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Desmatamento no Acre: em milhares/m³

3.5. Tem boi na floresta

A criação de gado no interior da RESEX pelos seringueiros têm sido foco de conflitos entre as famílias, os fiscais do ICMBio e o Conselho Gestor. O argumento esgrimido é que a criação de gado estaria modificando a relação do seringueiro com a floresta e sua percepção em relação à conservação. Os agentes do Estado falam em “pecuarização” da Reserva, inclusive há órgãos de imprensa que produzem reportagens jornalísticas sobre a região nas quais identificam o que seria um desvio de curso do propósito original da criação desse território56. Na prática, a polêmica a respeito da criação de gado reacende uma antiga discussão sobre a viabilidade da conservação ambiental em áreas habitadas por populações humanas. Também demonstra uma completa falta de entendimento sobre a lógica da reprodução familiar camponesa que tem nas criações de animais como o gado um importante elemento para a estratégia de sua manutenção no território.

Figura 19 – Boi criado por uma família de seringueiros na RECM.

Foto: Jeferson Choma, 07/09/2017.

Contudo, antes de problematizarmos a criação de gado no interior da RESEX Chico Mendes, é necessário entender a expansão da pecuária em todo o Acre. Desde os tempos em que a criação de gado foi incentivada pelo regime militar, a pecuária nunca parou de crescer no estado.

56A última dela foi publicado no site da revista Veja: PONTES, Fabio. Legado de Chico Mendes agoniza com avanço

da pecuária. Veja. Publicado em 29 junho 2018. Disponível em: https://veja.abril.com.br/especiais/legado-de-chico- mendes-agoniza-com-avanco-da-pecuaria/

Como se pode ver no Gráfico 2, em 1970, o rebanho bovino no Acre somava 72.166 cabeças de gado. Em 1980, fruto das políticas de incentivos oferecidas pelo Estado, esse número passou para 292.190. Em 1995, portanto, cinco anos após a criação das primeiras Reservas Extrativistas, o Acre já possui 847.208 mil cabeças de gado. A eleição dos autointitulados “governos da floresta”, no poder desde 1999, não refreou a expansão da pecuária. A despeito do discurso oficial do governo estatual sobre o incentivo do extrativismo, entre os anos de 2006 a 2015 houve um aumento de 1.131.733 cabeças de gado no Acre, o que representa um crescimento de 63,4% neste período. Em 2015 o Acre possuía um rebanho bovino de 2.916.207 cabeças de gado57.

A maioria do gado, 53,8% do total, está concentrada nos 7 municípios que abrigam o território da RECM, como se pode ver no Gráfico 2. Já o Mapa 4 mostra a distribuição espacial da pecuária no estado do Acre, onde se destaca a grande concentração da criação de gado nas Regiões do Alto e Médio Acre.

Gráfico 2 – rebanho bovino no Acre.

Todos esses dados confirmam aquilo que se vê quando se faz uma incursão pelas estradas e ramais que nos conduzem até a RESEX. Há uma explícita diferença entre a territorialidade dos fazendeiros com a dos seringueiros. Nas áreas contíguas à Reserva, a mata foi derrubada para dar lugar ao boi. A paisagem desoladora é dominada quase exclusivamente pelo pasto, como mostra a

57 O Governo do Acre é o promotor da maior festa anual realizada na capital Rio Branco. Trata-se da Expoacre, uma

feira de exposição com foco na pecuária e na madeira. Na sua 44 º edição realizada em 2017 ela chegou a gerar R$ 102,9 milhões. Os leilões de gado são alguns dos principais momentos do evento. Não é difícil perceber que há todo um contexto de incentivo à pecuária por parte do Poder Público.

72.166 120.143

292.190 334.336

847.208

1.784.474

2.916.207

Rebanho bolvino no Acre (1970 a 2015)

Figura 24. Os poucos fragmentos de mata só podem ser observados em algumas propriedades rurais ligadas a Projetos de Assentamentos criados na década de 1970. São nessas propriedades que é possível avistar algum roçado cultivado pelos “colonos”, camponeses assentados que moram nos lotes. As fazendas, o pasto e o boi chegam até os limites da Reserva, “na beira” como dizem os seringueiros. Dali para frente à paisagem muda abruptamente. A floresta abraça os viajantes, o dossel da mata traz um aliviante frescor, e poucos bois são avistados ao longo dos varadouros.

