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3.A TRANSFORMAÇÃO DA RESEX EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO

3.3. Relação camponesa com a floresta

Não queremos aqui subscrever argumentos reforçando a noção que determinados grupos sociais, como os camponeses seringueiros, são essencialmente conservacionistas, o que reforçaria “o mito do nobre selvagem ecológico”44. Aos olhos de muitos conservacionistas, práticas e hábitos tradicionais das populações seringueiras podem soar ecos de um certo arcaísmo suscetível ao desaparecimento por meio de uma boa dose de “educação ambiental”. Como lembra Manuela Carneiro da Cunha (2009), o ambientalismo pode se referir a uma ideologia, e que muitas práticas culturais realizadas por sociedade indígenas e camponesas não possuem explicitamente nenhuma ideologia conservacionista. Assim, “[...] para conservar recursos, uma sociedade não necessita evitar completamente a predação, basta que a mantenha sob limites” (CARNEIRO DA CUNHA, p. 288).

O seringueiro é um camponês da floresta cujo peculiar processo de formação, como visto no Capítulo 2, faz com que sua relação com o tempo e o território seja regulada por uma lógica diferente daquela vigente em outras tipificações camponesas do Centro-Sul, ou até mesmo dos próprios “colonos” que moram em assentamentos do INCRA, vizinhos à RESEX. A floresta é o lócus de vida social do seringueiro e conforma a sua identidade: “[…] era da floresta que ele retirava seus produtos, sua alimentação, seu trabalho, seu remédio, mas também suas crenças, seus medos, suas fantasias e o sentido para um convívio humano/natural que em seus conflitos se complementavam [...]” (SILVA, 2006, p.46).

Nesse sentido, a floresta é o oposto ao espaço da cidade, “a rua” como dizem no interior da Reserva, que oprime o seringueiro, como explica o depoimento abaixo.

Ocimar: Eu não me dou na rua.

44

Para maior discussão a respeito deste tema ver em: REDFORD, K. H, 1991. The Ecologially Noble Savage. Cultural survival quarterly. USA. N 15.

Jeferson: Por quê?

Ocimar: Por causa do baruio que é demais. E aí a violência do povo também, né. Você tá quietinho e vem um de lá e mexe com a gente. Eu passo o dia por aqui, quando as veiz de tarde vou na minha espera [caça]. Aqui porque é mais frio. Aqui você planta, planta um milho, planta uma roça. Tudo é pra você cume, né. E quem mora dentro da rua se não tiver um emprego bom? Se não tiver o dinheiro não come. Tu vai comprar cebola se tiver o dinheiro, se não tiver você não compra. Tu paga água, tu paga luz, paga imposto de tudo que é lado. Não dá pra sobreviver na rua. […] Até nas fazendas, eu saio pra trabaiá nas fazenda, as veiz eu passo de ano. Tô aqui em casa, as veiz tá meio ruim de dinheiro, aí eu saio. Aí eu arrumo um emprego na fazenda, passo seis meis, um ano, mas quando tá chegando o verão bate aquela saudade da mata e eu ó...Não tem emprego que faça eu fica.45

A “rua” é um espaço de perturbação psíquica e moral, como Ocimar explica. Não é só o barulho. São todos os costumes do urbano que criam tais perturbações. Na cidade, o seringueiro tem sua imagem desvalorizada pelos moradores urbanos. Como explica Bourdieu (2006), essa situação se expressa em seu corpo e ações, posto que o leva adotar uma atitude introvertida que amplifica a vergonha e o sem-jeito produzidos pelas relações sociais marcadas pela extrema segregação. A floresta é o oposto. É o espaço da família e dos amigos, onde não há necessidade do dinheiro para sobreviver. Não se paga pela água e pela comida. Na “rua”, ao contrário, ele é vulnerável e sujeito à fome caso não consiga se assalariar. Na mata, ele “é liberto”. Não precisa vender sua força de trabalho para comprar mercadorias, pois dispõe de todos os instrumentos de produção. O mais importante deles é a floresta que lhe assegura o caráter independente de seu trabalho. “Ter em relação à mata um sentimento de posse definindo-a como local onde é livre” (ALLEGRETTI, 1983, P. 34) é o sentimento oposto àquela insatisfação de se sair da Reserva, quando é necessário buscar um trabalho nas fazendas ou na cidade, isto é, um assalariamento temporário que serve à reprodução da família que ficou na colocação. Nestes casos, terminado o serviço, o seringueiro volta o quanto antes para a família carregando consigo mercadorias e alguma soma em dinheiro que poderá ser utilizado na compra de um boi, na construção de uma nova casa ou na preparação de um casamento. Mas o fato de ter pouco dinheiro não significa necessariamente que exista uma pobreza generalizada entre os moradores da Reserva. Na verdade, a concepção de pobreza entre os seringueiros é muito diferente da concepção dos fazendeiros ou do cidadão urbano. Pobreza para estes é falta ou escassez de dinheiro. Para o seringueiro a pobreza é não ter o que comer, não ter bons pontos de caça na sua colocação ou não ter um bom roçado que garanta uma produção “rendoza”, além de criações que forneçam uma mesa farta para a família. Algo que pode ser visto quando se vai a uma casa e o visitante é acolhido por uma mesa abundante e farta. Como lembra Martins: “O que define a boa ou má vida, a boa ou má existência, é a fartura, se tem ou não se tem fartura, se tem ou não se tem o que comer, na medida em que as pessoas são capazes de dar conta de

