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Composição da renda na RECM em 2009 (Fonte: ACRE, 2010)

3.8. O 'morador invasor': a ocupação das colocações

A ocupação de colocações por novos moradores que chegam a Reserva vem provocando polêmicas e conflitos entre os órgãos gestores, moradores e seus representantes nas associações. Por ser de domínio público e ter seu uso concedido, é proibido o loteamento e venda das colocações existentes na Reserva. Mas desde a sua criação é permitida a venda de benfeitorias, como tradicionalmente sempre fizeram os seringueiros.

A ocupação de colocações realizadas por novos moradores vem preocupando o Conselho Gestor da RESEX. Nos dias 11 e 12 março de 2013, o órgão modificou o Artigo 20 do Plano de Utilização, que dispõe sobre a compra e venda de benfeitorias. O objetivo alegado seria deter o processo de ocupação irregular da Reserva por meio de relações de compra e venda das colocações. Em entrevistas com funcionários do órgão gestor, houve alegações de que fazendeiros estariam comprando colocações próximas às fazendas, isto é, nos limites da RESEX e próximas às cidades, para converter a floresta em pasto e criar gado. Mas as mudanças significativas realizadas no Plano de Utilização prejudicam os camponeses extrativistas e não levam em consideração antigos princípios que nortearam a criação da Reserva.

Antes de ser alterada, a redação anterior do Artigo 20 afirmava que: “Caso o morador queira sair da Reserva, a venda da benfeitoria só poderá ser feita para outro extrativista. No caso de venda ilegal o morador poderá ser expulso da reserva sem direito algum” (ICMBio, 2006, p. 53. Grifo nosso). Como se pode ver, qualquer novo morador que comprovasse ser extrativista poderia comprar as benfeitorias realizadas de uma determinada colocação. Não era necessário, portanto, que o novo morador estivesse residindo na própria Reserva como um morador reconhecido pelo órgão gestor, e sua comprovação enquanto extrativista era balizada por um certo controle comunitário, conforme os dispunham os Artigos 17, 18 e 19, que também dispõem sobre a ocupação das colocações. Os artigos afirmam que em colocações abandonadas, deveriam ser dadas de preferência àqueles que são filhos de moradores e querem constituir família em uma nova colocação66. Também afirmavam que a transferência precisavam ser aprovadas pela comunidade, registradas em ata e com a presença de membros do Conselho Gestor e do IBAMA67. Contudo, com a modificação efetuada na X reunião do Conselho Gestor, a nova redação do Artigo 20 ficou assim:

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“Artigo 17: No caso da ocupação de colocações abandonadas deve ser dada a preferência para que a ocupação seja prioritariamente por parte dos filhos de moradores que já compuseram família e que mantém a condição de extrativista. Para que a colocação seja considerada abandonada, deverá ser ouvida a Associação (ICMBio, 2006, p. 53).

67 “Artigo 19: A transferência de uma colocação deve ser aprovada pela comunidade, com registro em ata na presença

da Associação de Moradores e Produtores, IBAMA e outros parceiros do Conselho Deliberativo. No caso de vendas ilegais de parte da colocação, o negócio deve ser desfeito para a recomposição da colocação. (ICMBio, 2006, p. 53).

Reconhece-se extrativista e beneficiário da Unidade de Conservação, para fins descritos no Artigo 20, aqueles indivíduos que residem reconhecidamente peloórgão gestor;Fica proibida a venda de benfeitorias para indivíduos não reconhecidos como residentes regulares (ICMBio, 2013, grifo nosso).

