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Composição da renda na RECM em 2009 (Fonte: ACRE, 2010)

3.7. O gado e o Conselho Gestor da RECM

O aumento da presença de gado dentro da Reserva e a suposta ameaça de “pecuarização” deste território levou o Conselho Gestor a modificar o Plano de Utilização da RECM. Durante a V Reunião do Ordinária do Conselho Gestor da RESEX Chico Mendes, realizada em 30 e 31 de outubro de 2008, foram aprovadas medidas de restrição às criações de gado. No antigo Plano de Utilização adotado em 1995, o Artigo 5 definia que: “Os moradores da reserva poderão realizar atividades complementares, tais como agricultura, criação de pequenos animais, piscicultura, pecuária, agrossilvicultura. Estas atividades poderão ocupar até dez por cento (10%) da área da colocação” (1995, p.25).

A modificação realizada 13 anos depois limitou a criação de gado até o limite máximo de 50% da área da colocação destinada para atividades complementares, isto é, para este fim apenas 15 hectares poderiam ser utilizados, conforme explica o Artigo 36 aprovado na reunião:

A criação de animais de grande porte, principalmente, de gado bovino, no interior da Reserva Extrativista Chico Mendes, somente poderá ocorrer no limite de 2 (duas) cabeças/hectares, dentro do limite máximo permitido de 15 (quinze hectares de pastagem, sendo autorizado um número maior de cabeças somente em caso de comprovação de viabilidade técnica e econômica, por meio de projeto técnico a ser submetido à análise e aprovação do órgão gestor, mediante anuência prévia da Associação Concessionária da área de jurisdição do projeto (RECM, 2008).

Dessa forma, cada colocação poderia criar no máximo 30 cabeças de gado. Para ultrapassar este limite, a família teria que elaborar um projeto que comprovasse a viabilidade técnica que seria submetido a aprovação do ICMBio. Algo absolutamente inalcançável para a maioria dos moradores.

Na sequência desta decisão, ainda em 2008, o Poder Público adotou ações como a Operação Reserva Legal, cujo objetivo de combater as práticas irregulares na RESEX. Coordenada pelo IBAMA, a operação consistia em aplicação de multas e expulsão de moradores que estivessem comtendo infrações ambientais. No que se refere à criação de gado, aqueles que não estivessem dentro nas normas aprovadas seriam notificados e teriam no máximo 60 dias para retirar o seu gado de dentro da Reserva ou 90 dias para se retirar da sua área.

Houve reações por parte dos moradores. Até os dias de hoje é comum ouvir depoimentos de seringueiros a respeito da truculência utilizada pelas forças policias utilizadas na RESEX.

O Ministério Público acatou o pedido e aí aconteceu a chamada Operação Reserva Legal. Foi com armas da Polícia Federal e os fiscais do IBAMA, tudo portando arma dentro da Reserva, aterrorizando, batendo, humilhando os trabalhadores. Aconteceu assim uma série de coisas. Essa operação Reserva Legal foi uma

operação que causou muito susto e impacto nas pessoas. Porque já pensou você sem ter cometido nenhum crime e de repente eles aparecem com metralhadora na sua casa?65

Naquele momento, entidades historicamente vinculadas a criação da RECM, como o STR de Xapuri, publicou uma nota no dia 17/12/2008 condenando a Operação. O sindicato explicou:

[…] Nosso repúdio e indignação têm por base os seguintes motivos:

1) nestes dezoito anos de criação da Reserva não existe uma política que garanta uma renda para os seringueiros viverem com dignidade exclusivamente da produção extrativista. Portanto a utilização da atividade da pecuária é um complemento de renda que tem sido utilizado pela grande maioria dos moradores; 2) pouco existiu um trabalho de esclarecimento e conscientização das regras de uso e manejo da RESEX que abrangesse um número significativo de famílias; 3) O Plano de Manejo e de Utilização da RESEX não é de conhecimento da grande maioria das famílias;

4) os seringueiros não podem ser responsabilizados pela mudança do clima do planeta, este se deve a ação dos grandes pecuaristas, mineradoras e do grande capital;

5) As multas aplicadas inviabilizam seu comprimento. As famílias de seringueiros têm uma vida de duro trabalho na floresta e o pouco rendimento e benfeitorias conseguidas pelas famílias não podem ser disponibilizadas para o pagamento destas multas porque isto inviabilizaria a reprodução das próprias famílias (STR - XAPURI, 2008).

O descontentamento generalizado levou o Conselho Gestor, em reunião realizada nos dias 30 de setembro e 1 de outubro de 2009, a revogar as alterações do Artigo 36 que limitavam a criação de gado. Voltou a vigorar o mesmo entendimento definido na primeira versão do Plano de Utilização de 1996, onde as atividades complementares podem ocupar até 10% da área da colocação.

Poderia se questionar se o processo de criação de gado modificaria a relação que o seringueiro tem com a floresta. No entanto, é importante não perder de vista que as famílias na RESEX não fazem uma escolha contra outra. Nenhuma família se dedica exclusivamente a apenas uma dessas atividades. Há um equilíbrio entre elas. O extrativismo, particularmente da castanha, é tão importante quanto a criação de bois. E quando se cria gado ou porcos em demasia o resultado é a destruição dos roçados, hortas e pomares pelos animais. A solução é o abatimento das criações em excesso ou sua venda, como testemunhei na Colocação Centro Verde onde Raimundo Gomes do Nascimento criava 42 cabeças de boi, um número excessivo para a família e que resultou em degradação do seu roçado. Depois de conversas com sua esposa ficou acertado que metade do gado seria vendida na cidade, o que foi feito no dia seguinte.

“Criar gado é viver acochado com as questões da rua”, explicou certo dia um seringueiro.

Ele comparava a vida dos seringueiros com a dos colonos que resolveram apenas criar gado e dependem quase exclusivamente de mercadorias compradas na cidade. Muitos abandonaram inclusive seus roçados para se dedicar a essa empreitada. Tornar-se um colono e assumir esse modo de vida não agrada a nenhum seringueiro. Há também outros problemas. Criar gado é lidar com custos e investimentos em médio e longo prazo, assumir riscos, tomar calotes, enfim uma série de tormentos típicos da “vida na rua”.

Se a borracha era o produto por excelência e que se convertia em “mercadorias”, o gado hoje é garantia de autonomia e da permanência dessas populações enquanto camponesas. Contra a pressão exercida pelas fazendas de gado no entorno da RESEX só resta um caminho: a mobilização comunitária e a organização das instituições sociais capazes de definir coletivamente “as leis da reserva” e fazê-las serem efetivamente respeitada.

Figura 24 – Imagem de uma fazenda próxima à RECM.

Foto: Jeferson Choma, em 19/01/2013

Figura 25– Criação de gado em assentamento do INCRA contíguo a RECM.