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Composição da renda na RECM em 2009 (Fonte: ACRE, 2010)

4. OS SABERES DO CAMPONÊS DA FLORESTA

4.5. O cultivo da macaxeira

A mandioca (Manihot esculenta) – macaxeira, legume ou “roça”, como é chamada pelos seringueiros – é o principal cultivo realizado nas colocações em suas mais diversas variedades. Seu principal destino é a fabricação da farinha, que é produzida artesanalmente nas “farinhadas”. O plantio da macaxeira também envolve homens e mulheres e ocorre no início das primeiras chuvas, dias após o plantio do milho realizado em setembro.

O cultivo de mandioca nas Américas remonta 5.000 anos antes da chegada dos europeus, sua domesticação e as inúmeras variedades estão relacionas à civilizações ancestrais que ocupavam a Amazônia (SAUER, 1987). O sucesso da mandioca é atribuído ao fato de a planta crescer facilmente nos solos dos trópicos. Por ser pobre em proteínas, não retira o nitrogênio do solo na mesma proporção de outras plantas (SCHERY, 1947 apud RIBEIRO, 1995. p. 136). Ademais, o tubérculo também pode permanecer estocado na própria terra por longos períodos, o que garante a segurança alimentar dos agricultores também por longos períodos. Dela se obtêm vários produtos para alimentação: macaxeiras (cozidas ou fritas), goma, tapioca, tacacá etc. Aproveita-se também a maniva para replante que são trocadas entre as famílias de todos os seringais.

A lua exerce grande influência no plantio das lavouras dos seringueiros e marcam o tempo de cada cultivo. As manivas, por exemplo, são plantadas de preferência na lua nova de setembro. O milho também é plantado na lua nova. A cana-de-açúcar é plantada na lua crescente de outubro. De acordo com Diegues (2000, p.56), a temporalidade das sociedades camponesas e indígenas é marcada pela representação simbólica do cíclico, onde tudo nasce, cresce e renasce, o que expressa o estreito vínculo com os ciclos naturais que comandam um complexo calendário de trabalho e de rituais. Há o tempo para a coivara, o roçado, da extração da castanha, do açaí, da borracha, entre

outros recursos da floresta100. A mandioca é plantada em covas dispostas em carreiras separadas por um espaço maior medido pelo cabo da enxada. Essa semeadura mediante enxada ou cavouco evita a perda de nutrientes e sais minerais que ocorreriam caso se fizesse uso de arados para revolver a terra(MENGGERS, 1977 apud RIBEIRO, 1995, p. 250). Entre duas fileiras da roça da macaxeira, à distância de um passo, está a praça do milho, também plantado em carreira. Uma observação atenta sobre o conjunto do roçado evidencia que não há apenas dois cultivos consorciados. Além do milho verde e da mandioca, a área também abriga outros cultivos, como o mamão, a melancia, a banana, palmeiras como jarina, murmuru. A sombra e a matéria orgânica das folhas destes cultivos oferecem nutrientes e proteção ao solo e ao roçado. Todas essas práticas exercidas pelos seringueiros trazem efeitos positivos ao minimizar o tempo de exposição à insolação e a forte pluviosidade tropical prevenindo da lixiviação e erosão.

A unidade de medida da área plantada por macaxeira é a “mil covas”. Aproximadamente 1 hectare abriga entre 5 a 6 mil covas, embora existam agricultores que plantem até 8 ou 10 mil covas, o que não é recomendado pelos mais experientes.

Tem gente que pranta 8, outros até 10 mil covas [por hectare], mas os pés é juntinho. A roça não tem competência de presta por que feicha, abafa. Abafou o legume não presta. Essa ideia eu tirei é do meu pai. Ele nunca prantou os legume tudo juntinho. Sempre prantava as carreirinha tudo média pra que não abafasse um o outro. Se abafa não dá que preste. Abafá ela não carrega e não dá muita batata, dá bem pouquinha, dá fina. Outros pés da duas ou três e aí não dá. Os pês sempre as veiz é oito ou deiz batata. Tem até de vinte batata. E pranta espaçoso tem competência de dá um legume bom, viçoso e muito carregado mesmo.101

A falta de cobertura do solo nos roçados poderia proporcionar alta infestação de plantas daninhas, especialmente durante o seu crescimento inicial (SOUZA, L. S.; SILVA, J.; SOUZA, L. D., 2009). Mas as práticas e os saberes revelam uma solução original para esses problemas. Se a queima, em um primeiro momento, fertiliza e controla as pragas, a realização de plantio consorciado procura oferecer à biomassa vegetal, nutrientes indispensáveis aos cultivos e ao combate das plantas daninhas que “abafa o mato”, como diz Sebastião Olegário. Naturalmente, isso não dispensa o trabalho da carpina para retirar as plantas daninhas.

