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4. Modos de pôr o problema do empreendedorismo

4.1 Empreendedorismo como traço

As abordagens teóricas que têm procurado conceptualizar o empreendedorismo como um traço decorrem iminentemente do campo da psicologia e, em particular, do estudo das teorias da personalidade, focando-se essencialmente no indivíduo como catalisador do empreendedorismo, sendo comummente associadas a uma tentativa de resposta à questão: quem é o empreendedor e quais as suas características?

A assunção básica desta conceção do empreendedorismo consiste na esperada diferenciação dos indivíduos empreendedores face à restante população, com base na identificação de traços específicos da personalidade (Aboud & Hornaday, 1971; Okhomina, 2010; Rauch & Frese, 2000; Caliendo & Kritikos, 2012).

A conceção clássica inerente à abordagem do empreendedorismo como traço assenta na noção de que existe uma construção interna pessoal da personalidade de cada indivíduo e que existem determinados traços específicos desta personalidade que podem ser identificados e medidos, bem como usados com vista a prever o comportamento futuro (Rauch & Frese, 2007; García, 2010; Kolvereid & Isaksen, 2012).

McClelland (1961) foi um dos autores das ciências comportamentais a dedicar grande parte da sua investigação a definir um paradigma do perfil do empreendedor. Neste sentido, estabeleceu uma segmentação da sociedade em dois grupos, quanto à perceção e à aptidão para enfrentar desafios e oportunidades. De acordo com este autor, uma pequena parte da sociedade sente- se disposta a enfrentar desafios, ou seja, a empreender um negócio, enquanto a maioria da população não se predispõe a enfrentar riscos. Segundo os estudos de McClelland, o indivíduo empreendedor possui uma estrutura motivacional diferenciada pela presença marcante de uma necessidade específica: a necessidade de realização. O empreendedor tem valores, atitudes e necessidades únicas que o guiam, destacando-se a sua propensão ao risco.

Partindo do pressuposto da existência desta relação entre traços de personalidade e comportamento empreendedor, a investigação produzida ao longo das últimas décadas tem, também ela, procurado acompanhar as diferentes evoluções das teorias psicológicas da personalidade (McCrae & Costa, 1999; Rothbart, Ahadi & Evans, 2000; McAdams & Pals, 2006), sendo diversos os estudos publicados com vista à validação deste modo de colocar o problema do empreendedorismo nos indivíduos (McClelland, 1961; Baum & Locke, 2004; Chell, 2008; Suárez-Álvarez, Pedrosa, García-Cueto & Muñiz, 2014).

Uma análise cuidada a vários destes estudos desenvolvidos permite constatar a inegável quantidade e diversidade de traços que são normalmente apontados pelos investigadores como sendo possivelmente traços de personalidade passíveis de serem atribuídos a empreendedores

(García, 2010). A título exemplificativo, Hornaday (1982) listou cerca de 42 características distintas da personalidade, algo que, aparentemente, transforma a possibilidade de existência de um único indivíduo com tal multiplicidade de traços uma mera utopia.

Três variáveis distintas – necessidade de realização (McClelland, 1961), locus de controlo (Rotter, 1966) e capacidade de tomar riscos (Drucker, 1970) – assumiram historicamente uma especial preponderância e domínio ao nível da discussão relativamente aos traços empreendedores, com grande proliferação de estudos acerca dessas três características (Covin & Slevin, 1991; Cromie, 2000; Filion, 2003; Vecchio, 2003), facto pelo qual foram denominados por Chell (2008) como os “três grandes” (“big three” no original). Mais recentemente, contudo, a investigação subordinada a estes três fatores tem vindo a ser suplantada pelo facto de, no campo da investigação psicológica relativa ao estudo da personalidade (McCrae & Costa, 1999) se verificar a introdução do Modelo de Cinco Fatores de Personalidade (“big five” no original), cujos componentes – neuroticismo ou instabilidade emocional, extroversão, amabilidade, escrupulosidade e abertura à experiência – têm servido de base a novas investigações meta- analíticas com vista a validar a possível relação entre os traços de personalidade e o comportamento empreendedor (Collins, Hanges & Locke, 2004; Rauch & Frese, 2007; Stewart, Wayne & Roth, 2001, 2004; Zhao & Seibert, 2006).

