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FUNÇÃO DA CLÁUSULA GERAL NO AMBIENTE AUTOPOIÉTICO E

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 63-67)

CAPÍTULO III – CLÁUSULAS GERAIS

3.5. FUNÇÃO DA CLÁUSULA GERAL NO AMBIENTE AUTOPOIÉTICO E

Feitas as considerações necessárias à compreensão da cláusula geral como técnica legislativa imprescindível à abertura do sistema jurídico, importa analisar como este mecanismo opera no ambiente autopoiético.

Diante das questões que a globalização acarreta para a estrutura do direito privado, o sistema de produção capitalista eleva as questões jurídicas a outras dimensões, que superam os critérios normativos e hermenêuticos do modelo liberal fechado. No contexto da sociedade globalizada, o direito privado ganha novos contornos, outras

estruturas e possibilidades de decisões substancialmente legitimadas.106 Nesse sentido, as cláusulas gerais representam instrumentos de experimentação do direito privado em novas dimensões, que possibilitam a incidência dos direitos fundamentais e a tarefa valorativa e criativa do intérprete.

Na sociedade globalizada, as fronteiras territoriais perdem importância para as fronteiras funcionais. O deslocamento de fronteiras altera o delineamento dos conflitos. Longe de uniformizar o discurso jurídico, a globalização o fragmenta e faz aumentar os conflitos. Conflitos que se tornam mais complexos de serem resolvidos também pela perda de fronteiras entre o direito público e o direito privado, conduzindo a um dos paradoxos da pós-modernidade. A denominada constitucionalização do direito privado é o epicentro dessa simbiose.

Para a teoria dos sistemas, essa perda de fronteiras é ao mesmo tempo necessária e arriscada. Necessária porque a abertura do microssistema do direito privado foi questão de sobrevivência. Diante de uma realidade dinâmica e plural, antes abordada em capítulo próprio, a manutenção de um regime jurídico fechado representaria a incapacidade cada vez maior de regulação da vida privada dos indivíduos. A cláusula geral funciona como resposta do sistema jurídico a essa necessidade de reestruturação.

O sistema jurídico tem na cláusula geral seus mecanismos de mediatização normativa. Representa não apenas a válvula de abertura, mas também o mecanismo de controle de interferências externas. Com isso, abre o sistema jurídico aos demais sistemas sociais, permitindo que o ordenamento jurídico absorva os valores socialmente relevantes e válidos num determinado momento histórico. E também fecha o sistema para as intromissões ilegítimas.

No âmbito do microssistema do direito privado, a sincronia se repete quando a cláusula geral permite o influxo dos direitos fundamentais nas relações entre particulares; e ao mesmo tempo obsta as condutas incompatíveis com os valores socialmente legitimados. Tal raciocínio permite a compreensão da cláusula geral

106

como código binário que traduz as condutas entre lícitas e ilícitas; possibilita a interdependência cognitiva e autonomia operacional do sistema jurídico e do microssistema do direito privado.

O Direito se regenera a partir do embate entre o lícito e o ilícito. Entretanto, numa economia globalizada, o fenômeno da autoreferência dos sistemas implica na liberação de cada um dos setores em relação aos demais, numa ampla autonomia dos processos decisórios, nem sempre vinculados às regulamentações globais. A cláusula geral pode desempenhar a função de autoregulação setorial, como filtro das condutas lícitas e ilícitas.

Os processos decisórios, no contexto globalizado, são cada vez mais setoriais. Os setores autoorganizados da sociedade criam suas regras próprias, impulsionados por seus próprios objetivos. Essa tendência autoregulativa cresce na medida da complexidade social e do volume das atividades. Os códigos universais não acompanham essa dinâmica e deixam de ser considerados pelos atores dessa sociedade complexa. A cláusula geral realiza a tarefa comunicativa entre as regulamentações setoriais e as normas globais. Aproxima as regras criadas por cada setor, conectando-as com os princípios e valores eleitos pela sociedade. Assim gera maior legitimidade e consenso, elementos fundamentais para a sustentabilidade do sistema autopoiético.

No setor econômico, por exemplo, a complexidade dos negócios segue regras próprias, premidas pela busca incessante do lucro. Na economia dos capitais transnacionais, os negócios jurídicos são realizados através de contratos cada vez mais atípicos e sofisticados, distantes das regras contratuais tradicionais. Produz seus próprios elementos, regras próprias. Essa atividade autoreprodutiva pressupõe a emergência de um código binário específico, centro de gravidade, capaz de guiar uma rede circular sistêmica, ao mesmo tempo fechada e aberta de operações. A cláusula geral desempenha tal papel.

A cláusula geral constitui o instrumento de teste da legalidade/ilegalidade dos diversos setores autoorganizados da sociedade. Permite a diferenciação de subsistemas através da criação de normas próprias, sem prejuízo da função

comunicativa entre eles. Técnica legislativa que é cláusula operativa dos subsistemas e garante a abertura ao meio envolvente, sem perder a sua autorreferencialidade. Essa função da cláusula geral no contexto globalizado confirma que a abertura de um sistema não depende de regulação exógena direta para garantia da adaptabilidade ao meio envolvente. Pelo contrário, confirma que a sobrevivência e a estabilidade dos setores organizados depende da sua capacidade de autorregulação.

Ao atuar dessa maneira, a cláusula geral garante a autonomia do direito como subsistema autopoiético de comunicação. Essa técnica legislativa pode ser compreendida, enfim, como “princípio energético de um processo de auto-

reprodução recursiva, fechada e circular de comunicações especificamente jurídicas”.107

Outra importante função da cláusula geral, na sociedade globalizada, é a de solução de conflitos. Através delas podem ser desenvolvidas “normas substantivas visando a

harmonização das diferentes racionalidades sistêmicas”,108 num processo recíproco de reconciliação de diferentes subordens autônomas. O Direito pode orientar-se pela solução de conflitos ao seu próprio interior. Aumenta a cada dia a tendência de criação de regras próprias para solução de conflitos, através de processos extrajudiciais.

A perda do monopólio do Estado sobre o Direito galopa com a crescente internacionalização da atividade econômica. As arbitragens internacionais proliferam. A tendência de autorregulamentação dos conflitos tem na cláusula geral elemento de propulsão. Por permitir a comunicação intersistêmica, a cláusula geral contribui para soluções segundo critérios mais especializados, embora compatíveis com as demais expectativas normativas.

107

ANTUNES, José Engrácia. Prefácio... op. cit. p. XXI.

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3.6. A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA NO SISTEMA

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 63-67)