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1.0 O REFERENCIAL TEÓRICO DA PESQUISA

2. DA FORMAÇÃO DO CAMPESINATO DA FLORESTA À CRIAÇÃO DAS RESERVAS

2.1 O extrativismo da borracha e o surgimento dos Seringais

Durante um vasto período de sua história, a Amazônia teve como principal atividade econômica o extrativismo florestal, com exploração das chamadas “drogas do sertão” (ervas aromáticas, plantas medicinais, cacau, castanha-do-pará e guaraná). Na segunda metade do século XIX, a região passa a se destacar com extração do látex para a produção de borracha voltada a atender o mercado mundial. A produção em larga escala deste produto ocorreu em razão da revolução industrial que possibilitou o desenvolvimento técnico por meio da descoberta da vulcanização. A borracha evoluiu de simples produto artesanal, extraído ancestralmente por populações indígenas e caboclas para uma matéria-prima essencial ao desenvolvimento industrial, impulsionado, sobretudo, pela indústria de elastômeros nos Estados Unidos e na Europa.

A marcha em busca da seringueira extrapolou os limites territoriais, resultando em uma guerra não declarada entre o Brasil e a Bolívia no final do século XIX – a chamada “revolução acreana” dirigida pela elite seringalista da Amazônia brasileira. Segundo João Craveiro Costa (1973, p. 29, apud SOBRINHO, 1992, p. 34), em 1899, o Acre contribuía com mais de 60% da borracha produzida na Amazônia. A nova fronteira econômica também implicou em uma fronteira política, com a incorporação do Acre e seus mais de 150 mil quilômetros quadrados ao território nacional, por meio do Tratado de Petrópolis, em 1903.

Mas no início a empresa extrativista se encontrava diante de uma enorme escassez de força de trabalho. A necessidade imperiosa de se aumentar a produção fez com que o Estado brasileiro promovesse uma das maiores migrações da história do país. Segundo Celso Furtado (1974, p. 122), cerca de 500 mil nordestinos adentraram nos seringais da Amazônia entre 1821 a 1912. A imensa maioria era formada por nordestinos, sobretudo, de cearenses. Muitas foram as motivações que levaram mais de 500 mil nordestinos para os seringais. A propaganda e a arregimentação realizada nas cidades de Fortaleza, Recife e Natal, os subsídios dos governos do Amazonas e do Pará concedidos ao transporte de migrantes e a ilusão de enriquecimento rápido explicam parcialmente o fluxo migratório. Contudo, não se pode desprezar da análise a estrutura fundiária existente no Nordeste, a crise na produção de algodão no Ceará no início da década de 1870 e, por fim, o elemento catalisador que foi a grande seca de 1877. Essa situação levou milhares de sertanejos a se dirigirem para as capitais nordestinas, especialmente Fortaleza, cujas ruas foram tomadas por uma multidão de flagelados e provocaram o horror das elites.

Provavelmente, foi o medo da multidão que levou a classe dominante cearense abrir as comportas para a migração. A multidão se fazia presente na cidade de

Fortaleza, “invadindo” todos os cantos e se tornando onipresente. No contexto das secas nordestinas, especificamente no Ceará, afirma Frederico de Castro Neves que “as multidões atuam estrategicamente”. (SECRETO, 2007, p. 41)

Haviam também vínculos econômicos entre os grandes proprietários de terra do sertão cearense e os seringalistas da Amazônia. Há casos, por exemplo, em que fazendeiros de gado do Quixadá, no interior cearense, se tornaram seringalistas nos vales dos rios Juruá e no Purus. (SOUZA J. B., 1960, p. 70).

Ao chegar à Amazônia, o sertanejo tornava-se empregado nos Seringais instalados nas margens dos rios. Nele, o nordestino agora convertido em trabalhador seringueiro, era assentado em colocações8 ou em alojamentos coletivos e trabalhava exclusivamente na extração do látex, sendo proibido realizar qualquer plantio agrícola, mesmo um modesto roçado.

Entre ele e o dono do seringal, o patrão seringalista9, se firmava uma relação aparentemente de assalariamento: o seringueiro se dedicava a extração do látex, entregava sua produção no barracão (centro econômico e das relações de poder no interior do seringal) e recebia uma quantia em dinheiro proporcional ao seu trabalho. Mas, na prática, o sistema era bem diferente. Como não podia produzir seus próprios meios de subsistência, tudo de que necessitava (de alimentos até instrumentos de trabalho) deveriam ser comprados no barracão a preços muito altos. Assim, ficava permanentemente endividado, sempre trabalhando para tentar “tirar o saldo” junto ao patrão. Essa forma de relação de trabalho ficou conhecida como peonagem e funcionava como um tipo de crédito sem dinheiro, que atava os trabalhadores seringueiros a elos de dependência, sob forte coerção física e moral, ao barracão do seringalista10.

