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Com vista a melhor compreendermos o advento do empreendedorismo e a construção sócio simbólica do seu conceito nas nossas sociedades contemporâneas, é importante procurarmos partir de um ponto de vista analítico que permita objetivar uma melhor compreensão das dinâmicas intrínsecas à emergência, especialmente ao longo das últimas décadas, do empreendedorismo como campo de investigação e de ação humana. Nesse sentido, importará, numa primeira fase, tentar caracterizar o processo de construção dos significados pessoais, sociais e culturais atualmente conotados com o empreendedorismo, integrando esse processo de construção na conceptualização das dinâmicas sociais e culturais presentemente dominantes na estruturação do pensamento contemporâneo sobre a própria ação humana, bem como das implicações, ao nível da construção de significados sociais, daí decorrente.

De acordo com Amorim (2013), o pensamento contemporâneo tem sido amplamente inspirado, nos tempos que correm, por três ideias persistentes: o reducionismo social, o corocentrismo e o cronocentrismo.

Em relação à primeira ideia, o reducionismo social, vários autores têm procurado, ao longo dos últimos anos, capturar numa só fórmula ou significante, a “essência da hipercomplexa malha humana”, dos tempos que vivemos, da condição que criamos ou a que estamos sujeitos (Amorim, Azevedo & Coimbra, 2011, p. 211). De acordo com Amorim (2013):

existem numerosos exemplos desta tentativa de catalogar os tempos atuais: “a sociedade dos indivíduos”, de Norbert Elias (1939/2004), “a condição pós-moderna”, de Jean-François Lyotard (1979/1989), “a era do vazio”, de Gilles Lipovetsky (1989), a “sociedade do risco”, de Ulrich Beck (1992), as “políticas da incerteza”, de Peter Marris (1996), a “dessocialização”, de Alain Touraine (1997), a “modernidade líquida”, de Zygmunt Bauman (2000), “uma sociedade à deriva”, de Cornelius Castoriadis (2007), “a sociedade invisível”, de Daniel Innerarity (2009) (p. 1).

No que concerne ao corocentrismo, tradicionalmente esta perspetiva traduz-se na consciencialização de que todo o espaço tem um centro. Traduzindo esta dimensão nos autores dos tempos de hoje, constatamos a existência de vários que “defendem a importância, ou mesmo a superioridade, da sua cultura face às demais, sendo disso exemplo a consciência do “Ocidente e o Resto”, de Roger Scruton (2002)” (Amorim, 2013, p. 1).

Já a partir da perspetiva cronocêntrica, podemos considerar, segundo um ponto de vista positivo, que somos “privilegiados da História” (Amorim et al., 2011, p. 211), e que o nosso

tempo é o tempo da mudança, da inovação, da novidade. “Ou podemos crer, ao contrário, mas também cronocentricamente, que já mudámos, supostamente, tudo quanto havia para mudar, logo, atingimos o fim da História, como defende Francis Fukuyama (1992)” (Amorim, 2013, p. 2).

A conjugação destas três conceptualizações do pensamento contemporâneo ajuda-nos a compreender a aparente constatação de que vivemos, nestas primeiras décadas do século XXI, um grande movimento de turbulência, com a inerente constatação de que o futuro deixou de ser concebido de forma linear, sendo, ao invés, cada vez mais visíveis sinais e sintomas que nos conduzem a concebe-lo de forma profundamente dilemática (Ruivo & Mesquita, 2010).

Como nos apresenta Carneiro (2001, p. 23), “este é o tempo do novo. Nova cultura, nova economia, novo conhecimento, novos media, novas competências, novas políticas, nova ciência – de uma assentada, o mundo estável em que pachorrentamente vivíamos ‘virou’ velho.” No campo da educação, também estes sinais são visíveis e impactantes, com a consciência de que “vivemos, pois, num tempo de profunda mudança, na sociedade e na escola, que corresponde a um período complexamente contraditório em que se vivem preocupantes processos de desfasamento entre as possibilidades abertas pelo formidável progresso científico e tecnológico e pela emergência da revolução digital que dia-a-dia se consuma e se acelera, e o desajustado e até desatualizado conjunto de respostas dadas a diversos níveis, designadamente a nível educativo” (Ruivo & Mesquita, 2010, p. 203).

