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SOLUÇÃO PARA A ANTINOMIA DA CLÁUSULA GERAL DA

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 183-188)

CÓDIGO CIVIL

Constatada a antinomia entre a cláusula geral da boa-fé objetiva e a regra do artigo 392 do Código Civil, importa a proposição de solução para o conflito, com utilização das noções estabelecidas nos capítulos anteriores deste trabalho.

13.1. RESPOSTAS INSATISFATÓRIAS

A norma do artigo 392 conflita com as disposições contidas nos artigos 113 e 422 do Código Civil. A contradição reside na imposição do elemento subjetivo do dolo para caracterização da responsabilidade civil nos contratos benéficos, enquanto as normas gerais estabelecem o princípio da boa-fé objetiva para todos os contratos. Uma norma de comportamento mais específica (sobre determinada espécie de contrato), não dispensa o requisito do dolo para a responsabilidade civil de quem o contrato não favorece; e com isso desafia regras gerais do direito dos contratos, que consagram a boa-fé objetiva como parâmetro para aferição da juridicidade da conduta. Conforme classificação tradicional, a apontada antinomia é real, embora possa ser resolvida dentro do próprio sistema; e tem origem no conteúdo material de normas de direito interno.

Na ótica liberal-fechada do ordenamento jurídico, de onde provém a opção subjetivista do artigo 392 do Código Civil, o choque entre as mencionadas normas implicaria na expulsão de uma delas. No caso em exame, haveria a exclusão da regra subjetiva da responsabilidade civil, porque em: a) contradição com normas mais gerais e que veiculam o princípio da boa-fé objetiva; b) choque direto com o princípio cardeal da dignidade humana, do qual decorre o princípio da igualdade substancial e derivam as concepções objetivas de conduta.

Ainda no trato tradicional das antinomias, o critério hierárquico não seria adequado para a solução do conflito porque as normas estão inseridas no mesmo diploma

legal. O critério cronológico também não serviria para solução, na medida em que ambas as normas foram editadas no bojo do Código Civil de 2002. Por fim, o critério da especialidade implicaria na prevalência da norma do artigo 392, por ser mais particular sobre a situação dos contratos benéficos. Desse modo, os critérios de solução oferecidos na doutrina clássica não apresentam resposta satisfatória para a antinomia em questão.

13.2. PROPOSIÇÃO DE SOLUÇÃO

É preciso, então, avançar em proposição de solução, a partir das premissas adotadas nos capítulos anteriores deste trabalho: a) sistema jurídico autopoiético; b) obrigação na perspectiva de processo; c) utilização da cláusula geral no sistema aberto e autopoiético; d) boa-fé objetiva como fator de dinamismo do vínculo obrigacional; e) dignidade humana como princípio central do ordenamento e norteador da boa-fé objetiva; e) novos delineamentos da responsabilidade civil nos contratos benéficos.

O Direito como sistema autopoético recebe permanente interferência do meio envolvente. Para a busca de solução da mencionada antinomia, é preciso não esquecer que a manutenção da concepção subjetivista da responsabilidade civil, nos contratos benéficos, é legado do liberalismo jurídico, com a preservação do dogma da vontade, no interesse da ideologia dominante da época, em pretenso sistema fechado. A manutenção do requisito do elemento subjetivo da responsabilidade civil nos contratos benéficos, na contramão do caminho da objetivação de parâmteros para aferição da responsabilidade civil contratual, pode ser explicada pela contínua preocupação do legislador com o valor da liberdade do indivíduo. No curso deste trabalho, entretanto, foram analisados os fatores determinantes do redimensionamento da liberdade contratual, com exercício conforme a ordem constitucional vigente.

A premissa autopoiética do Direito pode previnir os riscos de submisão do sistema jurídico ao poder econômico ou político. O mecanismo de defesa do sistema jurídico brasileiro é a Constituição Federal, instrumento de diferenciação da conduta dos

contratantes pelo código-diferença lícito-ilícito, a partir do qual o Direito se regenera. No direito dos contratos, cabe à Constituição o papel de mediatização dos comportamentos, com base em valores e princípios estruturantes do sistema.

No campo dos contratos, a objetivação da conduta e da responsabilidade civil, derivada dos outros princípios cardeais do sistema jurídico, não se torna, necessariamente, excludente da garantia da liberdade do indivíduo de celebrar contratos com objetivos benéficos. O ordenamento tutela o negócio jurídico benéfico através da interpretação restritiva (artigo 114 do Código Civil), mas não o diferencia, nem poderia fazê-lo, dos demais contratos naquilo que constitui a essência valorativa do ato de contratar.

