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Desmatamento no Acre: em milhares/m³

3.6. O gado criado pelos seringueiros

Antes da criação da RESEX, apenas o patrão seringalista poderia criar algumas cabeças de gado no interior dos seringais. O rigoroso código de trabalho não permitia ao seringueiro extrativista nem o cultivo de roçado, nem a criação de animais. O seringueiro só vai criar gado após conquistar “a Reforma Agrária”, como explicou no depoimento abaixo o seringueiro Sebastião Olegário.

Sebastião - O seringueiro veio tomar conta das suas terra, das colocação, depois da Reforma Agrária. Aí que o seringueiro pode ter, como se diz… sossego. Não tinha sossego, a gente trabaiava assim como se fosse um escravo, tinha que só cortar, só fazer borracha pro patrão. As empresona aí fora fornecia mercadoria, as coisas pro patrão pro cara lá levar borracha. Tinha que cortar, não punhava roçado, não fazia nada, não criava, só cortar seringa.

Jeferson - O gado surgiu em que momento para o seringueiro?

Sebastião: O gado surgiu depois dessa Reforma Agrária. Foi quando o seringueiro começou a ponhá um campozinho, aí começo a punhá um gadozinho, comprar uma vacazinha, um bezerro, e vai aumentando. Mas antes disso o cara não podia porque o patrão impedia de você criar.60

Como se pode ver, a criação de gado está associada à conquista da “Reforma Agrária”, uma lembrança que ainda está bastante presente na memória dos moradores mais velhos. Foi com a criação da RESEX que eles puderam começar sua criação de boi e colocar “um campozinho”, área que demarca o limite da casa com a floresta. Como veremos mais adiante, o campo de pastagem foi uma modificação introduzida pelas famílias depois que as colocações assumiram o centro da vida social no lugar do barracão seringalista.

No entanto, o declínio do preço da borracha fez com que muitos passassem a criar gado como alternativa à esse produto extrativista e assim manter a reprodução das famílias. Esse processo está presente em quase todos os depoimentos dos seringueiros. A explicação de Deuzuite Barroso, diretora do STR de Xapuri, explica como esse processo foi percebido:

Eu nasci e me criei na Reserva Extrativista, quando passou a ser Reserva eu já morava lá e eu sempre trabalhei na roça. Na época quando trabalhava com extrativismo, porque aqui em Xapuri tinha uma cooperativa organizada que comprava borracha, comprava castanha comprava legume, eu e meu pai, nós semos em sete irmão, eu ajudei a criar meus irmão cortando seringa mais meu pai. A gente acordava 4 horas da manhã e quando agente via o claro do dia a gente saía pra estrada. Eu saí a mais um irmão meu, que hoje mora em Rio Branco. Eu cortava uma estrada, meu pai cortava outra, meu irmão cortava outra.

Então por dia a gente fazia 100 quilos de borracha por dia. A gente tinha quatro animal de transporte. Era 12 horas de viagem da nossa colocação pra chegar aqui na cidade. Quando fazia a carga dos quatro animal meu pai vinha entregar na

cooperativa aqui. Ele entregava a borracha e pegava a mercadoria. Ele comprava tudo em grosso, caixa de óleo, fardo de açúcar, fardo de café. Tudo em grosso e levava pra zona rural.

E lá a gente trabalhava no roçado também. Na época era muito difícil. Não tinha motosserra, a gente derrubava o roçado era de machado. Mas assim, não tinha certas proibição. Você podia derrubar o tanto que você quisesse né. É um hectares ou dois hectare, dois alqueire.

E ali a gente tinha bastante produção, tanto você tinha muito legume e tinha muita criação. A gente criava bastante porco, bastante galinha, bastante pato. Só não criava gado. Por que a gente não tinha motosserra e era muito difícil fazer cerca, né.

Depois, uns 20 anos, que eu saí de casa, arrumei família. Continuo na Reserva Extrativista mas crio o gado, crio uma galinha, o porco, o cabrito, a ovelha. De tudo eu crio um pouco. Só não trabalho com a borracha porque aqui faliu ultimamente, a gente não tem pra quem vender. Aí eu crio gado, né. E castanha a gente tem uma vez no ano. E a safra da castanha tá com dois ano que não tem dado castanha na Reserva. Colocação de 400 latas de castanha, deu 100 lata. A minha 130, 140 [latas], mas esse ano deu 9 lata de castanha. Se a gente quer manter sua família com o extrativismo, a gente vai passar necessidade. Não tem condições61.

A cooperativa à que se refere Deuzuite é a Cooperativa Agroextrativista De Xapuri (CAEX) que foi criada por Chico Mendes no final da década de 1980. Hoje ela está desativada. A única cooperativa que compra borracha dos seringueiros é a Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (Cooperacre). No Capítulo 4 discutiremos mais detalhadamente a escala de sua atuação. O extrativismo da castanha ganhou importância nas últimas décadas, mas se dedicar exclusivamente a essa atividade não oferece muitas garantias, pois as safras são muito oscilantes de um ano para o outro, e há também desigualdade na distribuição geográfica das castanheiras nas colocações.