Uma área de roça pode fornecer alimentos para as famílias por quase 10 anos quando bem manejada por um agricultor experiente. Nas colocações, normalmente, cada família tem entre dois até três roçados ocupados permanentemente por macaxeiras. A primeira seria a “roça nova”,

100A lua marca essa temporalidade, assim como espocar das sementes de seringueira na mata, anunciando novos pontos

de caça; o canto do sapo canoeiro (Hyla boans) avisa que o verão está próximo; o sapo-verde (Phyllomedusa bicolor, Phyllomedusa tarsius e Phyllomedusa vaillanti) anuncia o início do inverno ou quando canta no verão, alguma chuva que virá no dia seguinte.

plantada no final do verão e que começará a produzir em poucos meses; a segunda roça é a que foi plantada no ano anterior e que forneceu e continuará a fornecer macaxeira à família; a terceira roça é a mais antiga, cultivada três anos antes e que, embora próxima do seu esgotamento, ainda pode estar provendo os agricultores de “legumes”.

O plantio de cana-de-açúcar, palmeiras e bananas é amplamente utilizado e pode durar de 5 a 6 anos, suas folhas são deixadas para fertilizar o solo e protegê-lo do sol e das chuvas. Quando a “terra cansa” com o esgotamento dos nutrientes do solo, o roçado é deixado para ser encoberto pela capoeira. O capim só é plantado em áreas mais próximas do terreiro da casa quando há interesse de criar algumas cabeças de gado.

Os seringueiros possuem inúmeros cultivares de mandioca. Essa diversidade tem origem na ação milenar das populações indígenas (RIBERIRO, 1995) que domesticaram o tubérculo e repassaram este saber aos caboclos da Amazônia e seringueiros. Conforme sugere Emperaire (2002), em estudos com comunidades caboclas no Alto Rio Negro, a etnodiversidade e a variabilidade genética das roças de macaxeira na Amazônia é resultado do manejo e de intercâmbios entre os produtores ao realizar trocas de sementes.

Durante a pesquisa de campo foi possível constatar o mesmo processo de intensa troca de manivas que são obtidas por meio de redes de parentescos e compadrios que se estendem dentro e fora da Reserva Extrativista.

Quando não tem a maniva num lugar. Aqui tem a [colocação] Samauma, dá uma hora e meia daqui lá. Antão, você vai buscar nas costas a maniva da roça pra plantar. Se já tem você pranta. E a maniva só presta pra prantar se ela tiver um ano. Se ela tiver dois anos, não prante porque a maniva não presta.102

Muitas manivas são obtidas em regiões distantes, mesmo em outros países como a Bolívia. Outras em roçados cultivados pelos irmãos, cunhados ou compadres. Este sistema de trocas de cultivares garante que algumas variedades que há muito não estavam mais sendo cultivadas sejam novamente introduzidas nos roçados, conforme a Figura 36.

Nas microrregiões do Baixo e Alto Acre predominam as seguintes variedades: Paxiúba, Cabocla, Varejão, Chapéu de Sol, Aruari, Araçá, Chica de coca, Amarela, Manteiguinha, Cruvela, Olho d'água, Sutinga, Zigue-zag, Pão, Panati e Caipora (SIVIERO; SILVA FLORES, 2016. p. 231- 240).Contudo, com a ajuda dos seringueiros, outras variedades foram identificadas nos Seringais pesquisados, conforme apresentamos no Quadro 7.

A Casa de Farinha é o destino da maior parte da mandioca cultivada. Após a colheita dos tubérculos, os membros da família se mantêm produzindo farinha quase que diariamente. É durante a “farinhada”, o processo de preparação da farinha da mandioca, que os integrantes da família,

vizinhos e demais membros da comunidade se reúnem em um evento de integração social, e mostra o quanto o processo tem um importante valor simbólico. A casa de farinha é local de encontros e conversas, trocas de informações sobre como e onde “botar” o novo roçado, o melhor dia e a melhor lua para se plantar determinado cultivo, como obter melhores manivas através de parentes e amigos. Nem toda colocação tem uma casa de farinha, mas não existe seringal em que não existam muitas delas. A família seringueira que não possui uma casa de farinha depende da utilização da casa de vizinhos ou parentes.

