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DO ABSTRATO PARA O CONCRETO NO DIREITO OBRIGACIONAL

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 42-46)

CAPÍTULO II A OBRIGAÇÃO NA PERSPECTIVA DE PROCESSO

2.2. DO ABSTRATO PARA O CONCRETO NO DIREITO OBRIGACIONAL

Essas considerações se harmonizam com o conceito de sistema jurídico tratado neste trabalho (Capítulo I). Totalidade concreta e sistema jurídico autopoiético são concepções complementares. Fazem sentido para a compreensão da obrigação como processo, dado o caráter de ruptura que carregam. O fenômeno obrigacional visto como processo foi construção doutrinária revolucionária do sistema do direito civil clássico. A base filosófica da totalidade concreta permitiu a essa doutrina romper com o pensamento conservador e revelar a obrigação como ela verdadeiramente é.

No âmbito do direito civil, a relação obrigacional como um todo e como processo tem desenvolvimento seminal com o pensamento de Karl Larenz. O exame dos elementos essenciais da relação obrigacional, dentre eles o direito de crédito e o dever de prestação, não exclui a análise da obrigação como relação jurídica total.

Para Larenz, o sentido da relação obrigacional compreenderá uma série “de deberes

de prestación y conducta, y además de ellos puede contener para una u outra de las partes derechos de formación” ou “otras situaciones jurídicas”.56

O fenômeno obrigacional é um conjunto, uma totalidade, mas isso não impede ou exclui a sua compreensão como um sistema de processos. Sistema que é algo vivo,

“en tanto cuanto los hombres”.57

Com isso, vincula-se a perspectiva do processo obrigacional com as situações e relações correspondentes ao mundo de validez do ordenamento jurídico.

Ao correlacionar obrigação, processo, sistemas, organismo e totalidade, Larenz propositadamente situa no âmbito do concreto a existência dos efeitos ou consequências jurídicas da relação obrigacional, que podem, por conseguinte,

56

LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1952, p. 37.

57

“nascer y desaparecer (extinguirse, anularse), modificarse y desarrollarse hacia un fin determinado”.58

A relação jurídica concreta entre pessoas determinadas passou a

ser mais do que a soma de direitos e deveres. Passou a representar situações jurídicas concretas. A doutrina de Larenz relaciona-se com a evolução jurídica do direito alemão, decorrente de elementos históricos relacionados às conseqüências sociais e econômicas da Primeira Guerra Mundial.

Historicamente, analisa Franz Wieacker que “o acontecimento mais importante

quanto a aspectos fundamentais foi talvez o regresso da jurisprudência ao princípio da equivalência material”.59

Aponta o autor que o positivismo tinha deixado de atribuir qualquer influência à equivalência material das prestações nos contratos bilaterais. No caso do BGB, a tentativa de Windscheid de preparar a reintrodução desse tema foi expressamente recusada pelos seus redatores, sob influência conjunta da ética da liberdade e da responsabilidade de Kant e de Savigny, que já não atribuía à função social do contrato uma influência direta sobre a existência autônoma do direito.

Mas com a Primeira Guerra Mundial vieram a imprevisibilidade, as dificuldades de abastecimento e os ciclos inflacionários. Diante desse quadro, destaca Wieacker, a jurisprudência agarrou-se “à questão da ética material dos contratos”.60

A obra de Larenz é fortemente influenciada pela necessidade de respostas jurídicas a determinadas distorções verificadas no mundo real dos contratos.

Foi necessária a evolução do pensamento jurídico para a concepção da relação obrigacional total e concreta, com abertura de fileiras contra o pensamento abstrato do vínculo, meramente formal e desenhado em linha gráfica. O vínculo obrigacional não poderia mais se resumir à linha imaginária que conecta o credor com o devedor, nem ao direito de crédito ao qual se contrapõe o dever da prestação.

58

LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones... op. cit., p. 38.

59

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução A. M. Botelho Hespanha. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 599.

