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3 CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

3.1.1 Origens do conflito

O humano, ser de natureza multidimensional e que se vai construindo em relação, é uma confluência de intrincados fatores em movimento, entre eles o cultural, o psicológico e o social; protagonista de pensamentos racionais e simbólicos, que se mesclam e convivem mutuamente, é produtor e produto de suas circunstâncias, que o distinguem e revelam sua singularidade (MULLER, 2007).

Essa singularidade, por sua vez, propicia que os acontecimentos sejam vivenciados ou percebidos de forma única. A isso se denomina idiossincrasia. Se por um lado os torna de uma complexidade infinita e de um fascinante mistério, por outro, acaba ensejando diferentes visões de mundo e formas de conduta, o que em muitos casos gera incompatibilidade, ou ainda, o conflito.

O conflito é, portanto, um fenômeno onipresente na interação humana, e pode ser entendido como uma colisão de interesses decorrente do conjunto de condições psico-socio- culturais únicos que integram cada ser. Acrescenta-se a essas dimensões o componente biológico, porquanto o ser humano, de acordo com Maturana e Yáñez (2009, p. 291), é um sistema dinâmico fechado:

Como o sistema nervoso não se encontra com o meio em seu operar como rede fechada de mudanças de relações de atividades, não faz nem pode fazer uma representação do meio, nem nada que pudesse ser tratado como uma relação biológica cognitiva de um mundo externo.

Disso resulta que não existe uma só realidade comum para todos, imutável, indiscutível. Ao revés:

Nós seres humanos, como seres que existimos no contínuo conversar como entrelaçamento do linguajear e do

emocionear, vivemos numa

multidimensionalidade de sensorialidades, de emoções e de fazeres, gerando mundos culturais ao mesmo tempo reflexivos, práticos ou teóricos, sistemas filosóficos, científicos, artísticos ou religiosos, que constituem nosso nichos como os âmbitos invisíveis de possibilidades de viver que são gerados, realizados ou conservados no suceder da matriz-biológico-cultural da existência humana em todas as dimensões de sua diversidade. (ob. cit., p. 212)

Se assim é, opera-se a passagem de um universo, de uma realidade objetiva inequívoca, que seria igual para todos, para um multiverso, em que cada mundo é construído pelo observador, único e igualmente válido em comparação com outros. Em outros termos, os seres humanos, por serem entidades autopoiéticas, que se produzem a si próprios, não se limitam a receber passivamente informações e comandos vindos de fora. Não “funcionam” unicamente segundo instruções externas, isto é, não fazem representações de uma realidade externa.

De conseguinte, essa característica biológica acentua as diferenças de percepções quanto ao mundo exterior, percebido por cada sujeito de um modo distinto. A estabilização da

sociedade, nesse caso, se produzirá “mediante os mecanismos tornados possíveis pelo funcionamento linguístico e sua

ampliação na linguagem.”, no domínio do “acoplamento social” (MATURANA E VARELLA, 2001, p. 255). Falhando a

coordenação de coordenação de ações, surge o conflito70.

70 “Nós, seres humanos, existimos no linguajear, e o linguajear ocorre no fluir do conviver que é a realização do próprio viver entrelaçado com

Os conflitos são, ainda, resultados da vida de relação, ou seja, quando o homem se contrapõe a seus semelhantes em função da necessidade inata de realização da

vontade/necessidade de cada um, estando esta em oposição à vontade/necessidade do outro. O conflito pode também ser compreendido como qualquer forma de oposição de forças antagônicas. Significa diferenças de valores, “escassez de poder, recursos ou posições, divergências de percepções ou ideias, dizendo respeito, então, à tensão e à luta entre as partes” (BREITMAN E PORTO, 2001, p. 93).

Pode-se dizer que os conflitos surgem, nas relações, quando ao menos duas pessoas independentes percebem seus interesses como incompatíveis. (FONKERT, 1999). Na perspectiva psicanalítica, o conflito pode ser ilustrado quando no indivíduo se opõem exigências internas contrárias. A psicanálise considera o conflito como constitutivo do ser humano (PEREIRA, 1995; PEREIRA. 1999; PEREIRA 2000; ALCHIERI, 2006), que resulta, grosso modo, do conflito entre as pulsões e do conflito entre os desejos e as interdições.

Para Warat (1999) são justamente os desejos, as intenções e os quereres que são evocados quando se desvela o material subjacente dos conflitos. Especula-se que as situações conflitivas tenham como berço a “luta pela vida” e a necessidade de perpetuar a espécie, atribuindo uma natureza competitiva ao ser humano.

No entanto, Maturana (2009) questiona essas explicações correntes, seja nas suas formas hard (do tipo das hipóteses urdidas pelos sociobiólogos e pelos socialdarwinistas), seja nas suas formas mais soft (do tipo das hipóteses celebradas por economistas, sociólogos, antropólogos e biólogos da evolução que trabalham, baseados na teoria dos jogos, com o nonzero, com a rational choice, enfim, com a combinação otimizada entre competição e colaboração).

A refutação é simples: se o que torna os indivíduos humanos é a linguagem, e se a linguagem é uma coisa que, definitivamente, não pode surgir na competição, então a competição não pode ser constitutiva do ser humano, nem individual nem socialmente falando. O primata bípede que

o viver de outros em coordenações de coordenações de fazeres.” (ob. cit., p. 83)

antecedeu ao homem não se teria humanizado se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo (FRANCO, 2008). Maturana (2009) sustenta ainda que o fenômeno da competição, que se dá no âmbito cultural humano e que implica contradição e negação do outro, não ocorre no âmbito biológico. Os seres vivos não humanos não competem, deslizam uns sobre os outros e com os outros em congruência recíproca ao conservar sua autopoiesis e sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros e não os nega.

3.1.2 Definições e taxonomia dos conflitos