Nos Projetos de Assentamentos muitos camponeses criam o chamado “gado de meia”. Nessa modalidade, o colono se responsabiliza junto ao proprietário do gado (que pode ser um membro da família, um médio criador ou até mesmo um fazendeiro) em criar um determinado número de cabeças por dois ou três anos. Ao final, ele fica com a metade dos bezerros que nascerem neste período como forma de pagamento. Além de disponibilizar uma área para pastagem, o colono, também precisa assumir os custos com vacinas, tratamentos, alimentação com sal, construção de currais, cercas, entre outras despesas que tiver com a criação. Tal prática é generalizada nas pequenas propriedades rurais próximas à RESEX. Mas nos seringais pesquisados essa prática não foi encontrada.

Gráfico 3 – gado por municípios.

O que desejamos mostrar é que grandes fazendas e a pecuária pressionam as fronteiras da 43.684 88.726 155.881 222.677 235.432 280.223 542.781 Assis Brasil Epitaciolândia Capixaba Brasileia Xapuri Sena Madureira Rio Branco

Total de cabeça de gado em munícipios próximos a RECM em 2015

Reserva, invadindo inclusive as Zonas de Amortecimento definidos no Plano de Manejo58. Mas enquanto os seringueiros são criticados por ambientalistas e gestores da RESEX por criarem gado, pouco ou nada se faz para impedir o avanço de grandes empreendimentos agropecuários nessas áreas.

Mapa4 – A distribuição do gado no Acre.

Um exemplo concreto foi um episódio ocorrido na Colocação Centro Verde, no Seringal Filipinas, em Xapuri. Em dezembro de 2015, o pecuarista conhecido por Joaquim Medeiros, dono da Fazenda Filipinas, no município de Xapuri, mandou derrubar dezenas de hectares de floresta, à moda corte raso, dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes. Dois tratores, segurando uma corrente em cada extremidade, foram usados na empreitada. A fazenda faz limite com a Colocação Centro Verde, que faz parte da RESEX e onde mora há mais de 50 anos o seringueiro Raimundo

58 A Zona de Amortecimento (ZA) é toda a área no entorno da Reserva Chico Mendes onde as atividades humanas estão

sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a Unidade. Segundo, Plano de Manejo da RECM, o limite da ZA no entorno da Unidade se dá na faixa de 10 km. No limite sul da RESEX, a área chega a se estender até a BR-317. Essa é a área mais impactada por empreendimentos agropecuários no entorno da RESEX. A ZA é submetida a normas de uso em que as atividades desenvolvidas nesta área devem ser monitoradas pelo IBAMA de maneira a evitar incidentes que possam acarretar danos ambientais significativos à Unidade. O licenciamento ambiental de novos empreendimentos deve ser realizado mediante prévia manifestação do ICMBio.

Gomes do Nascimento com sua esposa Raimunda da Silva, na época diretoria do STR de Xapuri. Algumas semanas antes, o ICMBio esteve na colocação para demarcar os limites da RESEX com a fazenda (o travessão). Todo o episódio foi assim descrito por Raimundo:

Raimundo - Eu tava em casa quando escutei a zoada do trator e quando acatei o trator tava chegando na minha casa. Que eu não esperava acontecer uma coisa dessa porque geralmente o ICMBio e o IBAMA tinha feito o travessão dividindo a fazenda com a Reserva Extrativista Chico Mendes há pouco tempo. Eu achava que ele não ia fazer uma coisa dessa, mas até que fez.

Jeferson - Você conversou com os tratoristas aqui?

Raimundo - É, conversei com os tratoristas. Falei pra ele que quando vi chegando o trator na minha casa, vim eu mais minha esposa até onde ele se encontrava. Aí ele parou o trator, desceu e veio conversar com nóis. Aí eu perguntei: ' Você sabe onde fica o travessão pra separar a Reserva da fazenda?'. Ele disse não. Então vou levar e mostrei pra ele onde é o travessão. A partir daí ele foi embora conversou com o capataz. O capataz retornou na minha casa outro dia falando que ia desmatar tudo. Eu disse pra ele que não, que não aceitava fazer esse desmate dentro da Reserva. Aí fui pra cidade e minha esposa foi pra rua. Eu mandei que ela comunicasse o presidente da AMOPREX e ela comunicou e a gente ficou aguardando. Teve duas semanas e ninguém teve nenhuma resposta e eles continuavam desmatando, fazendo o desmate dentro da Reserva59.

O caso também foi levado pelo STR de Xapuri até o ICMBio, além de ser amplamente divulgado pela imprensa local. Mas nada foi feito pelas autoridades. O desmatamento só terminou quando o STR de Xapuri denunciou o caso à imprensa. Em pesquisa de campo, constatamos o desmatamento de aproximadamente 100 hectares dentro da Colocação Centro Verde, como se pode ver na Figura 20.

Figura 20 – Desmatamento realizado por fazendeiro na Colocação Centro Verde, RECM.