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PARTE I: A capitania de Pernambuco, as instituições do poder central e o reformismo Setecentista

Capítulo 5 As redes mercantis, os homens de negócio e a Coroa: propostas de empresas comerciais

5.2 O contrato da carne e os circuitos comerciais dos caminhos do gado nas capitanias do Norte

A ideia de se instituir uma companhia para comercializar o gado do «sertão» surgiu um ano antes da proposta oficial, intermediada pelo governador e remetida ao secretário de Estado do Reino, Carvalho e Melo. Corria o ano de 1756 quando os homens de negócio da praça do Recife, através de requerimento ao rei com entrada pelo Conselho Ultramarino, pediram a D. José I que anulasse uma taxa que consideravam injusta e que, desde 1728, constava no contrato da carne. Foi nesse ano que, pela última vez, o contrato havia sido posto em leilão pela Câmara de Olinda. Em 1730 o contrato passou para a superintendência da Provedoria da Fazenda Real e a arrematação passou a ser feita no Conselho Ultramarino. A passagem dos contratos para as Provedorias ocorreu também na Baía e no Rio de Janeiro, e constituiu-se num momento em que se reorganizava o fisco, e estava inserida em uma nova dinâmica político-institucional que visava renovar algumas atribuições da administração central, reduzindo os poderes locais488. Vale ressaltar que o contrato da carne era dos mais relevantes, pois uma de suas condições previa uma taxa que serviria para o pagamento da infantaria - a princípio apenas de Olinda - e, posteriormente, na década de 30 de Setecentos, para a infantaria de toda a capitania de Pernambuco489.

Em 1756 José de Abreu Cordeiro (boticário), o capitão Henrique Martins [natural de Lisboa], José Bento Leitão e Francisco Lopes Porto - todos homens de negócio,

488

Mudanças que vinham desde D. João V e segundo Clara Araújo, ainda antes, desde D. Pedro II. Clara Maria Farias de ARAÚJO, «O trato dos homens de negócio de Pernambuco: metamorfoses nas

hierarquias (1730-1808)» (tese de doutoramento, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012), cap. 3. Agradeço à Clara a gentileza de me enviar a sua tese recentemente defendida.

489 Em 1712 este contrato foi arrematado na Câmara de Olinda pelo valor de 60 mil cruzados, 16 anos

depois o valor quase duplicou. O conselho sempre desconfiou que o contrato era subvalorizado e esta foi uma das razões para o retirar da competência da câmara. AHU, Conselho Ultramarino, Pernambuco. AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2273.

160 moradores na vila do Recife e relacionados com o negócio do sertão490 - escreveram ao rei a pedir que, no contrato da carne, fosse abolida a «condição» nº 12491. Tal cláusula mandava que se pagassem 160 réis por arroba de carne seca proveniente de áreas exteriores à esfera abrangida pelo contrato. Contrato esse que tinha sido arrematado, por dois triénios, por Luís da Costa Monteiro (dono de fábricas de atanados e homem de negócio), através do seu procurador na Corte, Baltazar Simões Viana, pelo valor de 137 mil cruzados e 100 mil réis cada triénio492. O contratador exigia o pagamento de 160 réis por cada arroba de carne seca que viesse de áreas não abrangidas pelo contrato. Contestando esta cláusula, os requerentes alegavam que em tempo algum tinham pago taxas pela carne seca, apenas pela carne fresca que se cortava nos talhos da vila do Recife e nos demais das freguesias do termo de Olinda, e que isso acontecia desde o contrato arrematado por José Gomes da Silveira, em 1728. Com base neste argumento, pediam a anulação daquele pagamento493.

Contudo, o mais relevante na representação dos homens de negócio de 1756 não é o pedido para abolir uma cláusula do contrato da carne, nem os pareceres contrários que esta representação teve do provedor da Fazenda Real, João do Rego Barros e também da Câmara do Recife494. O mais importante foi o facto de o indeferimento do pedido ter feito

490 Henrique Martins era capitão de Granadeiros do Terço de Infantaria Auxiliar da praça do Recife, mas

natural de Lisboa. AHU, Conselho Ultramarino, Pernambuco. AHU_ACL_CU_015, Cx. 81, D. 6772.

491 Explicavam ainda que uma outra condição também havia sido abolida, a nº 14, que tratava da

condução das solas pertencentes ao contratador. Tal condição instituía que as solas do contratador teriam precedência no embarque dos navios da frota em relação àquelas pertencentes aos particulares. Alegavam que o costume era que o pagamento da taxa fosse feito apenas sobre as carnes frescas e, da mesma forma que a condição que abordava a condução das solas fora extinta, pediam a exclusão da taxa de 160 réis exigida pelo contratador. AHU, Conselho Ultramarino, Pernambuco. AHU_ACL_CU_015, Cx. 81, D. 6772.

