• Nenhum resultado encontrado

DESENVOLVIMENTO DO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DE CONSOLIDAÇÃO DA REFORMA

FUNÇÃO ATUAÇÃO EM SAÚDE MENTAL ATUAÇÃO NO CAPS FORMAÇÃO

3.2 O cuidar e os projetos de vida

Para os entrevistados, a concepção de cuidado envolve: acolhimento, promoção de

autonomia e inserção social, promoção e garantia de direitos de cidadania, higiene/ alimentação/

uso correto de medicação, promoção de bem-estar e apoio emocional. O cuidar é atribuído como objetivo do CAPS, portanto, esses componentes norteiam as ações de trabalho no dia a dia dessa unidade.

No que diz respeito à equipe de enfermagem (nível técnico e superior), consideram como ações essenciais de cuidado, principalmente as relacionadas à medicação, alimentação e higiene, aliados à observação e escuta. É um cuidar próximo, que envolve questões práticas do dia a dia, principalmente relacionadas ao autocuidado e aos relacionamentos interpessoais. Apesar da importância de suas ações, identificam-se como atores secundários no processo de cuidado:

[...] o trabalho efetivo é do psicólogo, é dos técnicos, esse negócio de trabalhar e pensar em como a pessoa vai se virar lá fora daqui (E6).

Para o restante da equipe, o cuidar parece envolver um planejamento “relativamente mais

complexo”, abrangendo esferas que exigem mais interação com o território. Essas diferenças

podem estar relacionadas com a formação, mas principalmente com a divisão de trabalho na equipe dessa unidade:

Eu acho que o objetivo do CAPS é esse: o cuidado no território, aberto, que não fique fechado dentro da instituição, que recupere os poderes das pessoas, nas suas relações sociais, afetivas ou sobre os direitos das pessoas (E3).

Todas as ações desenvolvidas por todos os profissionais da equipe são complementares

e interdependentes na elaboração e desenvolvimento do cuidado, pois sem atenção a situações

que podem ser interpretadas como mais “simples”, não seria possível desenvolver ações relativamente mais “complexas”. Todas as ações desenvolvidas têm importante papel no desenvolvimento do cuidado à saúde integral e na produção de autonomia e inserção social. Além disso, há que se refletir se o cuidado do corpo, feito corpo a corpo, como este realizado pela enfermagem, não seria algo tão complexo como aquele que se dedica a construir um projeto

de vida. Talvez o que pode tornar o trabalho mais simples ou mais complexo seja a fragmentação e cristalização dos papéis, inibindo a produção dos processos compartilhados e a valorização de cada ação desenvolvida no cuidado.

Nessa unidade, quem realiza o acolhimento inicial são os técnicos de nível superior e também os acompanhantes terapêuticos (AT). O técnico que acolheu o usuário servirá como referência para traçar e acompanhar as ações de cuidado iniciadas neste encontro. Para Oliveira (2010), a concepção de PTS está vinculada à noção de profissional de referência, como aquele que assume a gestão do cuidado. Cabe a ele traçar junto aos usuários e familiares, as condutas quanto ao cuidado à saúde:

[...] se tem alguma demanda ou algum problema é a referência que entra pra poder solucionar, porque ela e usuário têm um vínculo maior do que com os outros técnicos [...] e isso é construído com o tempo (E8).

Se os profissionais de referência não desenvolverem um trabalho compartilhado, podem sentir-se sobrecarregados com o número de casos que devem acompanhar. Há condutas que

podem desequilibrar a demanda de atendimentos para certos profissionais, como a indicação

para psicologia ou avaliação médica. Esses encaminhamentos podem estar associados à ideia de que o outro profissional está melhor capacitado para tal, porém, é imprescindível que todos da equipe possam estar envolvidos no planejamento de ações de cuidado, participando ativamente da construção dos PTS.