Em 1905, Euclides da Cunha chefiou a expedição da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus com o objetivo de cartografar o novo território incorporado pelo Brasil. Muito além do requinte social ostentado pelas elites da economia gomífera, ele registrou a sujeição e exploração dos seringueiros sob o julgo do sistema de peonagem. O seringueiro, na sua célebre definição, “é o homem que trabalha para escravizar-se” (p.22), submetido à exploração compulsória sob a égide do patrão:

No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagem de proa ao Pará (35$000) e o dinheiro que recebeu para preparar-se

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A palavra “colocação” vem dos tempos dos antigos seringais de proprietário único. Como explica Almeida (2002), o seringueiro, antes de utilizar as estradas de seringa e construir uma casa, deveria ser "colocado", ou receber do patrão a autorização para explorar determinada estrada de seringa. Como veremos, a colocação sofreu uma redefinição a partir da conquista da autonomia camponesa.

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Segundo Leandro Tocantins, o neologismo “seringalista” surge apenas na década de 1920 para designar os patrões, que também poderiam ser chamados de seringueiros (TOCANTIS, 1982, p.100).

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A peonagem, porém, não foi uma invenção do ciclo da borracha, ela já existia na América espanhola, em substituição a encomienda (OLIVEIRA, 1986, p.41).

(150$000). Depois vem a importância do transporte, num gaiola qualquer de Belem ao barracão lonjinquo a que se destina, e que é na média, de 150$000. Aditem-se cerca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis: um boião de furo, uma bacia, mil tijelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um terçado, um rifle (carabina Winchester) e duzentas balas, dous pratos, duas colheres, duas chicaras, duas panelas, uma cafeteira, dous carreteis de linha e um agulheiro. Nada mais. Aí temos o nosso homem no barracão senhorial, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrão lhe designará. Ainda é um brabo, isto é, ainda não aprendeu o corte da madeira e já deve 1:135$000. (CUNHA E., 1926, p. 22-23)11

Ao endividamento, somavam-se os chamados “regulamentos dos seringais” que normatizavam o trabalho e a reprodução material e social dos seringueiros no interior da mata. Segundo Euclides da Cunha, os regulamentos impunham pesadas multas a quem descumprisse as normas de trabalho na extração do látex, além de proibir o trabalhador de comprar no armazém de outro barracão sob pena de multa de 50% sobre a importância comprada. Fugir era algo impensável em razão das distâncias e da floresta que o deixava “cercado numa prizão sem muros” (CUNHA E., 1926, p.59). Do mesmo modo, era impossível buscar outro barracão, uma vez que os patrões acordavam entre si não aceitar empregados dos outros, antes de saldarem suas dívidas.

O cearense aventuroso ali chega numa desapoderada ansiedade de fortuna; e depois de uma breve aprendizagem em que passa de brabo a manso, consonante a gíria dos seringais (que significa o passar das miragens que o estonteavam para a apatia de um vencido ante a realidade inexorável) – ergue a cabana de paxiúba à ourela mal destocada de um igarapé pinturesco, ou mais para o centro numa clareira que a mata ameaçadora constringe, e longe do barracão senhoril, onde o seringueiro opulento estadeia o parasitismo farto, pressente que nunca mais se livrará da estrada que o enlaça, e que vai pisar durante a vida inteira, indo e vindo a girar estonteadamente no monstruoso círculo viciosa da sua faina fatigante e estéril. (CUNHA E., 1976, p. 280-281),

Tudo isso fazia do seringal numa verdadeira organização social, com estrutura econômica característica e regras e costumes próprios. A chave para a peonagem foi o chamado Sistema de Aviamento, onde casas aviadoras, ou seja, lojas comerciais, localizadas nos maiores centros urbanos da região (Belém e Manaus) abasteciam floresta adentro os barracões de mercadorias.