492 AHU, Conselho Ultramarino, Pernambuco. AHU_ACL_CU_015, Cx. 82, D. 6813.

493 O capitão José Gomes da Silveira arrematou o contrato da carne por 106 mil cruzados livres para a

Fazenda Real pelo triénio de 1728 a 1731, em dinheiro de contado (em espécie) pago de dois em dois meses ao almoxarife da Fazenda Real, com subsídio de 5 réis por cada libra de carne para o pagamento da infantaria (de Olinda). Até então o contrato era da responsabilidade da câmara e era uma das suas principais rendas. Segundo as novas condições, ficava proibida, sem licença do contratador, a morte do gado para venda pública ou particular ao povo no Recife e nas povoações sob a sua jurisdição, e mesmo com licença, os particulares não poderiam levar mais que 480 réis por arroba e tinham de pagar a taxa na forma referida, mesmo sendo pessoa eclesiástica.

494 Carta do governador informando parecer sobre o pedido dos homens de negócio da praça do Recife,

anexo ao requerimento de AHU, Conselho Ultramarino, Pernambuco. AHU_ACL_CU_015, Cx. 81, D. 6772. O governador estranha o facto de os homens de negócio não terem assinado a representação, e, na sua opinião não o fizeram pelas dúvidas que tinham sobre a justiça do requerimento. A carta da câmara é assinada por [Fragoso] de Albuquerque, José Xavier de Tovar e José Inácio da Cunha e também eles afirmaram que sempre fora comum os homens de negócio irem buscar carne ao sertão e se a quisessem vender na praça do Recife pagavam então o subsídio ao contratador, mas poderiam vendê-la

161 nascer, entre os requerentes, a ideia de abolir não apenas a condição do contrato, mas sim reformulá-lo. Se conseguissem a permissão da Coroa para levar adiante o estabelecimento de uma companhia para comprar gado no sertão e para o comercializar dentro das capitanias do Norte, no Rio de Janeiro e na região das minas, o contrato para subsistir teria de ser reformulado.

O segundo ponto relevante, que se destaca no pedido dos homens de negócio do Recife ao rei, é o facto de, nele, tais mercadores explicarem a maneira como se esquivavam do controlo do contratador. Referiam, por exemplo, que optavam por não comprar e por não abater gado nas terras abrangidas pelo contrato, indo directamente ao «sertão» comprar e transportar o gado, para, desse modo, não serem obrigados a cumprir as cláusulas do contrato do subsídio da carne.

Nesse pedido é descrito todo o circuito do resgate de gado, o modo como ele era feito e a quem se destinavam os animais:

Costumam os suplicantes comerciar em suas sumacas495 para os portos dos sertões com várias mercadorias e computo de dinheiro e (...) dos efeitos e géneros que levam fazem negócio com aqueles moradores e recebem deles os bois em que se ajustam e os mandam matar e beneficiar, secando as carnes, as embarcam e mandam embarcar nas ditas sumacas, no que fazem grandes despesas e além destas expõem suas vidas e o risco de suas fazendas mandando conduzir por mar as ditas carnes secas para o bem comum daquele país [praça do Recife], dos da Baía e Rio de Janeiro, com a distância de 300, 400, 500 e mais léguas fora do distrito e jurisdição do dito contrato496.

Mas que «sertão» é este a que se referem os homens de negócio? Cabe aqui uma explicação acerca desta região que abrangia tantos territórios do interior do Brasil. Os «sertões» tantas vezes referidos pelos requerentes seriam possivelmente vilas ou lugarejos que iam da região do Agreste, da capitania de Pernambuco, chegando até ao Ceará, passando pela Paraíba. Utilizavam, para seus deslocamentos, um conjunto de rios navegáveis, como o Capibaribe, o Paraíba, o Acaraú, o Una e o Jaguaribe497. Também em outras praças sem pagar nada ao contratador, o contrato não obrigava que toda a carne que fosse comprada na capitania de Pernambuco fosse vendida na praça do Recife, apenas aquela que fosse abatida em Recife e termo de Olinda.