As mudanças das realidades prejudiciais e a construção de novas realidades estão

relacionadas à construção de práticas inovadoras, novos saberes e valores, ou seja, compreendem essencialmente modificações nos fluxos de poder, na mudança de papéis, nas formas de conceber o sofrimento e viver a vida. O PTS é o próprio fazer junto aos usuários e não se confunde com o conjunto de procedimentos que as unidades oferecem, embora possam fazer uso disso. As atividades sugeridas podem compor processos potentes de transformação, se acontecerem em conexão com o contexto real e concreto de vida dos usuários. Desconectadas desta realidade dos territórios de existência, podem representar formas de controle, sem potencialidade para transformar a experiência de vida e a forma como se vive o sofrimento.

Parte da equipe identifica o PTS como o contrato, composto pelas atividades a serem

realizadas na unidade e parte dos profissionais parecem apresentar uma visão relativamente

[...] tem uma formação de um compromisso ali quando você conversa com ele (usuário) e vai propondo as ações e vai partindo do que ele propõe também. Não visa cura, visa projetos de vida [...] (E3).

[...] eu entendi como um cronograma do que vai fazer aqui (E6).

A forma como é elaborado o PTS não é padronizada nessa unidade, geralmente sendo construído entre usuário, familiares e referência ou referência e equipe. Alguns profissionais defendem a utilização de fichas, para facilitar o acompanhamento e avaliação das ações. Outros

defendem que a instrumentalização desse processo pode burocratizar seu desenvolvimento.

A equipe da unidade elaborou uma ficha para preenchimento dos PTS para ser anexada em prontuário. A mesma não é utilizada e cada profissional realiza essa construção e registro numa maneira de organização própria:

Às vezes me incomoda ter uma ficha como a gente fez no CAPS que fica meio burocrático, engessado né, ter que pensar ali naquelas categoriazinhas (E3).

[...] organização formal, no papel, ajuda a gente a manter o compromisso com a gente mesmo no caso dos pacientes, e ajuda o técnico a não se esquecer do planejado e ajuda a visualizar [...] (E7).

Há que se pensar se a utilização de instrumentos previamente estruturados pode

empobrecer o processo, apresentando um mapa de cuidado cristalizado.

Os entrevistados consideram o processo de construção e desenvolvimento do PTS como

dinâmico, precisando ser rediscutido de acordo com alterações de fatores externos e internos,

exigindo reavaliação constante, mas que não ocorre com tanta frequência, devido ao próprio cotidiano de trabalho:

[...] se a gente avaliasse com mais frequência, ganharia mais com isso. A gente alcançaria mais os objetivos ou se aproximaria mais dos objetivos (E3).

Questionamentos são feitos em relação aos momentos em que o técnico de referência

assume papel condutor em relação ao PTS, de certa forma não ouvindo outras pessoas que

participam do processo de cuidado, nem mesmo o próprio usuário. Esse aspecto pode estar relacionado à dificuldade de se construir um planejamento de vida tão complexo, repleto de singularidades e causando divergências de opinião e prioridades:

O profissional de referência não é dono do paciente. Acho que algumas vezes nas equipes aparecem pessoas que são mais controladoras e outras não, mas acho que se a gente problematiza na reunião a gente acaba regulando um pouco isso: um dá conta do outro, acaba cuidando disso (E3).

É importante prestar atenção para que, na intenção de construir estratégias de cuidado,

não acabemos produzindo intervenções controladoras e de disciplinarização da vida. Por vezes, pode ocorrer ao trabalhador desejar que o usuário mude aspectos da vida em função de seus valores pessoais, os quais podem não estar em sintonia com a autonomia dos usuários e, para lidar com isso, é preciso trabalhar em equipe (BRASIL, 2013).

3.2.1 Os momentos de crise

O CAPS é um dos componentes da RAPS que deve acolher as pessoas em momentos onde podem encontrar-se em maior desorganização para a gestão de seu processo de cuidado. Para Dell´Acqua e Mezzina (1991), o primeiro atendimento à crise não precisa ocorrer na unidade

de saúde, mas também nos espaços de vida do usuário, pois a disponibilidade de “ir ao encontro”

consegue evitar situações traumáticas.