Como se pode ver, houve uma maior centralização de decisão sobre a ocupação das colocações nas mãos do órgão gestor. Sem o seu reconhecimento, o morador que ocupa uma determinada colocação pode ser considerado um residente irregular. Mas, se reconhece enquanto extrativistas aqueles que são reconhecidos como residentes pelo órgão gestor, isto é, o ICMBio. Desse modo, as organizações comunitárias, associações ou núcleos de base, sofrem um esvaziamento no que se refere a esse tipo de decisão. Além do mais, tal deliberação está em completo desacordo com os princípios de autogestão que nortearam a própria criação das RESEXs. Esses princípios tingiram os artigos do Plano de Utilização adotado em 1995, anos após a sua criação. O Artigo 30, daquele plano, regulamentava a ocupação das novas colocações e apresentava a questão deste modo:“A entrada de novos moradores na Reserva será possível tanto para substituição de alguém que está saindo, quanto para ocupar colocações abandonadas, sempre mediante a aprovação da associação que estabelecerá um regulamento para tal” (BRASIL, 1995, p 27, grifo nosso). Já o Artigo 36 dizia: “Quando um seringueiro solicitar a transferência ou troca de sua colocação por outra, a transação só poderá ser efetuada após aprovação da comunidade, e desde que aquela esteja bem zelada (BRASIL, 1995, p. 27. Grifo nosso).

Tradicionalmente, a mobilidade entre as famílias seringueiras é realizada sob esse tipo de controle comunitário. Aquele que pretende adquirir uma nova colocação e morar em um novo seringal não faz isso sem a aprovação dos moradores do local escolhido. Por essa razão que essa regra foi inscrita no primeiro Plano de Utilização, e também – ainda que parcialmente – no Plano de Utilização elaborado em 2006. Assim, será no âmbito de alguma forma de poder comunitário, como um núcleo de moradores atuante e bem zelado, que isso será discutido por moradores. Serão essas instâncias que aprovarão ou desaprovarão se um novo morador será ou não o seu vizinho.

A questão sobre “a invasão” da Reserva e a venda de benfeitorias das colocações adquire uma feição complexa, pois está relacionada à própria reprodução familiar dos camponeses que nela vivem. O próprio aumento da família obriga o filho ou a filha de um seringueiro a procurar outra colocação próxima, ou mesmo em outros seringais mais distantes, uma vez que a colocação do pai ou da mãe já não pode garantir a reprodução da nova família. E isso é realizado sem consultar o Conselho Gestor ou mesmo o ICMBio. Este processo sempre existiu, mesmo antes da criação da Reserva. Na maioria das vezes, a existência de parentes em outras localidades auxilia essa mudança e possibilita a ocupação de novas colocações. De modo geral, onde há organização de base, a questão pode ser debatida em assembleias comunitárias.

Em uma reunião promovida pela Associação Bom Sucesso, que representa moradores dos seringais Venezuela, Humaitá, São Cristóvão e Riozinho, realizada em 7 de outubro de 2016, conforme registrada na Figura 26, foi discutida a venda das benfeitorias da Colocação Jirau (localizada no Seringal Venezuela). A antiga moradora, conhecida como “Graça”, queria vender as benfeitorias argumentando que teria o direito de uso da colocação. Ela já vivia na cidade de Brasileia há alguns anos, mas deixou na sua colocação três filhos, genros e netos. A venda da colocação, portanto, significaria para estes a perda do território e o desalento total. A assembleia da associação de moradores decidiu por unanimidade que aquela colocação não poderia ser vendida, mas que a Graça, se assim desejasse, poderia voltar para ela. O responsável pela associação encaminharia essa resolução ao ICMBio para que procurassem transferir o uso fruto da terra para os filhos da ex-seringueira que são as pessoas que de fato moram e trabalhavam na colocação.

Portanto, ainda estão presentes as formas comunitárias e tradicionais de se resolver a venda de benfeitorias das colocações. Elas obedecem a uma lógica distinta daquela contida na gestão estatal, e nos remetem às formas de autogestão contidas na proposta original das Reservas Extrativista. As assembleias comunitárias continuam como espaços de decisão sobre quem pode e quem não pode se mudar para uma determinada colocação.

Na falta de uma organização apropriada, o novo morador pode simplesmente consultar seus futuros vizinhos sobre suas intenções em se mudar para uma determinada colocação, como foi observado em campo com o seringueiro Quejinaldo de Freitas França, morador do Seringal Nova Olinda.

Quejinaldo: Tá com 7 ano que eu tô aqui e eu consegui passar isso aqui pro meu nome agora no final do ano passado.

Jeferson: Como foi isso?

E que quando você compra assim, eles [o ICMBio] fica botando dificuldade, não quer deixar a gente entrar, diz que é desconhecido e que tem que ver se é extrativista.

Jeferson: Mas os moradores encrencaram?

