado substitui a sociedade num modelo baseado em preceitos expressos na própria lei.

No entanto, a tendência atual é de que o monopólio da jurisdição deixe gradativamente de pertencer ao Estado, principalmente em função da crescente e complexa litigiosidade fomentada pelas contradições sociais advindas de um mundo globalizado. Reforça essa propensão a crise de identidade pela qual passa o Judiciário, perdendo gradativo espaço para outros centros de poder, talvez mais aptos a lidar com a complexidade conflitiva atual, e mais ajustados em termos de espaço, tempo e custos.

Nesse sentido, em 1996, numa tentativa de contornar a exaustão do Poder Judiciário, foi instituída a arbitragem no Brasil12, por intermédio da Lei n°. 9.307/96, que, entretanto,

11 Caracterizada por concessões mútuas.

12 Vale notar que a institucionalização da arbitragem no Brasil coincide com a elaboração, pelo Banco Mundial em 1996, do trabalho intitulado O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: Elementos para Reforma, conhecido como Documento Técnico n° 319, cujo objetivo seria auxiliar as reformas do judiciário na região, com vistas a adequar o próprio poder judiciário aos imperativos do crescimento econômico centrado nas práticas de livre mercado. Para redesenhar o poder judiciário de modo a compatibilizá-lo com “mercados mais abertos e

estabeleceu, em seu art. 1°., incidência restrita a “[...] litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”, ou seja, inaplicável aos conflitos ambientais

O passo seguinte veio com o Projeto de Lei n°. 4.827/1998, ainda em tramitação no Congresso Nacional, que buscou instituir “a mediação paraprocessual nos conflitos de natureza civil”13,

que em seu art. 4°. dispôs ser “lícita a mediação em toda matéria que admita conciliação, reconciliação, transação ou acordo de outra ordem.”, isto é, também inaplicável aos conflitos ambientais.

Posteriormente tramitou o Projeto de Lei n°. 5.139/2009 que dispunha sobre o processo coletivo e admitia a mediação para a resolução de conflitos difusos, mas o mesmo foi rejeitado pelo Congresso Nacional.

Mais recentemente, o Projeto de Lei n°. 8.046/10, que objetiva instituir um novo Código de Processo Civil – ao contrário do projeto da Lei da Mediação que restringia a incidência do instituto aos conflitos de conteúdo disponíveis, vale dizer patrimoniais – não apresenta limitações objetivas. Optou por não estabelecer hipóteses de vedação ao seu uso, fixando as premissas básicas, sem arrolar casos específicos, o que se mostra auspicioso para a abertura de novos caminhos para a mediação, embora com ênfase ao âmbito processual.

Nesse sentido é também o trabalho realizado por uma Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), encarregada de elaborar um anteprojeto de reforma da lei de arbitragem e de criação da lei de mediação extrajudicial, entregue ao Senado

abrangentes” (DAKOLIAS, 1996, p. 83), o órgão propõe exatamente “Mecanismos Alternativos de Resolução de Conflitos”, os “MARCS”. Estes seriam mecanismos extra-judiciais de composição de conflitos, cuja vantagem seria tratar os conflitos de modo “amigável” (Ibidem, 1996, p. 49) e, portanto, supostamente de maneira mais ágil do que se o mesmo viessem a ser judicializados.

13 Apresentado originalmente pela Deputada Federal Zulaiê Cobra e que mereceu projeto substitutivo (PLC 94/2002) ofertado pelo Senador Pedro Simon a partir de subsídios do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). A Comissão de Constituição e Justiça e o plenário do Senado Federal aprovaram o texto substitutivo do Senador Pedro Simon, que agora aguarda pauta para ser apreciado na Câmara dos Deputados.

Federal em 01.10.2013 para ter início ao processo legislativo. Referido projeto de lei da mediação prevê a utilização do instituto pela administração pública nos litígios em que for parte, abrindo, assim, espaço para a mediação pública, envolvendo conflitos relacionados às questões coletivas.

Todavia, até o momento da redação deste relatório de pesquisa (outubro/2013), permanece ainda consagrado o monopólio do Poder Judiciário para dirimir conflitos que envolvam interesses difusos em geral e ambientais em particular. 1.1.1.2.6 Direito à solução pacífica das controvérsias

A Constituição Federal, em seu Preâmbulo, institui uma ordem jurídica comprometida com a solução pacífica das controvérsias e com o bem estar individual, que outra coisa não é senão o estado de paz14.

A tutela coletiva, destarte, apresenta largo espaço de aprimoramento, notadamente para contemplar, ao lado dos mecanismos extraprocessuais de prevenção e resolução de litígios que envolvam interesses difusos já em implementação15, outros tipos de tratamento de conflitos, em especial os de natureza não adversariais, como a mediação.

Importante ressaltar que qualquer mediação que envolva direitos coletivos emanados do Estatuto da Cidade não poderá, por óbvio, desconhecer as demandas sociais politicamente construídas ao longo de sua edição, de maneira que a participação pública, como argumento comumente utilizado pelos detratores da mediação, não se dá na espécie em detrimento das conquistas populares, mas em respaldo às mesmas.

14 Preâmbulo da Constituição Federal: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de

Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.” 15 conciliação, compromisso de ajustamento de conduta, inquérito civil, recomendações, acordos coletivos, entre outros.

Ademais, não se pode perder de vista que qualquer acordo que venha a ser celebrado a partir de um processo de mediação, sempre – e a qualquer tempo – poderá ser questionado e invalidado judicialmente, por qualquer cidadão ou organismo não governamental, nas hipóteses em que extrapole o seu âmbito de incidência ou viole legislação cogente.

Daí se poder afirmar que o Judiciário não é uma instituição superada, ao revés, já que a vida em sociedade não permite o afastamento de um sistema que garanta o respeito às regras instituídas. Mas a Justiça estatal deveria atuar de forma minimalista, intervindo como ultima ratio, se e quando necessário.

1.1.2 As audiências públicas e a gestão do conhecimento