A agressividade reativa às circunstâncias da vida pode estar presente nos momentos de intensificação do sofrimento e os profissionais envolvidos no socorro dessas situações podem acabar emitindo respostas impensadas ou inadequadas. É preciso observar a história do sujeito e sua forma de vivenciar o sofrimento, onde as manifestações ou sintomas não necessariamente precisam ser suprimidos, mas suportados. Os conflitos que se manifestam com a crise podem ser assumidos como estímulo à transformação da situação vivida, perdendo o seu caráter de ruptura e assumindo um valor dinâmico.

A crise não deve ser compreendida como condição pessoal, já que é produzida nas

relações e contextos de vida. Trata-se de um fenômeno constituído entre os sujeitos, ao longo

das relações nos cenários existenciais, que podem apresentar conflitos e formas de comunicação ineficazes. A intervenção terapêutica deve dirigir-se ao usuário, mas também estar voltada a produzir consensos possíveis entre os envolvidos. Deve-se investir na mediação entre usuário e seu conjunto de relações, visando inclusão, legitimação e corresponsabilização na produção de novos combinados, ainda que provisórios (BRASIL, 2013).

A equipe de enfermagem, em seus relatos, visualiza a crise como momento de agitação psicomotora, falas desconectadas da realidade ou risco de auto/heteroagressividade. Seguros das ações a serem adotadas, encaram a crise com aparente tranquilidade. Outros profissionais referem maior dificuldade para lidar com a crise, visto que encaram como parte deste momento,

não só períodos de desorganização mental, mas também uma piora em alguma das esferas de vida, um desafeto, ou alguma mudança significativa de contexto. Nesses momentos, observa-se que os profissionais acabam assumindo um papel mais ativo em relação às escolhas do usuário:

[...] infelizmente tem que segurar o paciente e medica-lo com medicamento injetável. Isso é chato porque é ruim você fazer uma coisa forçada né, ninguém gosta, a gente também tem que se por no lugar do paciente. Mas a gente também quer ver a melhora dele, se não intervir desse jeito, ele pode até atentar contra a própria vida [...] (E4).

Na crise a gente se preocupa muito, porque não somos um hospital de portas fechadas e o que preocupa mais é a fuga desses pacientes. Pode acontecer alguma coisa, atropelamento ou algum acidente em caso de fuga (E8).

Para Venturini (2016), as várias modalidades de contenção, como forma de limitação do espaço físico e de movimento, são estratégias do tratamento manicomial, podendo ser encaradas como um mecanismo inconsciente, baseado na vontade de punir um comportamento inaceitável para as normas sociais. Essa submissão acaba demonstrando as relações de poder,

não mais entre equipe, mas entre profissional de saúde, que é detentor de um saber valorizado,

e o paciente.

O uso dos psicofármacos é utilizado como forma de contenção, assim como o fechamento sistemático da porta, com o objetivo de limitar a liberdade e evitar a fuga. Para Venturini (2016), a internação tira a pessoa de seu contexto e a subordina às regras, evidenciando

a institucionalização também como forma de violência, dada a perda da contratualidade

social. As medidas de contenção não aliviam o sofrimento, frequentemente podendo causar danos emocionais ao usuário e à equipe, podendo promover ressentimento e resistência frente às próximas propostas de cuidado. Para o autor, a contenção é o ato de rendição da capacidade de manejo dos profissionais e pode representar a perda de confiança em sua capacidade de

resolução.

É preciso reconhecer a subjetividade, os direitos e as necessidades do indivíduo em crise

psiquiátrica que sofre a contenção, que deve ser temporária, como uma premissa para o

desenvolvimento sucessivo das intervenções e ações de cuidado, num projeto de vida organizado de maneira singular. Espera-se encontrar na rede, perfis de profissionais que apostem na comunicação e em suas competências ao se confrontarem com situações de difícil resolução. Cuidar de alguém em crise requer tempo, número adequado de profissionais e preparação, pois a capacidade de um trabalhador da saúde mental também está em persuadir

sujeitos que rejeitam os cuidados, na tentativa de conquistar confiança e criar um vínculo terapêutico, possibilitando ações construídas em conjunto que não sejam traumáticas para nenhum dos envolvidos.