Carlos Corrêa Teixeira (2009) classifica a peonagem como uma das formações de trabalho típica que surgiu na transição entre escravismo e o trabalho livre, assim como foi o colonato nas fazendas do Oeste paulista, analisado por Martins (2010) em O Cativeiro da Terra. De acordo com Teixeira (2009, p. 173), o seringal se caracterizava por: 1) o emprego de fatores naturais de produção disponíveis num dado espaço na floresta; 2) como um sistema social se apoiava em um

11 Interessante notar como Euclides da Cunha já colocava a transformação da estrutura agrária dos seringais como forma

de pôr fim ao sistema de superexploração do seringueiro ao elencar as seguintes medidas: “uma lei do trabalho que notabilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; e um forma qualquer do homestead que o consorcie definitivamente à terra.” (CUNHA, 1926, p.26).

poderoso mecanismo ideológico e violência assentado na dominação do poder pessoal do seringalista; 3) no desenvolvimento das atividades produtivas do seringal, sobretudo a extração do látex, destinado a suprir uma demanda da indústria mundial.

O dinheiro, utilizado na troca por gêneros de consumo e instrumentos de trabalho no barracão, seria um símbolo mediador das relações entre patrões e seringueiros e serviria formalmente para mediar essa relação de troca. Também servia para impor o controle das contas dos produtores por meio dos saldos e das taxas impostas pelo patrão. No saldo, se o valor dos gêneros consumidos fosse maior do que o valor da produção, o seringueiro ficava com um saldo devedor. Se, ao contrário, a produção fosse maior do que os gêneros consumidos, ele teria saldo credor. Contudo, dificilmente o seringueiro “tirava saldo” com seu patrão. Mecanismos como a “tara”12 e o encarecimento artificial dos preços dos gêneros alimentícios e de trabalho vendidos no barracão impediam completamente o caráter livre dessa relação. Assim, tais mecanismos eram sempre utilizados para manter o controle e impor a dependência do seringueiro ao patrão seringalista (TEIXEIRA, 2009, p. 177).

Dessa forma, por estar preso a essa relação é inadequado classificar o seringueiro, especialmente durante o auge da produção da borracha, como um produtor independente ou ainda um camponês marginalmente inserido no sistema de plantation, conforme defende Otávio Velho (1979) a respeito da expansão dos camponeses da Amazônia Oriental. Também seria um equívoco considerar o seringueiro como um assalariado, uma vez que os mecanismos de dominação pessoal e a sujeição à dívida no barracão impedem que disponha livremente de sua força de trabalho. Do mesmo modo seria impróprio conceituar o seringueiro como um escravo, uma vez que não se constituía como um objeto ou uma mercadoria sujeito a dominação de quem o comprou. A questão é que o seringueiro surgiu como produto de um determinado momento histórico do país, na transição para o trabalho livre.

O seringueiro é a representação de um trabalhador original presente na constituição histórica em que se realiza – e se reproduz – o capital. De maneira que, da mesma forma como ocorreu no Brasil com a escravidão e o colonato, o seringueiro surge num determinado momento desse processo histórico e o colonato, exatamente aquele em que se dá a instalação da grande indústria na Europa, inaugurando uma nova ordem econômica e forçando a substituição do escravismo por outras formas de produção (TEIXEIRA, 2009, p. 181).

No seringal predominava um tipo de relação de produção que não era tipicamente capitalista, isto é, assalariada, em que se atava, por um lado, o trabalhador seringueiro sujeitado às relações econômicas produzidas pelo capital mercantil e industrial e mediadas pelo aviamento. Por

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Tara foi uma taxa cobrada pelos patrões onde se descontava 10% de cada quilo da borracha saturada com água. Ainda é usada por marreteiros e comerciantes para se descontar o preço da borracha e da castanha.

outro, havia também relações extraeconômicas e de natureza ideológica que agiam na sujeição deste trabalhador. Nesse sentido, o isolamento na mata que amplia sua alienação em relação ao produto de seu próprio trabalho, as relações de reciprocidade com o patrão, e a dívida com o barracão são os principais elementos de uma situação em que se reafirmava a sujeição do seringueiro.

Essa situação se modificou gradativamente quando a empresa seringalista conheceu sua primeira grande crise entre 1911-1915, quando chega ao fim o monopólio amazônico da borracha com os seringais cultivados pelo Império Britânico na Malásia e no Ceilão. Em 1923, a produção asiática de borracha de cultivo já abarcava mais de 90% da produção mundial, conforme indica a Quadro 1. A queda dos preços resultou, em um primeiro momento, no despovoamento de vários seringais. Também tornou menos rígido o sistema de peonagem, embora tenha sido desigual em cada parte da região amazônica, como explicaremos adiante.

