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Composição da renda na RECM em 2009 (Fonte: ACRE, 2010)

4. OS SABERES DO CAMPONÊS DA FLORESTA

4.6. A Lei do Fogo Zero: quando ‘botar roçado’ vira crime

Umas das maiores queixas ouvidas durante as entrevistas realizadas com os seringueiros da RECM foi a ameaça de proibição das queimadas para a prática de roçados.

Hoje a bem dizê a gente não pode mais trabaia, bota um roçado assim maiorzinho. Não querem deixar o cara cria, não querem deixar planta porque pra não toca fogo e nem derruba a mata. É proibição deles. Mas nóis que mora aqui nóis sabe mais ou menos. Ninguém vai tocar fogo, ninguém vai derrubar um desespero de mata. Pra quê?105

Como vimos, existe toda uma literatura científica que associa a agricultura itinerante como algo arcaico e incompatível com a conservação ambiental e com os modelos de sustentabilidade econômica e justificam um farto cardápio de políticas públicas que pretendem reduzir ou mesmo erradicar tais práticas agrícolas. Nessa perspectiva, as queimadas são vistas como práticas atrasadas que uma boa dose de educação ambiental permitiria erradicar. No caso do Acre, tal concepção tornou-se explícita quando, em 2009, o Ministério Público do estado publicou uma Ação Civil Pública Nº 2009.30.00.001438-4 que proibiu totalmente as práticas de queimadas em todo o território acreano a partir de 2012 (ACRE, 2009).

Figura 39 – Mauro mostra como queimou área para “botar roçado”.

Foto: Jefersaon Choma, em 16/09/2017.

A “Lei do Fogo Zero”, como ficou conhecida, ainda proibiu que o IBAMA, ICMBio e o Instituto do Meio Ambiente do Acre (IMAC) autorizassem qualquer tipo de queima em todo o território do estado. Ao enumerar as dificuldades encontradas para erradicar a prática da queimada, uma vez que ela “está enraizada na cultura da população local e no modo de produção por ela utilizado”, o MP avalia que o seu uso tem se tornado um mal considerado crônico e praticado “por pequenos, médios e grandes produtores”, e que “destrói diretamente a maior e mais importante floresta tropical do mundo” (ACRE, 2009, p. 4). Aqui fica explícito que não há nenhuma diferenciação sobre as formas de utilização do fogo entre diferentes sujeitos sociais como, por exemplo, aquela realizada por um grande pecuarista e as formas tradicionais de coivara efetuadas pelos camponeses ao abrir seus roçados de subsistência. O “pequeno produtor” seria, na visão do MP, tão responsável pela destruição da floresta amazônica quanto os grandes fazendeiros.106

A Lei do Fogo Zero foi suspensa em 2013 depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu favoravelmente a um recurso da Federação dos Trabalhadores Rurais do Acre (FETACRE) contra a ação ajuizada pelo MP do Acre. No entanto, o Instituto de Meio Ambiente do Acre (IMAC) precisa emitir licenças autorizando a queima de até um hectare.

A visão negativa sobre a prática de queimada para a abertura de novos roçados de subsistência é amplamente alimentada por instituições e agentes técnicos do Estado do Acre, que estimulam a introdução de novas técnicas de cultivo como a adubação verde com o uso de leguminosas como a pueraria e a mucuna.107

As incursões ao campo demonstraram que muitos seringueiros quando vão plantar feijão, milho ou mandioca preparam a “terra de pueraria” ou “terra de mucuna”, uma classificação utilizada para designar o solo quando ele está ocupado por um desses gêneros botânicos. Na maioria das vezes, os seringueiros consideram positivo o uso das leguminosas para aumentar a fertilidade e o tempo de uso de um roçado aberto já há alguns anos. Assim, evitam-se novas derrubas de mata bruta ou de capoeiras poupando tempo de trabalho para os lavradores. Mas a introdução e o incentivo dado pelo poder público à adubação verde vêm acompanhada pela tentativa de coibir (quando não a criminalização direta por meio de multas ambientais) do uso do fogo nos roçados. No

106A enorme diferença entre a compreensão do MP com a lógica da produção camponesa é novamente evidenciada

quando o órgão, com o intuito de demonstrar as técnicas alternativas ao uso do fogo, elenca entre as alternativas para a substituição da queima o manejo de culturas anuais, “mediante a utilização de tecnologias que melhorem o solo, como, por exemplo, o uso de corretivos, fertilizantes, máquinas, sementes de boa qualidade e implementos adequados, adicionando ao solo matéria orgânica e promovendo a sua cobertura, tornando-o mais fértil” (ACRE, 2009, p. 14). Fica explícita aqui a marginalização dos saberes tradicionais dos agricultores nos seringais com a racionalidade científica moderna, considerada mais eficiente.