Os contratos benéficos, da mesma forma que os onerosos, estão inseridos no sistema jurídico aberto brasileiro, no qual a mediatização das condutas de ambas as partes é realizada pelas cláusulas gerais, com destaque para a boa-fé objetiva, condutora do influxo dos direitos fundamentais. A atuação da cláusula geral da boa- fé objetiva é vinculada à concepção dinâmica da relação obrigacional, prevalente sobre a visão atomísitca e simplista, própria do sistema fechado e a partir da qual o contrato benéfico era descrito. Adotada a noção de obrigação como processo, aquela visão reducionista do fenômeno cede espaço para uma visão do contrato benéfico não apenas comprometido com valores exclusivamente individuais, mas com a humanização do sistema.

Tal mudança paradigmática atinge os contratos benéficos, diante da entronização da dignidade humana como vetor interpretativo das normas infraconstitucionais. A regra do artigo 392 do Código Civil deve ser interpretada com base nesse elemento nuclear do ordenamento jurídico, alicerce de valores como consciência social, eticidade e adimplemento substancial. A liberalidade de um contrato benéfico não torna o negócio jurídico imune à incidência dos direitos fundamentais. Para a eficácia dos direitos fundamentais nos contratos benéficos, a juridicidade da conduta de qualquer das partes, mesmo de a quem o contrato não aproveita, deve ser avaliada a partir de parâmetros objetivos, relacionados aos valores e princípios inspiradores do ordenamento. O desvio de conduta, configurador de ato ilícito

contratual, gerador da consequente responsabilidade civil contratual, dispensa o elemento volitivo de quem pratica a liberalidade.

As premissas estabelecidas nos capítulos anteriores, portanto, possibilitam proposição de meio para a solução da antinomia em questão: a técnica da ponderação. Essa possibilidade se harmoniza com a noção de totalidade concreta e com a compreensão do Direito como sistema autopoiético, em que os conflitos internos são conseqüências naturais da interação e da interferência entre os elementos.

No atual sistema jurídico brasileiro, a antinomia tem essa função sistêmica. O conflito entre o artigo 392 e os artigos 113, 187 e 422 do Código Civil de 2002 é conseqüência do processo dialético do ordenamento pátrio, inevitável ao conceito de sistema como uma totalidade concreta, no qual estão inseridos todos os contratos, sem exceção para os benéficos.

A aplicação dos direitos fundamentais na esfera do direito privado permite que a responsabilidade civil nos contratos benéficos adote novos parâmetros, e com isso possa cumprir com a sua função social, através da concretização dos valores constitucionais. Em virtude dessa revisão do direito privado, o operador do sistema deve buscar a reinterpretação da norma prevista no artigo 392 do Código Civil, sob os influxos dos preceitos fundamentais, para alargar as hipóteses de responsabilidade civil do instituidor da liberalidade aos casos de descumprimento objetivo de padrão de conduta. Essa releitura implica, portanto, na revisão do critério da antijuridicidade do agente, tornando-o mais amplo.

No processo de reinterpretação do referido artigo 392, a técnica de ponderação entre os valores em conflito resultará na prevalência da aplicação da norma como reflexo dos preceitos fundamentais. O referido dispositivo, após a ampliação das hipóteses de responsabilidade civil com base na boa-fé objetiva, deve servir ao sistema como instrumento de concretização dos cânones constitucionais, desde a fase pré-contratual. Com isso, preserva-se o princípio da dignidade humana e a garantia da liberdade contratual, com solução hermenêutica que protege a própria

essência do contrato benéfico. Exceto em casos de fraudes, quem pratica a liberalidade não quer frustrar ou prejudicar a contraparte, ao contrário. Com a regulação objetiva da conduta do agente, o contrato tende a melhor cumprir sua missão e destino final.

Ao invés do descarte da norma colidente, a reinterpretação conforme os valores e princípios constitucionais atende ainda ao princípio da conservação, adotado pelo legislador do Código Civil de 2002.

A ponderação entre a liberdade de contratar e os demais valores e princípios do ordenamento jurídico dependerá da análise do caso concreto, das circunstâncias específicas e da posição de cada uma das partes. A conduta de quem praticou a liberalidade deve ser concretamente contrastada com o perfil de probidade, lealdade e correção, razoavelmente esperado na situação.

Por último, tal esforço hermenêutico reinterpretativo do artigo 392 do Código Civil viabiliza a conexão entre a ordem jurídica e a realidade social, com o equilíbrio interno do sistema jurídico, por critérios próprios.

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 183-188)