Quadro 1- Produção de borracha em 1910 e 1923.

Tipo de borracha 1910 1923

Borracha Silvestre (Amazônia) 88,2% 11,8%

Borracha Cultivada(Ásia) 8,4% 91,6%

Fonte: ALLEGRETTI, 2002

Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os seringais asiáticos foram ocupados pelo Japão. Preocupados com o escasso fornecimento de borracha para as tropas Aliadas, os Estados Unidos e o Brasil celebram os Acordos de Washington que incentivam um novo ciclo de exploração do látex amazônico a partir de 1942, sob o lema “mais borracha, menos tempo”. Mais uma vez, seria necessário recrutar mão de obra nordestina para reativar os seringais. Contudo, o Estado Novo teve que realizar um amplo e eficaz trabalho de propaganda no sentido de reverter a má fama já consagrada sobre a brutalidade do regime de trabalho encontrado nos seringais. Além disso, diferente do primeiro fluxo migratório, o Sudeste do país, especialmente São Paulo, já passara a ser o principal polo de atração para a força de trabalho do Nordeste. Assim, foi criado em 1943 o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), cujo objetivo era recrutar e transportar a mão de obra nordestina para a extração da borracha na Amazônia. O órgão era parte do Departamento Nacional de Imigração (DNI) e foi financiado por um fundo especial da Rubber Development Corporation, criado a partir dos Acordos de Washington.

Assim como no século XIX, mais uma vez a estrutura fundiária no Nordeste, marcada pela grande concentração de terras, catalisada pela seca de 1941-42, jogou milhares de flagelados nas ruas dos grandes centros urbanos e facilitou o recrutamento realizado pelos órgãos do Estado Novo. Os cartazes elaborados pelo artista suíço Jean-Pierre Chabloz, conforme Figura 4,

evidenciam como era realizada a propaganda para atrair o sertanejo aos seringais exibindo uma imagem idílica da Amazônia. Neles pode-se ver um sertanejo esperando enquanto um grupo de trabalhadores felizes dentro de um caminhão segue para a Amazônia, protegidos pelo SEMTA. Em outros, a Amazônia é vendida como a terra da fartura, em contraste com o árido sertão, e uma colocação é mostrada como um lugar bucólico, como se o trabalho com a borracha pudesse ser realizado no quintal de casa.

Figura4 – Cartazes do SEMTA realizados por Chabloz.

A “batalha da borracha”, como ficou conhecido este novo período de produção gomífera, mobilizou segundo Secreto (2007) cerca de 50 mil migrantes nordestinos que ficariam conhecidos como “soldados da borracha”, chamados ao esforço de guerra dos Aliados. Os “soldados da borracha”, na sua maioria, constituíam-se de cearenses, homens do sertão, do agreste e das caatingas castigados pela seca e no limite da sobrevivência. A migração novamente se tornaria uma válvula de escape para os potenciais conflitos de classe no Nordeste. A Marcha também tinha por objetivo a colonização da Amazônia e do Centro-Oeste, uma vez que o governo de Getúlio Vargas estava promovendo a chamada “Marcha para o Oeste”, com o objetivo de “conquistar” o interior do país.

Terminada a Segunda Guerra, a vitória dos Aliados garantiu a retomada da produção da borracha nos seringais asiáticos. No Brasil, a produção de borracha amazônica passou a ser adquirida pelo governo federal que estabeleceu um monopólio sobre a compra que durou mais de três décadas. A borracha amazônica supria a indústria nacional de artefatos de borracha e era formada predominantemente por produtores pneumáticos controlados por multinacionais como Firestone, Pirelli, Michelin, Goodyear. Após o Golpe de 1964, o regime militar colocou em prática

novos planos estratégicos para a Amazônia e, em 1971, o Banco da Amazônia (BASA) suspendeu as linhas de financiamento aos seringalistas endividados e considerados incapazes de saldar suas dívidas (COSTA SOBRINHO, 1992, p. 144). Em 1967, a Lei 5.227 extinguiu o monopólio de comercialização de borracha pelo Estado, mas a sobrevida aos seringalistas veio através da determinação da formação de um estoque de reserva de borracha e a equiparação dos preços da borracha de produção nacional aos vigentes no mercado internacional. Também foi criada a Superintendência da Borracha (SUDHEVEA)13.