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CONTRATOS BENÉFICOS NA PERSPECTIVA DINÂMICA

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 168-172)

CAPÍTULO XII – BOA-FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS BENÉFICOS

12.1. CONTRATOS BENÉFICOS NA PERSPECTIVA DINÂMICA

A vinculação da responsabilidade civil ao dolo, nos contratos benéficos, prevista no artigo 392 do Código Civil de 2002, reflete a visão abstrata e estática do fenômeno obrigacional, típica do direito liberal. Nesse tipo de contrato, nasceria obrigação apenas para uma das partes, por conta da ausência de sinalagma. A relação jurídica é analisada, tão somente, sob o ângulo da prestação principal (e da falta de contraprestação). Restrita à ótica dos componentes externos e estáticos do vínculo, a espécie contratual foi compreendida como uma relação jurídica simples, “pois só

uma parte se constitui devedora”.256 Os efeitos do contrato eram verificados exclusivamente no momento da formação da avença.

Apesar dos avanços no processo de abertura do direito privado, é preciso considerar a questão da observância da boa-fé por quem pratica a liberalidade em contrato benéfico. A doutrina brasileira ainda mantém o foco apenas no lado do beneficiário. Nos contratos de doação, por exemplo, evoluiu-se para a compreensão de que a ingratidão do donatário (causa de revogação do contrato) é considerada quebra da “boa-fé objetiva pós contratual, ou seja, implica o cometimento de ato atentatório ao

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dever de respeito e lealdade, observável entre as partes, mesmo após a conclusão do contrato”.257 Mas a questão da boa-fé da conduta do instituidor não é enfrentada.

Mesmo após o advento do Código Civil de 2002, os contratos benéficos continuam a ser entendidos como relações jurídicas de mão única, com a carga obrigacional exclusivamente voltada para apenas um dos contratantes (aquele que pratica a liberalidade), a quem o ordenamento jurídico dispensa, nos termos do artigo 392 do Código Civil de 2002, tratamento diferenciado, com abrandamento da responsabilidade civil, em razão da liberalidade praticada.

Além da interpretação restritiva, prevista no artigo 114 do Código Civil, “diz a lei que

somente a conduta dolosa do devedor do contrato gratuito imporá em responsabilidade”, porque se for meramente culposa, o autor da liberalidade não

teria a “genuína intenção de minorar o benefício a ser transferido”.258

No escopo deste trabalho, vale ressalvar, o campo de análise é composto pelos contratos benéficos lícitos. Os pactos fraudulentos, pela ilicitude do objeto, são reprimidos pelo ordenamento jurídico, mediante regras específicas de anulabilidade. O artigo 158 do Código Civil prescreve que o contrato gratuito possa ser anulado por força de fraude a credores, independentemente da prova de má-fé. O ordenamento jurídico repele a conduta ilícita, apenas com a presença do elemento objetivo da incapacidade patrimonial do devedor, e conseqüente redução ou eliminação da garantia do credor, sem necessidade de comprovação do elemento volitivo do agente.

A atenção do legislador, pois, foi mantida para coibir a utilização indevida dos contratos benéficos como meio de desvio patrimonial, na proteção de terceiros credores do autor da liberalidade. O direito de recebimento do credor é tratado objetivamente, mas, no âmbito dos contratos válidos, o elemento subjetivo

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GAGLIANO, Pablo Stolze. O contrato de doação: análise crítica do atual sistema jurídico e os seus efeitos no direito de família e das sucessões. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 176.

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KRUSCHEWSKY, Eugênio. Teoria Geral dos Contratos Civis. 2ª Ed. Salvador: Jus Podivm, 2009, p. 82.

prevaleceu como requisito para a imputação de responsabilidade civil de quem pratica o benefício, sem consideração de elementos objetivos de parâmetro na condução do agente.

Entretanto, na vigência da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, o sistema do direito privado brasileiro não mais comporta o modelo abstrato e estático do fenômeno obrigacional. As causas determinantes da abertura sistêmica, tratadas antes (Capítulo I), determinaram a mudança de paradigma no campo do direito das obrigações. Com contornos mais amplos, a perspectiva estática e abstrata foi substituída pela ótica dinâmica e concreta da obrigação, composta por direitos e deveres de ambas as partes.

Os motivos dessa transformação não comportam regras de exceção. O vetor central da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, orienta a liberdade de realizar negócios jurídicos com observância dos valores e dos princípios do ordenamento, para todos aqueles que desejam contratar, indistintamente.

A particularidade dos contratos benéficos, consubstanciada na liberalidade de conduta de um dos contratantes, não afasta a incidência dos valores e dos princípios regentes do atual direito dos contratos. A liberalidade, apesar de significar expressiva face da liberdade de contratar, não alheia os contratantes à realidade normativa na qual estão inseridos.

Nos contratos benéficos, o fenômeno obrigacional também revela dinamismo, mediante processo intersubjetivo composto por etapas, com início naquela que antecede a celebração do pacto, com desdobramentos, situações jurídicas e vicissitudes. As partes envolvidas nos contratos benéficos devem perseguir o adimplemento substancial da avença, independentemente da contraprestação material.

O adimplemento substancial depende da conformação, do respeito a princípios imperativos, inclusive o da justiça social, estabelecida no artigo 170 da Constituição Federal. Nesse panorama atual, o atributo de benéfico do contrato não mais pode estar cingido ao interesse particular dos contratantes, porque há efeitos que ultrapassam a soma dessas individualidades. Os negócios denominados benéficos, a exemplo da doação e do comodato, são igualmente relevantes para a atividade econômica, realizam a distribuição e permitem o acesso aos bens.

Os negócios benéficos, assim, não deixam de formar processos intersubjetivos de condutas, nos quais valores constitucionais norteiam o cumprimento do vínculo, pautados na solidariedade e na consideração para com a contraparte. Esse dever de consideração, para quem pratica a liberalidade, não é esgotado no ato da instituição do benefício. Incide antes, durante a execução e depois da avença.

A falta de contraprestação material não implica em redução do adimplemento substancial, até porque o benefício de apenas uma das partes é a meta do programa contratual. Não basta, portanto, a liberalidade contida na simples intenção ou na entrega pura da prestação. É fundamental que o propósito do pacto seja concretamente alcançado, na dimensão plena das expectativas normativas e dos interesses das partes, em posição de igualdade material.

A boa-fé objetiva estabelece padrão de conduta para todos os contratos, não dissociável dos contratos benéficos, pela impossibilidade de excluí-los dos ditames constitucionais que alicerçam a base desse princípio do direito contratual.

Diante dessas constatações, atualmente, deve ser revista a concepção de que há contratos em que apenas uma das partes se obriga. O processo contratual pode ser desdobrado em diversos sentidos, a depender do fim colimado pelas partes. Se a prestação principal é dever de apenas uma das partes, não deixa de haver elementos internos e situações jurídicas anteriores, contemporâneas ou posteriores à formação do vínculo.

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 168-172)