495 Barcos pequenos. Embarcação rasa e costeira, de pescar, de dois mastros.

496 AHU, Conselho Ultramarino, Pernambuco. [Representação dos homens de negócio].

AHU_ACL_CU_015, Cx. 81, D. 6772

497 Dois deles nascem na região Agreste de Pernambuco (região de pecuária) caso do Una e do

162 existia um vantajoso comércio feito através do rio São Francisco, pelo porto de Piranhas, em Alagoas, comarca ao sul da capitania de Pernambuco, onde se embarcavam mercadorias para o sertão de Pernambuco.498 Esta área de pecuária era, por conseguinte, bastante extensa, pois ia do norte da Baía até ao Ceará, na linha do que defendeu Sérgio Buarque de Holanda499.

O interesse pela pecuária explica-se porque, contrariamente à agricultura de exportação, esta actividade se subordinava bem menos ao mercado externo [europeu], embora as exportações de couro dependessem da demanda europeia e o consumo de reses na região açucareira variasse em épocas críticas. Contudo, as pequenas despesas com o investimento e a manutenção das fazendas de gado permitiam um lucro estável, embora menor, se comparado com o período do apogeu do açúcar500. Bem como, demonstra que a economia colonial era mais do que a chamada agricultura de exportação, existia um circuito de mercados internos espalhados pela América portuguesa. E o pedido acima relata que, o gado que os homens de negócio da praça do Recife iam buscar nos «sertões» - chegando ao litoral do Ceará - destinava-se ao consumo de carnes e couros pelos moradores das capitanias de «Cima», do centro (região das Minas) e do Sul (Rio de Janeiro).

No século XVII a pecuária expandiu-se e concentrou-se no que atualmente se configura como sendo a região Nordeste (da Baía ao Maranhão). Os estudos de história territorial demonstram que esta ocupação do sertão, com fazendas de gado, apenas viria a ocorrer, de forma sistemática, por volta de meados do século XVII. Até então os sertões surgem na documentação colonial - tanto na oficial quanto nas crónicas de viajantes e exploradores - como grandes áreas desconhecidas. No século XVII sabe-se que as fazendas ocuparam rapidamente o interior, contrastando com a ocupação da agricultura no litoral. O principal fronteira com Pernambuco e desaguam também no Atlântico. O rio Jaguaribe nasce no Ceará, passa próximo a Aracati, e é o único que desagua em Pernambuco e não no oceano.

498 O São Francisco atravessa a capitania da Baía, fazendo a sua divisa a norte com Pernambuco, bem

como constituindo a fronteira natural entre a capitania de Sergipe e a comarca de Alagoas, na parte sul de Pernambuco. O porto de Piranhas fica localizado num ponto estratégico do Canyon do Rio São Francisco, sempre serviu de ponto de passagem das primeiras boiadas que, provenientes da Itabaiana e dos campos do Rio Real de Cima, atravessaram o rio para ocuparem os sertões do Piancó e dos Cariris.

499 Sérgio Buarque de HOLANDA, História Geral da Civilização Brasileira…, pp. 247-248

500 No século XVIII couro e atanados foram itens comuns nos navios de Pernambuco e Paraíba que

faziam comércio com Lisboa. Maria Berthilde MOURA FILHA, De Filipéia à Paraíba: uma cidade na

estratégia de colonização do Brasil: séculos XVI-XVIII, João Pessoa: IPHAN/Superintendência da Paraíba,

163 eixo desta actividade era o rio São Francisco, conhecido como «rio dos currais» e os seus afluentes, a partir dos quais as frentes de penetração da pecuária mais comum foram os sertões de dentro: fazendas próximas ao São Francisco e aos afluentes do rio Parnaíba - que banha as capitanias do Piauí e Maranhão - e os sertões de fora: fazendas próximas ao litoral nordestino que convergiam no Ceará501.

Pode-se constatar que o «caminho das boiadas» e o comércio das carnes interligava Pernambuco e Ceará, em virtude da criação das vilas de Icó e de Aracati. Conforme os estudos de Clóvis Jucá Neto, a vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó, criada em 1736, foi a terceira a ser estabelecida no Ceará e encontrava-se no cruzamento das principais estradas das boiadas setecentistas do Ceará, a estrada geral do Jaguaribe - que ligava Icó ao Aracati -, e a estrada nova. A estrada nova das boiadas, por sua vez, achava-se a meio caminho do Piauí e das feiras pernambucanas502.

Figura 3 - Localização do Aracati e do Icó no vale do rio Jaguaribe

Fonte: Clóvis NETO, «O traçado da vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó na capitania do Ceará»503.

