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1.0 O REFERENCIAL TEÓRICO DA PESQUISA

2. DA FORMAÇÃO DO CAMPESINATO DA FLORESTA À CRIAÇÃO DAS RESERVAS

2.2. Formação do campesinato da floresta

O sistema de peonagem e aviamento que marcaram o auge da economia gomífera, impedia que o seringueiro desviasse seu esforço para outro fim senão a extração do látex. Cultivar roçados era proibido pelos patrões, pois isso poderia interferir no rígido sistema de produção do barracão, permitindo que o seringueiro pudesse adquirir mais autonomia.

Mas, as crises da produção acabaram por transformar o interior dos seringais através de uma redefinição do trabalho dentro do sistema extrativista. Os recursos voltados exclusivamente para a produção de borracha foram revertidos para outras atividades, especialmente para a agricultura. Essa forma se caracterizou pelo trabalho familiar, a produção do roçado de subsistência que era complementada pela extração da castanha, do látex, madeira, entre outros produtos da floresta. Otávio Ianni (1978) aponta que esse declínio da borracha permitiu a formação da produção camponesa surgisse por toda Amazônia. Em sua pesquisa sobre os seringueiros do Alto Juruá, no Acre, Mauro Barbosa de Almeida (1993) defende a hipótese de que, a crise da borracha e do sistema de aviamento, a partir de 1910, formou um “campesinato da floresta” que, ainda atados a dominação dos patrões, cultivavam seus roçados e praticavam a caça de animais. Entretanto, esse processo foi desigual, mesmo no Acre. Durante nossa pesquisa de campo foram entrevistados antigos seringueiros que trabalhavam em seringais dominados pelos patrões no vale do Rio Iaco, localizado no limite norte da RESEX Chico Mendes. Em suas memórias, há relatos de que nos tempos do patrão, ainda na década de 1980, era proibido o cultivo de roçados e a criação de animais, e que as primeiras lavouras foram apenas cultivadas após a criação da Reserva.

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Na década de 1950, entretanto, o governo de Juscelino Kubitschek revogou o monopólio de compra da borracha exercido pelo Banco de Crédito da Amazônia. Anos mais tarde, sob pressão dos setores ligados ao extrativismo, o monopólio de compra e venda foi restabelecido pelo governo Jânio Quadros, que também aumenta a taxação em 10% da borracha importada. Há, neste período, um intricado jogo de pressão e contrapressão exercido pelos seringalistas. A criação da SUDHEVEA procurava minimizar os impactos da medida e garantiram uma sobrevida ao extrativismo gomífero, mas não impediram a inevitável ruína dos velhos seringais (COSTA SOBRINHO, 1992).

O patrão não permitia que ninguém punhasse roçado por que empaiava de cortar seringa. Então o freguês tinha que cortar seringa pra fazer borracha porque senão não tinha aviação e aí era expulso que, mesmo que vendesse um princípio de borracha, era expulso da colocação. Eles chegavam buscavam a polícia expulsava o cara, as veiz muitos batia. Não queria que o cara punhasse roçado. Tinha que cortar seringa pra fazê borracha14.

A pesquisa realizada por Teixeira (2009), na segunda metade da década de 1970, sobre as relações de trabalho nos seringais de Rondônia, identificou diferentes formas de exploração existentes sob a égide do sistema de aviamento. Ele observou a persistência do chamado “regime de toco”, uma forma mais extremada de sujeição do trabalho no qual o seringueiro se encontrava subordinado ao patrão, sendo proibido de vender a sua produção para qualquer intermediário. Nele, o seringalista tem o controle rígido sobre a produção da borracha e da castanha, e sua presença é determinante para as iniciativas da maior parte dos moradores do seringal. Casamentos, o abatimento de alguma caça, cerimônias religiosas ou extração de madeiras de lei, nada se fazia sem sua autorização do patrão.