A criação de gado tornou-se uma forma mais segura e estável para as famílias da RECM. Assim como era a borracha no passado, que permitia ao seringueiro adquirir certa renda monetária e ir à cidade para comprar mercadorias, atualmente o gado cumpre a função de servir como uma “poupança” às famílias da RESEX.

Como em outras regiões do país, o boi também representa uma espécie de “poupança” para a família. Klaas Woortmann (1990) e Ellen Woortmann (1987) mostraram, por exemplo, como a criação de gado serve como um meio para a reprodução social dos sitiantes e para a aquisição de terras de trabalho, isto é, da própria expansão do sítio no caso dos camponeses de Sergipe pesquisado por ambos os autores. Desse modo, o gado é um dos fatores que viabilizam a constituição de um novo grupo familiar.

O depoimento de Abraão Cardoso esclarece as razões que levaram os camponeses aumentarem a criação de gado na RESEX:

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Graças a Deus que o boi tá dando um dinheiro. Que nóis temos um bezerrinho de vez em quando pra vende e poder comprar a nossa manutenção. Porque se não fosse nóis vender um bezerrinho, nóis ia viver do que? Da borracha? Não tem preço. É só a castanha, e uma vez por ano62.

A importância da criação de gado na composição da renda das famílias da RESEX Chico Mendes também pode ser observada pelos dados coletados pelo Ministério do Meio Ambiente/IBAMA e pelo Governo do Acre, conforme apresentamos no Gráficos 4 e 5. Em 1992, pouco depois da sua criação, o extrativismo representava 62% do valor total da produção dos seringueiros. Sendo que 35,2% vinham da extração de borracha. A criação de gado era de penas 9%. Em 2009, o quadro se modifica. A atividade extrativista caiu para 35%, enquanto a criação de gado chegou a compor 35% da renda das famílias. Também entram novos componentes na renda que não haviam sido observados na pesquisa anterior, tais como assalariamento e aposentadoria.

Muitos seringueiros apontam que os poucos e ocasionais incentivos governamentais, quase sem possibilidades de linha de crédito disponível para explorar outros produtos extrativistas, acabaram motivando a criação de gado como uma alternativa mais eficaz e segura. O depoimento de Raimundo do Pimenteira, morador do Seringal São Cristóvão, é bem elucidativo nesse sentido:

Raimundo - Tu vai a SEAPROF, você adula meu irmão. Eu digo a você com prova disso. Eu tô há quatro meses adulando um financiamento

Jeferson - Financiamento do quê Raimundo?

Raimundo - Vê se eu consigo financiar dois tanques pra criar peixe porque eu moro na reserva, mas eu não tenho intenção de criar gado na reserva porque eu não quero ser fazendeiro[...]. Eles diz que pra Reserva não tem esse financiamento, que é proibido, que vai causar impacto ambiental, precisa tirar um tal de um ponto. Eles não técnico pra isso? [..] Aí um coitado que tem 50 hectares de terra que não acha um incentivo, ele mete o pau, derruba tudinho, planta capim e compra um bezerrinho pra ele começar uma criação de gado e ter uma renda melhor. [...] Quem obriga o governo a fazer coisas ilegais é o próprio governo. […] Tanta seringa que tem na minha colocação. Eu não corto nenhuma seringueira porque eu vou vender seringa de R$ 1,20 [o quilo] meu irmão? A borracha era pra ser uma das coisas bem reconhecidas. Porque é da borracha que vem a câmara de ar, o pneu, o amortecedor63.

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Entrevista realizada com Abraão Cardoso em 5 de janeiro de 2016.

Gráfico 4 – Renda na RECM -1992

Gráfico 5 – Renda na RECM - 2009

O lamento pela desvalorização da borracha só não é maior do que o lamento pela falta de incentivos governamentais que pudessem gerar uma alternativa concreta ao extrativismo do látex. Mas seria um equívoco pensar que a criação de gado ocorre em substituição às atividades extrativistas ao ponto de criar uma tendência dos seringueiros tornarem-se simples criadores de gado.

No marco das estratégias para sua reprodução social, o que de fato ocorre é a combinação das atividades extrativistas, com a agricultura e a criação de animais, como o próprio depoimento de Deuzuite deixa claro.

Tampouco a criação de gado é comandada pela demanda do mercado. Entre os seringueiros, a criação e a utilidade de bois e vacas apresenta um caráter multifacetado. Hoje eles são utilizados pela maioria como meios de transporte para fazer o “combói” - o transporte de borracha, da

Composição da renda na RECM em 1992