60

Esse modelo estático e simples da obrigação remete a primeira grande concepção do vínculo obrigacional, desenvolvida no direito romano. Observa Judith Martins- Costa que, apesar de óbvia tal constatação, ainda hoje insistem alguns manuais na referência à obrigação apenas como vínculo, a chamada “relação obrigacional

simples”,61 tal qual definia o direito romano, que se centrava no “núcleo duro do

conceito, o termo “obligatio”, palavra composta da preposição acusativa ob e do verbo transitivo “ligare” (ligar, atar, vincular), daí derivando a ideia de sujeição ou vínculo.”62

Surge a noção de obrigação como vínculo estritamente bipolar, “que liga uma parte,

a credora, titular do direito subjetivo (crédito), a outra, parte devedora, titular do dever jurídico (dívida)”.63 Entre ambos os sujeitos nada mais haveria do que crédito e débito, como se os envolvesse “uma espécie de buraco negro, tal qual o

misterioso vazio que ameaça a camada de ozônio do planeta terra”.64

Com relação ao conceito clássico de obrigação, sob a influência romana, a doutrina nacional basicamente salienta ser a obrigação um “vínculo jurídico que une dois

sujeitos, denominados credor e devedor, por força do qual este deve realizar em favor daquele uma prestação, consistente em um dar, fazer ou não fazer, sob pena de coerção judicial.”65

Perfilando os doutrinadores clássicos, aponta Ruggiero: “A noção dada pelo direito

moderno da relação obrigatória não difere, nas suas linhas gerais, daquela que foi maravilhosamente construída pelos jurisconsultos romanos.”66

61

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé... op. cit., p. 383-384.

62 Ibid., p. 383-384. 63 Ibid., p. 383-384. 64 Ibid., p. 383-384. 65

CALIXTO, Marcelo Junqueira. Reflexões em torno do conceito de obrigação, seus elementos e suas fontes. In: TEPEDINO, Gustavo [coord.]. Obrigações. Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, Cap. 1 , p. 2.

66

RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil: Direito das Obrigações Direito Hereditário. Tradução Ary dos Santos. São Paulo: Saraiva, 1958. v.3, p. 16.

Para Emílio Betti67, a obrigação no direito romano podia ser resolvida, pelo lado passivo, por uma obrigação de ressarcimento, o que quer dizer, uma obrigação de pagamento do equivalente em pecúnia ao que era devido; e, pelo lado ativo, ela se resolvia com o direito de exigir essa substituição pecuniária de um débito primário não cumprido.

Sobre a evolução histórica das obrigações, leciona Serpa Lopes que o conceito de obrigações “na última fase do direito romano, surgiu imaterializado, um vínculo de

ordem puramente abstrata. O direito moderno nada criou no particular. Perdura ainda, no curso dos séculos, a concepção romana de obrigação”.68

A visão estática da relação obrigacional analisava apenas os elementos externos do vínculo, encerrados nos sujeitos interligados pelo vínculo de sujeição em torno do objeto. Não eram considerados os aspectos internos da relação obrigacional, as situações jurídicas concretas das partes ao longo do percurso que precede a contratação até as conseqüências jurídicas advindas da solução (positiva ou negativa) da prestação.

Na lição de Orlando Gomes: “A obrigação é um vínculo jurídico em virtude do qual

uma pessoa fica adstrita a satisfazer uma prestação em proveito de outra”.69

Se visto apenas de forma abstrata, o vínculo obrigacional foi polarizado numa contraposição de interesses. Credor e devedor se contrapunham e a satisfação do crédito provinha da sujeição do obrigado, submisso ao jugo do credor. Prevalecia um conceito meramente dualista da obrigação.

67

BETTI, Emilio. Teoria General de las Obrigaciones. Tradução de José Luiz de los Mozos. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1969, p. 327.

68

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil: Obrigações em geral. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989, v.2, p.32.

69

Chama atenção, ao longo da doutrina tradicional, um verdadeiro estado de subordinação, que submete o devedor na qualidade de único responsável pelo cumprimento da obrigação. Sobre o devedor recai o dever de cumprir com a prestação; enquanto que o credor, revestido dos poderes inerentes ao seu crédito, em nada precisa contribuir para esse cumprimento.

No documento A Boa-fé objetiva no contratos benéficos. (páginas 42-46)