No fundo, o conceito de mudança domina o padrão de vida atual e requer que o indivíduo reoriente as suas funções ao longo do seu ciclo vital, sendo importante refletir acerca do papel que os sistemas educativos terão ao nível da preparação dos indivíduos para a previsibilidade de preocupações com que se irão confrontar nas próximas décadas e, de entre as quais se destacam, segundo a visão de Ruivo e Mesquita (2010), a preocupação com a mudança permanente (tendo consciência dessa mudança em todos os domínios, entre os quais o domínio cultural, social, económico ou técnico), com a aceitação dessa mudança (o que requer plasticidade e uma visão antecipatória do futuro, bem como o desejo de continuar a aprender), com a adaptação para a mudança (adaptação que se deseja voluntária e consciente), com a reconversão como processo de sobrevivência profissional e com a aprendizagem permanente, formal e informal, ao longo da vida.

É neste contexto, no qual se verifica ainda a um fenómeno de globalização das economias e de definição de políticas sociais e económicas constrangidas pelos efeitos decorrentes dos processos de internacionalização do capital financeiro e de liberalização de mercados, que assistimos também, a um cada vez maior apelo às dinâmicas de empreendedorismo (Aldrich & Yang, 2014; Aldrich, 2015; S. Heinonen & Ruotsalainen, 2012).

Nos dias que correm, o empreendedorismo é visto como um elemento essencial para o progresso económico (Van Praag & Versloot, 2007), revelando a sua fundamental relevância para os decisores políticos e económicos essencialmente em três grandes formas de configuração diferenciadas: a) ao nível da possibilidade de identificação, avaliação e exploração de oportunidades de negócio; b) na criação de novas empresas e negócios e/ou na renovação dos já existentes; e c) na alavancagem da economia, proporcionada, através da valorização da inovação, das competências, da criação de autoemprego e emprego para outros, afetando e, em geral, melhorando, o estado geral, económico e social, de uma sociedade (Cuervo, Ribeiro & Roig, 2007).

Tendo vindo a ser criada socialmente a noção de que o empreendedorismo é um fenómeno que afeta todas as organizações, independentemente do seu tamanho ou idade, de serem públicas ou privadas, e dos seus objetivos específicos, constata-se que a sua importância para a economia e para as sociedades é refletida no crescimento visível e consubstanciado que a temática tem vindo a conhecer no âmbito da literatura académica, mas também ao nível da comunicação social e dos decisores políticos (Ogbor, 2000).

O facto de o conceito de empreendedorismo estar tão presente nas vidas quotidianas das sociedades modernas poderia fazer supor estarmos na presença de um conceito universal e comummente aceite, com significados pessoais e sociais claramente congruentes e perfeitamente assumidos. Contudo, uma análise mais aprofundada relativamente à investigação e literatura científica relativamente ao empreendedorismo rapidamente nos demonstram estarmos ainda na presença de um conceito ainda em construção e que podemos classificar de emergente. Aliás, apesar de não ser um fenómeno novo, a tentativa de estudo do empreendedorismo de uma forma mais sistemática tem assumido uma especial preponderância nas últimas três décadas (Kuratko et al., 2015).

A inexistência de uma noção universal e comummente aceite de empreendedorismo relaciona- se com a própria história de evolução do conceito, que tem conduzido ao seu extravasamento para novas áreas para além da sua área tradicional de emergência, a económica. De acordo com a visão de Dees (2001), a palavra empreendedorismo teve origem na economia francesa e surgiu por volta do século XVIII, sendo usada pela primeira vez em 1725, pelo economista franco-irlandês Richard Cantillon1. Este economista defendia que o empreendedor era alguém que empreende um projeto ou uma atividade significativa e que envolveria algum risco especulativo, sendo empreendedores os indivíduos mais arrojados que estimulavam o progresso económico ao descobrirem novas e melhores formas de fazerem as coisas. Mais tarde, o