Quejinaldo: Não, o rapaz que vendeu me disse: ‘vou ver com os vizinhos se eu posso vender e se eles levar a mal, aí eu te aviso’. Procurou saber se comunidade concordava, aí ninguém disse nada, e eu fui e paguei ele68.

No dia em que realizei essa entrevista, o núcleo de base do Seringal Nova Olinda havia sido criado em uma assembleia realizada na colocação de Quejinaldo. Dessa forma, por iniciativa da comunidade hoje há um órgão de deliberação coletiva para debater as demandas comunitárias.

Quejinaldo não nasceu na Reserva Extrativista. Foi para o Seringal Nova Olinda quando esteve diante da ameaça de perder seu lote de terra, localizado próximo à fronteira com a Bolívia, em razão de disputas familiares. Neste caso, a aquisição da colocação dentro da RESEX garantiu a reprodução da sua família. No dia em que foi entrevistado, Quejinaldo estava contente, pois finalmente o ICMBio havia o reconhecido como “extrativista”, após sete anos trabalhando nas suas estradas de seringa extraindo látex para vender para a Cooperacre.

Desde que eu vim pra cá é que corto seringa, aí tem o negócio do subsídio. Pra receber o subsídio tem que ter a tal da DAP. E pra fazer a DAP a colocação tem que tá no nome da gente. E esses anos todinho que eu vinha cortando, eu tava recebendo R$ 1,50 [por Kg] que era o preço da borracha. Aí tinha mais um [real] e pouco que era o subsídio, mas eu não recebia ele, porque eu não tinha a DAP. Então agora foi a primeira vez que eu vendi com subsídio foi agora, esse ano, porque eu consegui fazer a DAP. Passei aqui pro meu nome e consegui fazer a DAP69.

A Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) é pré-condição para que o seringueiro possa receber os subsídios estatais concedidos na extração da borracha70. Mas ela só pode ser emitida após o ICMBio reconhecer a condição de “extrativista” do morador da Reserva, conforme a modificação do Artigo 20. Após sete anos trabalhando na extração da borracha, de nada adiantava se os moradores reconhecessem Quejinaldo e sua família como extrativistas. Sua situação só foi regularizada após muitas insistências junto ao escritório do ICMBio em Brasileia.

Figura 26 – Reunião realizada pela associação Bom Sucesso.

Fotos: Jeferson Choma, em 07/10/2016.

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Entrevistas realizada com Quejinaldo Freitas França em 8 de setembro de 2017.

A história de Quejinaldo também revela um outro aspecto das ocupações dos seringais. Assim como ele, muitas outras famílias que moravam em outras regiões, hoje vivem nas colocações da Reserva Extrativista para assegurar sua reprodução camponesa. Uma parte dessas famílias é formada por seringueiros brasileiros que viviam na Bolívia, conforme explica Anacleto Maciel, da Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Chico Mendes de Brasileia:

O Evo Morales, que é presidente da república aqui da Bolívia, apertou muito as pessoas que morava 50 quilômetro da fronteira e as pessoas vieram para o Brasil. Quando chegaram no Brasil com um pouco de dinheiro, as veiz pegava aquela colocação que tava abandonada, e foram se infiltrando sem a pessoa passar pela associação, sem passar pelo sindicato rural, sem passar pelo ICMBio, e foram para as colocação71.

O processo descrito por Anacleto começou em 2009, quando seringueiros brasileiros que vivem em território boliviano, na fronteira com o Acre, começaram a ser expulsas pelo governo boliviano, que alegava a necessidade de garantir a soberania do seu país. Muitos seringueiros brasileiros não poderiam mais continuar morando na região fronteiriça e foram obrigados pelas autoridades bolivianas a sair de suas colocações72.

Para muitos, os seringais da Reserva Extrativista Chico Mendes, principalmente os mais distantes e pouco habitados, se convertem em uma alternativa para camponeses que foram expropriados e expulsos de suas colocações.

Como viviam da borracha e da castanha, a maioria desses seringueiros expulsos possuem o mesmo modo de vida daqueles que moram na RECM. O grande problema é que esses mesmos moradores são considerados invasores pelo órgão de gestão da Reserva, embora a maioria desenvolva desde sempre práticas agroextrativistas.