Quadro 8– Variedade de mandiocas encontradas em pesquisa de campo.

TIPO NOME DADO PELOS SERINGUEIROS

Brava Paxiúba; Sutinga; Samaúma; Chica Decoca.

Mansa Caboquina; Talagato (ou Amazonas); Varejão;

Amarelinha; Moça Branca; Gira Sol; Peruana.

A fabricação da farinha é feita artesanalmente, na propriedade, com a utilização de mão de obra familiar. Nesse processo, a mandioca é arrancada com cuidado da terra para evitar que partes da planta possam se cindir. Depois, as batatas são carregadas em paneiros (cestos) ou sacos até a casa de farinha ou às margens de um igarapé para serem descascadas e lavadas, como ilustram as Figura 37 e 38. O passo seguinte é a “ceva”. As mandiocas são colocadas na caixa de madeira e são raladas (cevadas, com explicam os seringueiros) em um cilindro com dentes de metal que funciona com a ajuda de um pequeno motor a gasolina com 5.6 hp. A “massa” do tubérculo é então deixada em uma bacia com água, e com a ajuda de um pano ela é espremida para a retirada da goma que ficará, após algumas horas, sedimentada no fundo da bacia e será utilizada para se fazer tapioca e mingau. Em seguida, joga-se a goma na prensa para retirar a água da mandioca. Nesse processo, um saco de pano pode servir como invólucro para a massa da mandioca que ficará sob pressão por pelo menos uma noite. Depois, retira-se a massa da prensa e a deposita em uma peneira para eliminar a “crueira”, resíduo contendo impurezas que podem ser aproveitados na alimentação dos animais. A etapa final do processo é a torração. A farinha peneirada é torrada em uma chapa de ferro aquecida por um forno de barro. No início utiliza-se uma pá, que tem o formato de um facão e pode ser manejado com uma mão, para escaldar a massa no forno. Posteriormente a pá é substituída pelo rodo. Essa etapa é bem delicada, pois a qualidade da farinha vai depender da precisão realizada no trabalho de escaldamento. Quando está seca, a farinha é armazenada dentro de um saco e encaminhada para as casas. Algumas etapas do processo de fabrico da farinha pode ser visto na

Figura 38.

A maior parte da produção da farinha é consumida pela própria família. Mas pode ser vendida ou trocada por outros produtos dentro da própria comunidade. O que é vendido na cidade é a sobra, quando há necessidade de se obter alguma renda monetária para comprar “as mercadorias”.

Sempre a gente vende é aqui dentro da Reserva. As veiz a gente pranta um feijão...bem dizer é quase pra dispensa porque não tem saída. Nóis não tem um carro de linha pra fazer a linha. A gente não tem pra botar nas costas de um combói pra levar, também não tem, a coisa é difícil. E o transporte os caras querem um absurdo do frete.103

As grandes distâncias, o isolamento na mata e os preços altos do frete desencorajam os seringueiros a vender seus produtos “na rua”. No entanto, o depoimento a seguir também mostra que a venda dos produtos do roçado na cidade significa cair em uma rede exploração:

Quando alguém planta, planta pouquinho. Então, muitas das veiz a gente consegue vender lá mesmo. Quem faz mel, açúcar ou rapadura consegue vender tudo lá dentro mesmo. Só que tem gente que vem pra rua [cidade] pra vender bem mais ligeiro. Eles [os comerciantes da cidade] sempre compram pela metade [do preço que vão vender]. Aí muitas vezes a gente se acostuma a vender lá [na Reserva] pela metade do preço, mas não tem aquele trabalho de trazer.104

Aqui se verifica o processo de drenagem da renda da terra gerada pelo trabalho familiar das unidades camponesas, a qual está contida nos produtos que os seringueiros enviam para serem comercializados na cidade. A análise mais detalhada deste processo está contida na parte final deste capítulo.

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Entrevista realizada com Sebastião Olegário em 14 de setembro de 2017.

Figura 35– O plantino no roçado novo de Sebastião Olegário (esquerda); e a roça de macaxeira plantada no ano anterior (direita).

Foto: Jeferson Choma, em 14/09/2017.

Figura 36 – Plantio na maniva “peruana” que havia desaparecido da área pesquisada, mas que foi reintroduzida por meio das trocas realizadas entre as famílias.

Figura 37- Raimundo Maia e seu neto cortando mandioca.

Foto: Jeferson Choma, em 21/09/2017.

Figura 38 – Casa de farinha. O caititú para moer a mandioca (acima); e a secagem da farinha (abaixo).