uma grande parte de suas necessidades”. (MARTINS, 1990, p. 132).

Chayanov (1985) demonstrou que a análise da economia camponesa não pode ser apenas compreendida com categorias como “lucro”, “preço” e “salário”, pois elas são insuficientes para explicar a lógica da sua produção. A ênfase de Chayanov recai sobre o campesinato como grupo doméstico, a família como uma unidade de produção e consumo na sua reprodução social. Dessa forma, todas as relações sociais do campesinato estão subdivididas dentro destes pequenos grupos, cujas necessidades de subsistência são supridas por meio do trabalho praticado pelo próprio grupo familiar a partir do equilíbrio entre a satisfação familiar e da fadiga devida ao trabalho, a tyagostnost, termo russo utilizado pelo autor para designar a quantidade de trabalho subjetivamente avaliado pelo camponês. São as relações de trabalho no grupo familiar que oferecem a base para que Chayanov redefina as leis da economia camponesa, lhe conferindo uma natureza distinta da produção capitalista.

Nessa perspectiva, a produção camponesa é pautada sob a lógica da produção mercantil simples, expressa pela fórmula M-D-M, na qual não existe a preocupação em acumular capital, conforme destaca Oliveira (1990). O objetivo é a sobrevivência e a reprodução da família. Algo muito diferente do cálculo da reprodução ampliada do capital, expressa pela fórmula D-M-D', cujo objetivo é gerar mais capital, investir na produção e obter lucro.

Ainda segundo Chayanov, a relação entre equilíbrio e satisfação das necessidades é realizada mediante um “cálculo camponês” que repousa sobre determinantes demográficas existentes na estrutura familiar. Esse processo, entretanto, vai além de uma racionalidade simplesmente econômica, uma vez que também existe uma subjetividade culturalmente conformada, que fixa os limites entre o desejo e o consumo e as limitações do esforço para alcançá-lo. Por essa razão, na produção camponesa estão integrados valores culturais partilhados pela comunidade que orientam para objetivos como a estabilidade, solidariedade e manutenção dos recursos. Chaynov procurou enfatizar o aspecto econômico da racionalidade da produção camponesa, mas de certa forma chegou a fazer considerações sobre a importância da cultura e da tradição na estrutura da economia de subsistência camponesa:

Assim, a densidade da população e as formas de utilização tornam-se fatores extremamente importantes, que determina de maneira fundamental o sistema econômico. Outro fator social, menos importante, mas mesmo assim essencial, é o nível de vida tradicional, fixado pelos costumes e pelo hábito: é ele que determina a extensão das exigências do consumo e, a partir daí, o esforço do trabalho consentido (CHAYANOV, 2014, p. 115-116. Grifo nosso.).

Nas rodas de conversas das colocações, onde, reunido com os seus pares, o seringueiro

também sobre novas variedades de sementes e manivas; discute o preço da castanha ou da borracha pagos pela cooperativa ou pelos marreteiros; tira dúvidas sobre o melhor “pau” para construir um curral ou outra casa; e fala sobre animais avistados na mata. A floresta, portanto, é parte do seu “cálculo camponês”, isto é, se interpõe entre suas necessidades e o esforço que deverão despender para atendê-las.