107A adubação verde também foi recomendada pelo MP do Acre quando editou a lei do “fogo zero”, “que é o plantio e a

incorporação de adubos verdes antes da instalação dos cultivos, proporcionando a melhoria do solo, pois que lhe fornece nutrientes essenciais, conserva-lhe a umidade, de modo a favorecer a flora microbiana” Mas o uso do chamado adubo verde já empregado pelos seringueiros, ao mesmo tempo em que mantém a prática da queima. Para eles não há posição entre um ou outro. A adubação verde foi plenamente incorporada nas suas práticas (ACRE, 2009, p. 14-15).

entanto, os seringueiros continuam a realizar coivaras quando julgam útil essa prática no processo de reprodução da família. Nesse sentido, o depoimento do seringueiro Evilásio é bastante revelador:

Evilásio - Ano passado eu plantei na mucuna, e nesse ano na mucuna de novo. Só que quando eles descobriram que eu tava queimando, os técnico da SEAPROF e do PESACRE foram lá e insistiram que eu não tenho que queimar. E ela só dá boa se queimar. Roça ela, depois taca fogo bem rápido e ai planta o feijão e assim dá bom. Jeferson - O técnico não queriam que você queimasse?

Evilásio - Não. Agora mesmo aí eu plantei uma área onde queimo. Levei eles lá. Aonde plantei 20 quilo sem queimar eu bati 40 quilo [de feijão]. Aonde eu plantei 20 quilo queimando, eu vou ali colhe pelo menos três ou quatro saca. É o dobro. Mesmo assim o técnico diz que não, que tem que continuar não queimando. Mas não tá dando certo não queimar.

Jeferson - Por que eles falam que não tem que queimar?

Evilásio - Rapaz é porque é aquela questão que surgiu não sei porque...a questão do Fogo Zero. Eles já querem proibir que a gente queime. Querem que a gente trabalhe sem queima. Nasci e me criei naquela colocação. Hoje tenho 45 anos. Da minha casa pro mato não dá 50 metros. Eles não querem o fogo porque pode acabar com a mata, né. Eles querem proibir o fogo. Mas o meu caso é que eu tenho 45 anos, comecei a trabalhar com 15 anos. Mas tá com 30 anos que sobrevivo dali. Agora eles querem que eu não queime. 108

Quando Evilásio diz que da sua “casa pro mato não dá 50 metros” ele estava querendo ressaltar a manutenção de uma extensa área florestada existente em sua colocação, e que não foi comprometida pelas queimadas que sempre realizou para fazer os seus roçados. O depoimento também demonstra que não há uma aceitação passiva dos conhecimentos “dos técnicos” da SEAPROF (Secretaria de Extensão Agro Florestal e Produção Familiar) e do PESACRE (Grupo de Pesquisa e Extensão em Sistemas Agroflorestais do Acre). Eles são absorvidos sim, mas mediante o crivo da experimentação. Aliás, quando o seringueiro explica que levou os técnicos para ver o resultado de sua experiência, ele mostra que estava tentando convencê-los dos resultados positivos obtidos por ele. Tentava mostrar que através do simples manejo técnico orientado por eles, o seringueiro não poderia sustentar sua família.

Evilásio também apresentou essa mesma postura em outros programas apresentados pelo poder público no interior da RECM. Nos últimos anos, o Governo do Acre vem promovendo roçados baseados em Sistemas Agroflorestais (SAFs), por meio do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre (PDSA). A partir de técnicos da SEAPROF, as famílias seringueiras recebem instruções técnicas sobre como manejar os SAFs, além de mudas de seringueiras, castanheiras, entre outras espécies arbóreas, palmeiras e espécies frutíferas. O programa, segundo os técnicos e as cartilhas da SEAPROF, tem por objetivo recuperar áreas degradadas por pastagens, diversificar a produção de alimentos entre os seringueiros e desestimular as sucessivas queimadas realizadas para

abertura dos roçados itinerantes109. O programa é avaliado de forma positiva pela maioria das famílias. Entretanto, mais uma vez não há aceitação passiva, conforme explica Evilásio:

Eles tiveram dizendo pra mim que o açaí [do programa] é o mesminho. Só que, segundo eles, deram uma melhorada, dizendo que esse açaí chega com 7 ano. Aí o que é que eu fiz. Pranto o que vem do projeto, mas eu também vou pegar o meu lá da mata e vou prantar junto pra ver que melhorada foi que deu. Só que tem um porém, o açaí pelo que eu tô vendo aqui precisa muito da sombra. 110

Evilásio também trouxe da mata mudas de jutaí que fornece madeira para a construção de casas, e de copaíba. Também cultiva em seu incipiente SAF frutas como o copuaçu, graviola, banana, caju, ingá, amendoim; árvores como a seringueira, o cumaru ferro, o cumaru de cheiro, cedro, além da mandioca. Isto é, o SAF apresentado pelos “técnicos” é recriado pelo seringueiro com base em seus conhecimentos e as experiências que ele realiza. O seringueiro não tem planos de pôr fim ao seu roçado itinerante tradicional, uma vez que o SAF é identificado como um “roçado a mais” que servirá para garantir a reprodução da família e aumentar sua autonomia diante do mercado.

O conjunto dos saberes do camponês da floresta se apóia na tradição repassada por gerações, mas também se pauta na experimentação realizada e não é refratária aos conhecimentos vindos de fora, pelas mãos de técnicos e especialistas. Observa-se o processo de desenvolvimento dos cultivos, há trocas de informações e cada um ouve atento aquilo que seu vizinho ou parente experimentou. Do mesmo modo os conhecimentos “dos técnicos do governo”, são absorvidos ao seu inventário de conhecimentos, como é o caso do uso dessas plantas para fertilização do solo, ou como vimos, nos cultivos agroecológicos estimulados por programas governamentais. Assim, o seringueiro não abandona os seus saberes tradicionais em prol dos saberes científicos transmitidos pelos técnicos. Ele os incorpora e até os transforma, a partir de referenciais cognitivos próprios. Não se trata de uma absorção passiva, mas diríamos antropofágica, no sentido de adquirir as habilidades do outro. Os conhecimentos “dos técnicos”, não são tratados como revelações. São submetidos à prova, a observação ativa e metódica, onde se exercem analogias e aproximações, com o desenvolvimento de hipóteses e experiências controladas a fim de confirmá-las ou rejeitá-las sob o crivo da repetição.

Na floresta, o seringueiro sempre procura algo que possa ser útil à reprodução da vida. Um fruto venenoso para proteger o roçado, a muda de um açaí nativo que pode ser mais “rendosa” do que aquele que recebeu dos técnicos.

109A cartilha sobre roçados sustentáveis, editada pelo governo do Acre com o Centro dos Trabalhadores da Amazônia,

também recomenda o não uso do fogo, exceto no momento da implementação dos roçados sustentáveis. “É importante lembrar também que este é o único momento em que o uso do fogo será tolerado e não serão permitidas derrubadas e queimadas na mata bruta” (Roçados Sustentáveis. Produção familiar e transição agroecológica. ACRE, 2016, p. 13).

Os meios disponíveis precisam ser inventariados. A classificação dos tipos de solos, relevos, estágios sucessionais da vegetação, dos ciclos naturais medidos pelas fases da lua, cantos dos sapos, entre outros eventos que se dão no nível da intuição sensível e que, mesmo que heteróclita e arbitrária aos olhos dos técnicos e da ciência ocidental moderna, constitui uma ordem racional necessária à sua reprodução social. Dessa maneira, estes saberes se constituem em uma “ciência do concreto” na qual “o universo é objeto do pensamento”, diria Claude Lévi-Strauss (2012), e se inscrevem em uma lógica camponesa de reprodução onde a floresta não é vista como um objeto, um fator de produção, mas como a expressão de uma moral, representada por valores éticos (WOORTMANN K., 1990).

Figura 40– Roçado agroecológico cultivado por Evilásio.

Foto: Jeferson Choma, em 19/09/2017.

Figura 41 – Mucunas plantadas em roçados antigos para devolver fertilidade ao solo.