1 O termo “empreendedor” surgiu pela primeira vez na obra de Richard Cantillon denominada por “Essai

Sur La Nature Du Commerce En Général”. Esta obra foi escrita em 1730, tendo sido publicada em França em 1755. Posteriormente foi traduzida para o inglês por Henry Higgs em 1932.

conceito começou a aparecer associado aos indivíduos que estimulavam o crescimento económico por encontrarem alternativas mais eficazes de desenvolverem as suas atividades. No âmbito desta associação, considera-se que um dos primeiros autores de referência nesta área é Jean-Baptiste Say, o qual usou a palavra “empreendedor”, no início do século XIX, para identificar o indivíduo que transfere recursos económicos de um setor de produtividade baixa para um setor de produtividade mais elevado. Say, além da sua enorme contribuição para o desenvolvimento da teoria económica, enfatizou a importância do empreendedor para o bom funcionamento do sistema económico (Dantas, 2008). Para este autor, os empreendedores criam valor, movimentando recursos de uma área de menor produtividade para uma área de maior produtividade.

No século XIX, Mill (1848) na sua obra “Principles of Political Economy”, trouxe à noção a componente do risco e incerteza, mais tarde sublinhada por Knight (1921), entre outros autores (Baptista, Teixeira & Portela, 2008).

No entanto, o autor e economista, que mais foi associado ao desenvolvimento da palavra empreendedorismo e, ao seu significado, foi Joseph Schumpeter. No início do século XX, foi o primeiro a ter um conceito claro do termo empreendedorismo. Schumpeter (1939) apontou como aspeto distintivo o facto de os empreendedores serem inovadores por introduzirem novos métodos de produção, novos produtos, por abrirem novos mercados, pela aquisição de uma nova fonte de oferta de materiais ou até a criação de uma nova empresa. Em 1942, Schumpeter considera a ação do empreendedor como uma «destruição criativa». Neste seguimento, demonstrou que o empreendedor introduzindo inovação e tecnologia, contribuía para que as invenções fossem consideradas obsoletas. Schumpeter (1942) acreditava que esta destruição criativa causaria progresso contínuo e faria aumentar os níveis de vida da população.

Ao longo de todo o século XX e já agora neste início do século XXI, vários têm sido os autores que, segundo diferentes abordagens, têm procurado definir e caracterizar o empreendedorismo e a ação do empreendedor, criando uma grande diversidade de definições (Tabela 1).

Tabela 1

Diferentes definições de empreendedorismo presentes na literatura

Autor Proposta de definição

Drucker (1986) Ato de inovação que dotar os recursos existentes com uma nova capacidade de produção de riqueza.

Stevenson (1985)

É um processo através do qual os indivíduos procuram e exploram oportunidades, independentemente dos recursos que atualmente controlam.

Gartner (1989) É a criação de organizações, o processo através do qual novas organizações ganham existência.

Timmons (1997) É uma forma de pensar, entender e agir, obcecada pela oportunidade, holística na abordagem e equilibrada em termos de liderança. Stevenson e Jarillo (1990)

É um processo pelo qual indivíduos – quer por si próprios quer no seio de organizações – perseguem oportunidades sem considerar os recursos que atualmente controlam.

Venkataraman (1997); Shane e Venkataraman (2000); Shane (2012)

É uma atividade que envolve a descoberta, a avaliação e a exploração de oportunidades para introduzir novos bens e serviços, modos de organizar mercados, processos e materiais, através da organização de esforços que previamente não existiam.

Morris (1998)

É o processo através do qual os indivíduos ou equipas criam valor congregando pacotes únicos de recursos para explorar oportunidades na envolvente. Pode ocorrer em qualquer tipo de organização e com resultados diversos – empresas, produtos, processos, mercados e tecnologias.

Wiklund (1998)

É a capacidade de aproveitar a oportunidade de criação de novas combinações de recursos em formas que têm impacto sobre o mercado.

Hisrisch & Peters (1989)

É o processo de criar algo diferente, com valor, dedicando o tempo e esforço necessários, assumindo os inerentes riscos financeiros, psicológicos e sociais de acompanhamento e recebendo as recompensas resultantes de satisfação económica e pessoal.