As investigações mais recentes têm vindo a procurar descortinar quais os traços que, aparentemente, possuem mais validade científica para serem considerados como dimensões integrantes da personalidade empreendedora e preditoras do comportamento (Markman & Baron, 2003; Brandstätter, 2011), existindo alguma convergência entre diferentes investigações num grupo mais restrito de traços que, segundo a análise de Raposo (2014), poderiam ser resumidas ao seguinte grupo de variáveis: a necessidade de realização, o locus de controlo interno, a capacidade de tomar riscos, o desejo de autonomia, a criatividade, a autoeficácia generalizada, a intuição e o capital social e humano. Já segundo a análise de García (2010), os principais traços da personalidade empreendedora seriam o locus de controlo, a autoeficácia, a capacidade de tomar riscos e a proatividade.

Dada a frequência com que a investigação acerca do empreendedorismo procura analisar as relações entre traços de personalidade e a emergência do comportamento empreendedor, poderiam ser apresentadas muitas mais tentativas de agrupar as principais tipologias de traços encontrados nos estudos desenvolvidos sobre múltiplos enfoques. Para Rauch e Frese (2007), esta tão grande diversidade de características formuladas nas várias investigações, associada à dificuldade em identificar concretamente qual a combinação efetiva de traços que permitiria explicar a personalidade do empreendedor, tem sido geradora de algum descrédito e ceticismo na literatura no que toca à definição de relação entre os traços e o comportamento empreendedor.

Esta controvérsia existente ao nível da literatura do empreendedorismo relativamente à efetiva intensidade desta relação resulta do facto de existirem algumas investigações cujas conclusões aparentam apontar para uma relação positiva entre alguns traços de personalidade e o comportamento empreendedor do indivíduo (Chell, Harworth & Brearley, 1991; Rauch & Frese, 2000), sendo, contudo, tais conclusões contrapostas por outros estudos que afirmam que tal relação não se apresenta como verosímil (Brockhaus & Horwitz, 1986; Gartner, 1989; Low & MacMillan, 1988).

A principal crítica que tem vindo a ser assumida face a esta abordagem por traços remete para o facto de os traços de personalidade identificados por alguns autores serem partilhados, indiscriminadamente, por empreendedores e não-empreendedores na população geral (Low & MacMillan, 1988; Gartner, 1989).

Mais recentemente, os estudos meta-analíticos de Zhao e Seibert (2006) e de Rauch e Frese (2007) procuraram comprovar a validade preditiva dos traços de personalidade, sugerindo a necessidade de futuras investigações se dedicarem a efetuar uma análise das contingências que podem afetar o tamanho dessa relação. Rauch e Frese (2007) concluem a sua análise afirmando que a investigação no âmbito do empreendedorismo não será capaz de desenvolver uma teoria consistente se não tiver em consideração as dimensões da personalidade dos indivíduos. Neste sentido, e numa lógica de transição para uma visão mais desenvolvimentista do empreendedorismo que exploraremos mais aprofundadamente de seguida, McAdams e Pals (2006) argumentaram que a personalidade de um indivíduo é composta de três níveis interligados: os traços disposicionais, as adaptações características e as narrativas de vida integrativas. Para estes autores a personalidade deverá ser concebida como um padrão de desenvolvimento destes três níveis embutidos no contexto histórico e cultural dos indivíduos. De acordo com esta conceção, os traços de disposição denominados por “Big Five” afetariam a ecologia social da vida quotidiana, traduzida pela exigência dos diferentes papéis a desempenhar ou pelos desafios desenvolvimentais, resultando num processo adaptativo individual promotor de adaptações características específicas (McCrae & Costa, 1999).

Estes vários estudos têm servido de base, por um lado, para o abandono de uma visão unicista da influência de traços específicos na adoção do comportamento empreendedor e, por outro lado, servem de mote à procura de modelos mais integrativos, que não descurem estas dimensões mais intrínsecas ao indivíduo, mas que as integrem numa lógica de contingencialidade com outras variáveis psicológicas fundamentais, quer de índole individual, como as componentes cognitivas e afetivas do indivíduos, quer de índole contextual e ecológica (Caetano, Santos & Costa, 2012; Frese, 2010; Raposo, 2014).