Já o arrendamento de estradas de borracha, que se tornou comum no período posterior à crise da borracha, o seringueiro trabalhava por conta própria, plantava seu roçado, caçava na floresta, mas deveria pagar uma renda pelo uso das estradas de seringa ao patrão. Em geral, o pagamento dessa renda era realizado em produto, em uma determinada porcentagem da borracha que ele extraia da mata. Apesar da maior autonomia, o pagamento da renda mantinha os seus elos de subordinação ao barracão, uma vez que eram ainda forçados a trocar sua borracha ou outros produtos agrícolas por mercadorias e instrumentos de trabalho exclusivamente no barracão do patrão, considerado proprietário do seringal.

De todo modo, para sobreviver às crises da borracha, os patrões dos seringais tiveram que diversificar a atividade extrativista, explorando além da borracha, peles, madeiras e produtos agrícolas. A permissão para o cultivo dos roçados dada aos seringueiros também diminuiu os custos da produção da extração do látex, uma vez que a maioria dos mantimentos eram agora produzidos no próprio seringal, e não mais comprados nas casas aviadoras das cidades. Dessa maneira, o declínio da economia da borracha transformou o seringueiro de um trabalhador especializado na extração do látex em um camponês que produzia para sua própria subsistência e vendia seus excedentes ao barracão do seringalista.

Em suas respectivas colocações, os seringueiros começaram a cultivar roçados de subsistência, criar animais domésticos e plantar algumas espécies de árvores frutíferas (….), juntaram-se a mulheres índias, fundaram famílias e prosperaram até hoje, e incorporaram novas técnicas e conhecimentos que lhes permitiram um

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aproveitamento mais diversificado das riquezas da floresta. Em suma, deixaram de ser seringueiros especializados e se tornaram camponeses da floresta (ALMEIDA et al., 2002, p. 120).

Todavia, mesmo com a crise gomífera atingindo toda a Amazônia, o Acre continuou sendo o único estado da Amazônia que manteve sua economia baseada no extrativismo da borracha até a década de 1970. Conforme a Quadro 2, a borracha chegou a ser responsável por 59% da economia em 1959, em uma época em que muitos seringais já haviam entrado em ruína em outros estados da Região Norte. Como vimos, essa predominância da extração do látex na economia está relacionada às pressões de grupos interessados na manutenção da política protecionista do extrativismo gomífero. Em 1979, porém, o endividamento e a crise dos seringalistas junto ao Banco da Amazônia (BASA) arruinaram os velhos seringais. Como resultado a participação da borracha na economia do Acre caiu para 29%. A contraface deste processo foi a gradativa autonomia conquistada pelos seringueiros na condição de camponeses. Muitos deles procuraram comercializar o seu produto fora dos domínios dos patrões arruinados, vendendo para os marreteiros e regatões, os atravessadores que circulavam pelos seringais vendendo e comprando mercadorias. Paradoxalmente, em um primeiro momento, a abertura das primeiras rodovias no estado facilitaram que os seringueiros pudessem sair da esfera de dominação dos patrões e realizar transações comerciais com marreteiros e atravessadores, enquanto o seringalista ficava sem a borracha e impossibilitado de saldar suas dívidas com o BASA.

Realizaram, dessa forma, ainda que por um curto período de tempo, o projeto antigo de viver por conta própria na floresta e ser dono de sua colocação, alimentando desde a Revolução Acreana e Segunda Guerra [...]. Alguns anos depois, em 1976, foi essa condição de autonomia que permitiu o início da resistência às expulsões e que se constituiu no elemento estruturador das propostas que os seringueiros apresentaram, como solução para os conflitos, na década de 80 [...] (ALLEGRETTI, 2002, p. 206).

Apesar da maior autonomia, os patrões e o barracão ainda ocupavam, ainda que fragilizado, o centro de poder dos seringais. Nas décadas de 1960 e 1970, o regime militar implementou uma nova estratégia sobre a ocupação da Amazônia. Isso foi o fim da linha para muitos dos antigos seringalistas, ao mesmo tempo em que significou uma nova ameaça de realização plena da autonomia almejada pelos seringueiros, como veremos a seguir.

Quadro 2- Participação da borracha no produto interno do Acre.

ANO PARTICIPAÇÃO DA BORRACHA (%)

1949 37%

1959 59%

1979 29,4 %

Fonte Allegretti (2002)