Eu falei pro pessoal do ICMBio: rapaz, é o seguinte. Eu não quero desmatar minha mata, eu não quero derrubar minhas castanheira, não quero derrubar minha seringueira, eu não quero criar cem cabeça de gado. Eu quero minhas vinte cabecinha de gado, com a abertura que eu tenho aqui. Eu só quero zelar pra criar essas cabecinhas de gado. Porque eu preciso da seringa, da castanha, eu preciso de uma madeira pra fazer uma casa, pra fazer um curral, fazer uma cerca. Tudo isso eu preciso e se acabar com a mata de onde é que eu vou tirar?. Eu vou ficar dependendo do gado e não vai dar. Por que aí eu planto o meu milhozinho, planto meu arroz. Todo ano eu tenho, graças a Deus, pra comer. Feijão, arroz, banana, cana pra fazer o mel. Tudo eu tenho da minha lavoura pra comer. Aí eu vou na mata e mato uma paca, mato um veado, mato um porco. E se eu destruir a mata não tem nada disso mais. Acabou-se o veado, a paca, acabou-se tudo, né?” 46 O depoimento de Raimundo é revelador quanto a lógica da reprodução do camponês da floresta. O seringueiro não se refere à floresta como um santuário ecológico. Tampouco se pode atribuir à sua lógica uma busca pela acumulação de capital. Do contrário, abriria mais pastagens e obteria mais cabeças de gado o que, à primeira vista, seria mais vantajoso e proporcionaria maior renda em dinheiro em um primeiro momento. Mas o resultado inexorável dessa escolha seria a dependência quase exclusiva desse tipo de criação e da compra de mercadorias na “rua”, mediante o sacrifício do roçado, da caça, do extrativismo, da recuperação da capoeira, do roçado e do seu modo de vida. A questão é: o seringueiro tem o pleno domínio de sua colocação. Em seu cálculo Sabe que tudo está interligado e que uma intervenção abrupta sobre um determinado componente da “cadeia florestal” poderá ter efeitos desastrosos sobre o conjunto da sua reprodução.

A mata, que é fonte de terreiros para roçados anuais, é também território de caça e de coleta com seu estoque bem conhecido e explorado pelos seringueiros que, ao longo dos caminhos, estradas e varadores, conhecem cada madeira, cada oco de abelha, cada cacho de patuá ou de açaí, cada pau de envira, cada pau de âmago, cada palheira, e cada vareda de paca e de outros animais. […] Os animais selvagens, por sua vez, alimentam-se dos roçados de mandioca e das capoeiras. […] Observamos assim que o igarapé, o terreiro, o campo, os roçados, as capoeiras e a mata se interligam em cadeias de delicado equilíbrio. Não é fácil mexer em um hábito dos seringueiros sem interferir em outros. (ALMEIDA, 2012, p 132).

Evidente que na sociedade capitalista, o camponês possui algum tipo de vínculo e envolvimento com as tramas de mercado e a circulação do dinheiro. A partir disso é possível

entender a razão pela qual os seringueiros mantêm uma diversificação em sua produção. A diversificação de produtos é realizada pela necessidade da manutenção da família por meio da produção dos alimentos que serão consumidos ou comercializados, funcionando assim como uma saída para os momentos de crise e impedindo que se tornem vulneráveis perante o capital. Com a decadência da produção da borracha, ele procurou criar bois, investir mais tempo na agricultura ou na extração de algum produto da floresta como a castanha. Mas tudo isso pressupõe manter a “floresta em pé” que, em última instância, vai definir a sua condição de trabalhador independente, garantindo a reprodução de sua força de trabalho.

Há, portanto, uma forma holística de ver a relação com a floresta, que pode ser inferido do depoimento de Raimundo. Essa forma camponesa de se relacionar com a floresta é muitas vezes incompreensível para técnicos, ambientalistas, cientistas, jornalistas e funcionários do Estado. Um exemplo é explicado Osmarino Amâncio, a respeito da relação por vezes conflituosos e difícil entre o movimento seringueiros com o movimento ambientalista urbano na época dos empates:

Os ambientalistas que na época chegaram se chamavam ecologistas. Ninguém sabia o que isso significava. Quando ouvi falar de ecologia pela primeira vez, achei que era um doce... Então você podia ouvir 'defender o meio ambiente', e eu falei com o Chico Mendes e disse: 'nós não estamos defendendo só o meio ambiente, estamos defendendo tudo, queremos defender o ambiente inteiro'. O interesse deles era um, o nosso era outro. Eles defendiam o equilíbrio ambiental, a gente defendia a sobrevivência da população. Mas nós pensamos que se eles defendessem nossa floresta, poderíamos nos aliar (AMÂNCIO, 1998, p. 67). Dentro dos seringais, a palavra “meia” significa metade, sendo comumente utilizada para designar sistemas de meação: “castanha de meia”, “roça de meia” etc. Na luta pela criação das Reservas Extrativistas, o movimento seringueiro não estava disposto a defender apenas “metade do ambiente”, como explica o depoimento acima, pois não havia o compromisso exclusivo em defender a preservação per si em nome de uma ideologia conservacionista totalmente estranha às suas práticas. Procurava-se defender a totalidade, os vínculos integrais e interdependentes entre a floresta com o processo da reprodução da vida de uma autonomia camponesa emergente. Assim, desde que defendessem a nossa floresta, era absolutamente justo uma aliança com o movimento ecologista.

Figura 12 – extração de água de um cipó na mata.

Foto: Jeferson Choma, em 07/09/2017.

Figura 13 – Sebastião Olegário mostrando o macucu, planta arbustiva que tem suas folhas apreciadas por aqueles que realizam longas caminhadas pela mata.