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O Código Civil de 1916 e a posterior evolução da boa-fé objetiva

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 85-90)

CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE A BOA-FÉ

4.4. OUTRAS REFERÊNCIAS NO DIREITO COMPARADO

4.4.3. Direito brasileiro

4.4.3.2. O Código Civil de 1916 e a posterior evolução da boa-fé objetiva

Findo, em 1872, o contrato do Governo Imperial com Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua recebeu a tarefa de elaboração do Código Civil brasileiro, sancionado e

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promulgado em 1º de janeiro de 1916 e com vigência a partir de 1º de janeiro de 1917.

O Código Civil de 1916 refletiu as aspirações da elite da época. Instituições básicas como a propriedade, a família, a herança, a produção e o trabalho, refletem a imagem de uma classe dominante que racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, vivendo em uma nação embrionária, com atividade eminentemente agrícola, de caráter rudimentar e extensivo, servida até então por escravos.

Ao analisar as raízes históricas do Código Civil de 1916, anota Orlando Gomes que a estrutura agrária da época prendia o país em um sistema colonial, com predomínio dos interesses dos fazendeiros e dos comerciantes, aqueles produzindo para o mercado internacional e estes fazendo importação para o mercado interno.145 A classe média era escassa e se concentrava no exercício dos cargos burocráticos. Para a organização social do país a racionalização dos interesses se processou por intermédio dessa classe média. A ordem jurídica, portanto, não tinha correspondência com a realidade, mas sim com determinados interesses. Observa o autor que a dependência externa brasileira implicou em adoção de modelos econômicos e sociais de países estrangeiros. Os grupos dominantes da classe dirigente, da burguesia agrária ou da burguesia mercantil, propositadamente, mantiveram o país no estado de subdesenvolvimento, para manutenção de seus privilégios.

A abolição da escravatura, seguida da Proclamação da República, desencadeou um novo espírito social. Passou a ocorrer concentração de riqueza decorrente do exercício da atividade mercantil, com especulação sobre os produtos agrícolas de exportação. A despeito disso, não se verificou importante alteração substancial e o sistema colonial foi mantido em suas linhas basilares.

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O Código Civil de 1916 deve ser analisado sob essas contradições brasileiras. A primeira delas foi verificada entre os setores predominante da camada superior: enquanto a burguesia mercantil aspirava um regime político jurídico que lhe permitisse maior liberdade de ação, a burguesia agrária temia as conseqüências dessa ampliação. A segunda foi o fato do crescimento da classe média, especificamente devido à urbanização prematura do país, provocada não pela sua industrialização, mas pela expansão do comércio exportador dos produtos agrícolas.

O Código Civil de 1916 foi obra com aspirações de uma sociedade interessada em afirmar a excelência do regime capitalista de produção. Prevaleceram, por conseguinte, valores jurídicos liberais e conservadores, de preservação da segurança jurídica, com sistema pretensamente completo, enclausurado e blindado contra as interferências contrárias aos interesses dominantes. Tais características explicam a falta de espaço e de sentido para as cláusulas gerais no mencionado diploma legal. Prevaleceu a acepção subjetiva e a boa-fé tinha menções isoladas em alguns artigos, a exemplo dos artigos 1.443 e 1.444.

A ausência de uma regra de cunho geral da boa-fé, no âmbito do direito das obrigações, dificultou a evolução do instituto no direito brasileiro. A doutrina e a jurisprudência buscaram apoio nos artigos 85 do Código Civil e 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.146 A jurisprudência avançou no tema da boa-fé objetiva, com relevante contribuição de julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, e posteriormente do Superior Tribunal de Justiça.147

Em relação à boa-fé objetiva, a experiência jurídica brasileira tem na Constituição de 1988 seu marco evolutivo, com a consagração do valor social da livre iniciativa como um dos fundamentos da República, nos termos do artigo 1º, inciso IV, do texto constitucional. A nova ordem constitucional desencadeou o processo denominado de constitucionalização do direito civil brasileiro, com incidência dos valores e princípios fundamentais nas relações privadas.

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SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Contornos dogmáticos... op. cit., p. 82.

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Para a boa-fé objetiva foi marcante, na experiência jurídica brasileira, a promulgação da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (de proteção do consumidor). Em defesa do consumidor, foi utilizada técnica legislativa avançada, com inclusão da boa-fé como parâmetro de conduta nas relações de consumo, independentemente do estado de consciência do fornecedor e do consumidor. A boa-fé objetiva empregada para equilíbrio entre a proteção do consumidor e a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico.

Posteriormente, com a edição da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor o novo Código Civil brasileiro, edificado com base nos princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade.

O princípio da eticidade consiste na busca de compatibilização dos elementos técnicos com os valores éticos inspiradores do ordenamento.148 A boa-fé objetiva é exemplo de aplicação desse princípio, consagrada como cláusula geral, em matéria contratual, nos artigos 113, 187 e 422 do Código Civil. A adoção da técnica da cláusula geral é reflexo do princípio da operabilidade, com maior margem hermenêutica para o aplicador do Direito, conforme abordagem em capítulo específico deste trabalho.

O artigo 113 do Código Civil de 2002 traz a boa-fé na função de cânone interpretativo, segundo o qual os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração. O artigo 187, por sua vez, expressa a boa-fé na função de limitação ao exercício de direito subjetivo, tipificando como ilícito o ato jurídico praticado em desconformidade com os limites traçados pela finalidade econômica e social, pela boa-fé e pelos bons costumes. Por fim, o artigo 422 prescreve a boa-fé objetiva como regra de conduta, que deve guiar as partes na conclusão e na execução dos contratos.

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GAGLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil: Parte Geral. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 51.

Importante notar que a o novo diploma civil não restringe a boa-fé dos contratantes à prestação, indo além dos aspectos patrimoniais da obrigação e alcançando situações existenciais que as partes experimentam ao longo do processo obrigacional, com proteção da integridade física, moral e psíquica dos contratantes.149

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ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 98.

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 85-90)