Vestergaard, et al. (2012) É o processo de agir sobre as oportunidades e ideias e de transformá-las em valor para os outros. O valor que é criado pode ser financeiro, cultural ou social.

Tal como é possível constatar, através da análise das definições anteriores, a objetivação de uma definição única e comummente aceite relativamente ao conceito de empreendedorismo apresenta-se como uma tarefa hercúlea, uma vez que cada autor, em função do seu próprio prisma paradigmático, apresenta-nos uma visão que aparenta contornos de parcialidade em função da complexidade do próprio conceito (Kuratko et al., 2015).

Apesar de existirem ainda várias diferenças ao nível das diferentes definições e conceptualizações do empreendedorismo, um certo número básico de ideias parecem ser partilhadas entre vários investigadores no campo do empreendedorismo (Bruyat & Julien, 2000):

a) o reconhecimento do indivíduo com um elemento importante, ou mesmo vital, na criação de novo valor. Os empreendedores não são, certamente, os únicos capazes de criar novo valor para a sociedade através da criação de empresas e organizações, no sentido estrito do termo, ou através da introdução de inovações de diferentes espécies. Contudo, eles criam uma larga percentagem de novo valor económico e social, sendo, dessa forma, considerados frequentemente como elementos fundamentais para a operação dos sistemas económicos.

b) a confirmação de que o indivíduo não funciona automaticamente como uma mera máquina reativa a estímulos produzidos pelo ambiente. O indivíduo é visto e concebido como alguém com capacidade de aprender e criar, capaz de autorrealização e, dessa forma, como possuidor de uma certa liberdade de ação, independentemente do facto do ambiente e do contexto envolvente providenciarem oportunidades ou colocarem restrições.

c) a constatação de que o ambiente e as suas condicionantes podem desempenhar um papel facilitador e estimulador na possibilidade de incremento do número de empreendedores numa determinada região.

Segundo Karp (2006), as principais abordagens relativas ao estudo do empreendedorismo são de índole racionalista. O objetivo das investigações racionalistas é o de encontrar uma verdade objetiva, sendo o empreendedorismo comummente conceptualizado como uma variável contingencial ou um fator situacional do atingimento do sucesso empresarial, transformando os fatores de background (história pessoal), de personalidade, de emergência de competência (“skills”) e de comportamento do empreendedor como os temas fundamentais das teorias e modelos explicativos que derivam desta visão.

Contudo, nos últimos anos, assiste-se ao surgimento de novas conceptualização, essencialmente de cariz construtivista e de construcionismo social que têm contribuído para uma diversificação do campo de análise da conceção do que é o empreendedorismo e do seu impacto ao nível dos indivíduos e das organizações (Chell, 2000; Karp, 2006; Lindgren & Packendorff, 2009; Löbler, Maier & Markgraf, 2005; Refai, Klapper & Thompson, 2015).

Independentemente desta dificuldade em estabelecer uma definição unívoca e concreta do empreendedorismo, é importante estar ciente de uma tendência comum na sociedade de conceber os empreendedores como indivíduos heroicos, predominantemente do sexo masculino, possuindo características inatas especiais e preferindo trabalhar em condições adversas na solidão (Hytti, 2005, 2010; Ogbor, 2000).

Segundo Cordeiro e colaboradores (2006), no imaginário das pessoas, o empreendedor é tipicamente um indivíduo que se fez sozinho (“self-made man”), apesar das adversidades, e

que conquistou um sucesso individual. Assim, torna-se necessária a reconceptualização do termo “empreender” através de um repensar da visão do mundo, da sociedade e do ser humano que não esteja subordinada à mera lógica de mercado. Essa nova conceção implica a valorização da relação entre o sujeito e o seu contexto, facto que nos conduz para a reflexão acerca das competências intrínsecas à adaptabilidade dos indivíduos.

Talvez devido a este facto, autores como Filion (1999) referem que não se pode estudar e falar de empreendedorismo sem procurar também definir o conceito de empreendedor.