501 Capistrano de ABREU, Capítulos de História colonial…, pp. 167-177.

502 Clóvis Ramiro JUCÁ NETO, «O traçado da vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó na capitania do

Ceará», em Vilas, Cidades e Territórios - O Brasil do século XVIII, orgs. Clóvis NETO e Maria Berthilde Mora FILHA (João Pessoa: UFBA/PPGAU, 2012), p. 45.

164 Segundo o estudo efectuado por Gabriel Parente, a vila de Aracati foi criada em 1748 a pedido do capitão-mor do Ceará, D. Francisco Ximenes de Aragão, e com parecer favorável do governador de Pernambuco, o conde dos Arcos, D. Marcos José de Noronha e Brito. Gabriel Parente declara que a criação da vila teve por base a procura do comando das actividades económicas desenvolvidas na localidade: a produção e comercialização de carnes secas e couro que se fazia no local do porto dos barcos, próximo a foz do rio Jaguaribe504. O mapa abaixo exemplifica o caminho dos pequenos barcos dos homens de negócio que saíam de Pernambuco:

Figura 4 - Caminhos dos pequenos barcos dos homens de negócio que saíam de Pernambuco

Fonte: Gabriel Parente NOGUEIRA «Fazer-se Nobre nas Fímbrias do Império…», P. 71505.

Além do rio Jaguaribe, outro rio em parte navegável e que fazia parte do caminho do gado era o rio Ipojuca, que liga a atual região agreste de Pernambuco ao litoral506. O gado

504

Gabriel Parente NOGUEIRA «Fazer-Se Nobre nas Fímbrias do Império: práticas de Nobilitação e hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804)» (dissertação de mestrado, Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 2010), p. 55. Segundo Rocha Pita: «Vinte léguas para o Rio Grande, tem pelo sertão uma formosa povoação com o nome do Rio Jaguaribe, que por ela passa, o qual, seis léguas até o mar faz uma barra suficiente para embarcações pequenas, que vão a carregar carnes de que abunda com excesso aquele país». Rocha PITA, História da América Portuguesa (Belo Horizonte: Itatiaia, 1976), pp. 55-56.

505 Gabriel Parente NOGUEIRA «Fazer-se Nobre nas Fímbrias do Império…», p. 71. A estrada geral do

165 descia do sertão para o Recife e litoral de Pernambuco, por terra em caminhos próximos ao leito do rio. Os caminhos, abertos no século XVIII, acompanhavam os rios Capibaribe e Ipojuca em direcção ao litoral. Com o estabelecimento das sesmarias e das fazendas de gado que deveriam abastecer de carne, couro e animais de carga toda a zona canavieira das «capitanias de cima» - desde o Rio Grande do Norte ao Recôncavo Baiano -, começou a surgir uma série de vias para a distribuição da produção, que passaram a ser chamadas de «caminhos das boiadas», ligando os «sertões» até Recife, Olinda e Salvador507.

As rotas de comércio de gado do Ceará iam findar em Pernambuco, mais precisamente em Cabrobó, e os mapas que José António Gonsalves de Mello utilizou na sua obra Três

roteiros de penetração do território pernambucano demonstram como estes caminhos,

usados com frequência na primeira metade do século XVIII, ligavam os chamados sertões de Pernambuco e Baía: o caminho do Capibaribe prolongava-se até às nascentes, cortava o território da capitania da Paraíba, atingia a Ribeira do Pajeú, em Direcção a Cabrobó, situada à margem do São Francisco508.

O caminho do Ipojuca acompanhava o vale do mesmo rio, atingindo também o rio São Francisco, mas na Boa Vista, na comarca do São Francisco. Existia ainda a rota entre a praça de Olinda e os sertões do São Francisco, que segundo Azeredo Coutinho foi estabelecido pela Junta governativa - da qual fazia parte, em 1802-, mas que repete o traçado do caminho do Ipojuca, já usado desde 1738509.

506 É de se observar que esta divisão em litoral, agreste, sertão, é uma definição dos estudos geográficos

recentes, e no século XVIII só existia o litoral (tudo que estava próximo ao mar) e o sertão.

507 Sérgio Buarque de HOLANDA, História Geral da Civilização Brasileira…, p. 248.

508 José António Gonsalves de MELLO, Três roteiros de penetração do território pernambucano (1738- 1802) (monografia nº 3, Recife: Instituto de Ciências do Homem - imprensa universitária), 1966, p 13. 509 José António Gonsalves de MELLO, Três roteiros de penetração do território pernambucano…, p. 21.

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5.3 Nova proposta de companhia comercial: os homens de negócio da praça do Recife

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