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EVOLUÇÃO HISTÓRICA

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 125-129)

CAPÍTULO VIII DIGNIDADE HUMANA E BOA-FÉ

8.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A evolução dos direitos fundamentais é exemplo de que a compreensão do fenômeno jurídico pressupõe a percepção do ambiente social, político e econômico em que se delineia.

Em capítulo próprio neste trabalho foi demonstrado que os ciclos sociais, políticos e econômicos causam as transformações nos sistemas jurídicos. As mudanças exigem regras compatíveis com as novas relações jurídicas. As regras devem regular os valores vigentes, não apenas para consolidação dos que alcançam o poder, mas também para acomodação dos preteridos. Os avanços jurídicos podem ser conquistas de uma sociedade que amadurece, podem ser estratégias de projetos de poder ou podem ser instrumentos de continuidade de dominação.

O estudo da dignidade humana, no aspecto da evolução histórica, percorre fases de fundamental importância, dentre elas o Cristianismo, o iluminismo humanista, a obra de Kant e a reação às atrocidades da Segunda Guerra Mundial.

O Cristianismo deixou o legado da mensagem da valorização do homem como ser individual, não apenas como indivíduo em si, mas também com destaque para a importância do outro, com o pulsar da piedade e da solidariedade.

O movimento iluminista, por sua vez, na reação à religiosidade e defesa do próprio homem como centro do pensamento, criou terreno fértil para a evolução da concepção de dignidade humana. Evoluíram as teorias dos direitos individuais e do exercício democrático do poder.

O pensamento de Immanuel Kant apresentou formulação importante sobre a natureza do homem, em sua complexidade, nas relações consigo, com outros seres humanos, com as suas criações e com os elementos da natureza. A obra de Kant, num recorte resumido, trabalhou com a noção ontológica de dignidade humana, com a defesa da liberdade como forma de possibilitar o desenvolvimento humano. O Estado e o Direito deveriam ser organizados em prol dos indivíduos. O imperativo categórico foi composto pela necessária ideia de que o ser humano nunca possa ser visto ou usado como meio para alcance de outras finalidades.

Nesse percurso histórico, o ponto mais próximo e possivelmente mais marcante para a formulação do conceito atual de dignidade humana é a Segunda Guerra Mundial, fase em que o extermínio de um povo dependeu apenas de uma decisão política. As atrocidades e as destruições praticadas em nome de uma pretensa supremacia racial abalaram profundamente as convicções de diversos povos, em especial de nacionalidades européias. Com o fim da Segunda Guerra, o mundo reagiu com a criação da Organização das Nações Unidas e a proclamação da Declaração Universal dos Diretos do Homem.

Sob a égide do denominado Estado Social, o papel do Estado deixou de ser despótico, e passou a se submeter aos valores que a sociedade elegeu fundamentais para a ordem social, política e econômica. Todo poder deveria ser

exercido em conformidade com os valores e princípios de uma ordem constitucional. As Constituições passaram, assim, a incorporar os direitos fundamentais, força motriz para o desenvolvimento da sociedade.

O momento histórico reclamou a mudança de paradigma das garantias formais para as garantias substanciais. O desafio deixou de ser a formulação do direito. Surgiu a questão de sua concretude. O sistema posicionou o ser humano no centro, como seu meio e fim. A era das edições das chamadas Constituições Sociais foi marcada por esse resgate de humanidade e de cidadania.

Um novo direito foi construído a partir da centralidade da pessoa humana. Os valores elevados ao âmbito constitucional precisavam ser realizados e exigiam um processo de concretização. Conforme teoria constitucional de Friedrich Müller, a norma jurídica é mais do que o seu teor literal. Este funciona de “acordo com o tipo

da norma, de maneiras distintas, como diretriz e limite da concretização admissível”.195 A interpretação do texto da norma é um componente importante, mas não único da implementação de sinais de ordenamento normativo em casos determinados. Desse modo, antes de se falar de interpretação ou explicação, deve- se atentar para a concretização da norma.

O período pós-positivista ultrapassou o legalismo estrito e avançou com a ascensão de valores. Houve o reconhecimento da normatividade dos princípios e da essencialidade dos direitos fundamentais.

O reconhecimento de os direitos fundamentais operarem sua eficácia nas relações interpretativas196 é, possivelmente, o aspecto nuclear da denominada constitucionalização do Direito Civil. A Constituição deixa de ser apenas uma carta

195

MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho no direito constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 105.

196

RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski; FACHIN, Luiz Edson. Direitos Fundamentais, Dignidade da Pessoa Humana e o Novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang [org.].

Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.

política e passa a assumir uma qualificação de elemento integrativo de todo o ordenamento jurídico – inclusive do Direito Privado.

O processo de concretização da norma constitucional passou a ser permanente. Nele, o valor da dignidade humana deve ser interpretado e aplicado com toda a sua carga semântica. Não basta o movimento de transposição desse valor para a ordem constitucional, porque o modelo anterior demonstrou a fadiga e a inoperância de uma proposta meramente ideal e teórica.

O novo século se iniciou com a concepção de que o Direito é vivido como um sistema aberto de valores, sendo a Constituição um instrumento destinado a realizá- los, com permeabilidade a um infinito rol de possibilidades concretas.

A missão, portanto, é de concreção dos direitos fundamentais a partir do valor da dignidade humana, através da técnica da cláusula geral. Irradia-se o valor da dignidade humana para os ordenamentos infraconstitucionais. As regras do direito civil passam a ser mediatizadas pela Constituição Federal.

O problema mais crítico do Direito tem sido, precipuamente, estabelecer um compromisso aceitável entre os valores fundamentais comuns, capazes de fornecer os enquadramentos éticos e morais nos quais as leis se inspiram, e o mais amplos espaços de liberdade, “de modo a permitir a cada um a escolha de seus atos e a

condução de sua vida particular ou de sua trajetória individual, de seu próprio projeto de vida”.197

Na esfera do direito dos contratos, a liberdade jurídica foi profundamente modificada a partir desse processo de constitucionalização. A liberdade de contratar foi revista com base em valores insculpidos no texto constitucional, contida pelos valores que se sobrepõem aos interesses meramente individuais. Mas o direito civil, e em especial o direito dos contratos, não pode abandonar o princípio da liberdade como

197

espaço de autodeterminação, porque seria renunciar à essência do instituto. É preciso adequá-lo a essa nova realidade jurídica.

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 125-129)