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2 REFORMA PSIQUIÁTRICA E A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

DESENVOLVIMENTO DO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DE CONSOLIDAÇÃO DA REFORMA

2 REFORMA PSIQUIÁTRICA E A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Nos anos 1970, a partir das contribuições da experiência italiana de reforma psiquiátrica, passou-se a discutir a desinstitucionalização como invenção de novas práticas no cuidado em saúde, como uma proposta radical de mudança paradigmática. Trata-se de um processo social complexo, transformando as relações de poder entre usuários, trabalhadores e instituições, na busca pela substituição do manicômio, antes visto como única resposta ao sofrimento psíquico, por serviços territoriais capazes de produzir cuidado.

As denúncias de violência e abandono de pessoas internadas em hospitais psiquiátricos despertaram uma mobilização que resultou em 1979 no Congresso Brasileiro de Trabalhadores de Saúde Mental. O Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) denunciava a violência e a ineficácia do sistema assistencial centrado no hospital, com acesso limitado, que transformava a loucura em mercadoria e estigmatizava o sofrimento mental.

Em 1987 aconteceu a I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) no Rio de Janeiro e o II Encontro Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru/SP, pela formulação coletiva das diretrizes estratégicas para o processo de Reforma Psiquiátrica, adotando o lema “Por uma Sociedade Sem Manicômios”. É instituído o 18 de maio como Dia Nacional da Luta

Antimanicomial e seguiram-se as primeiras experiências alternativas ao modelo asilar em São Paulo, Santos e Belo Horizonte (BRASIL, 2013).

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Lei nº 8.080 de 1990, permitiu o desenvolvimento da proposta de substituição do modelo hospitalocêntrico. Em 1992, a II CNSM teve participação expressiva de usuários e familiares em apoio ao movimento.

A Lei da Reforma Psiquiátrica, nº 10.216 de 2001, redirecionou a assistência em saúde mental, privilegiando o cuidado territorial e a proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais. No mesmo ano acontece a III CNSM e em 2010 a IV CNSM, que reconheceu os avanços e apontou novos desafios, especialmente na construção e fortalecimento de parcerias com as políticas de assistência social, educação, cultura e lazer.

A Portaria nº 3.088 de 2011 veio definir os componentes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), organizando o sistema de atendimento a nível federal, estadual e municipal (BRASIL, 2011a). Apesar da ampliação da RAPS no país, vivemos mudanças políticas, capazes de influenciar os rumos da atenção em saúde em sua construção conceitual e prática. O movimento é de enfrentamento dos desafios pela consolidação do modelo territorial, a fim de assegurar os direitos de cidadania para os usuários. A Reforma Psiquiátrica Brasileira tem demonstrado sua possibilidade, efetividade e potência para contribuir na construção de um melhor projeto de sociedade.

2.1 A experiência do município de Santos e o CAPS III – Centro

Em 1989, Santos foi pioneira ao iniciar um processo de substituição do manicômio por uma rede de serviços territoriais, com a intervenção do poder público no hospital psiquiátrico Casa de Saúde Anchieta, devido a denúncias de mortes, superlotação, abandono e maus-tratos. O hospital foi dividido em enfermarias que correspondiam às regiões da cidade, que foram sendo fechadas à medida em que se implantava um novo Núcleo de Apoio Psicossocial (NAPS). O primeiro NAPS foi inaugurado em 1989 e depois foram outros quatro, culminando no fechamento definitivo do hospital em 1994. Esse período foi marcado pela mobilização política dos trabalhadores e a questão da cidadania das pessoas em sofrimento psíquico ganhou espaço, ampliando as discussões para além do campo teórico-técnico (NICÁCIO, 1994).

Os cinco NAPS são classificados hoje como Centros de Atenção Psicossocial III. Neste capítulo é dado enfoque ao CAPS III – CENTRO, que de acordo com a Portaria nº 3.088, atende pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, proporciona atenção contínua (24 horas), ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno. Os bairros de abrangência concentram uma população marcada pela vulnerabilidade social e econômica. A unidade atende

pessoas encaminhadas por outros serviços e demandas espontâneas. Há mais de 5.000 usuários matriculados, sendo aproximadamente metade deles ativos.

O contrato de atendimento é reajustado quando necessário, adequando-se às particularidades do processo de cuidado e a equipe desenvolve ações como: a) Acolhimento/ orientação/ encaminhamento das demandas de pessoas em sofrimento psíquico/ familiares sobre saúde/ autocuidado/ direitos/ programas sociais; b) Oficinas/ grupos terapêuticos; c) Avaliação/ prescrição/ orientação sobre uso de medicação; d) Visitas domiciliares; e) Encaminhamento/ acompanhamento à serviços/ eventos relacionados à questões de saúde/ judiciais/ trabalho/ lazer/ ensino/ moradia; f) acompanhamento de situações de crise; g) Desenvolvimento de relações afetivas e de sociabilidade nas áreas de convivência; h) Discussão em equipe sobre casos e demandas institucionais; i) Reuniões/ matriciamento com a rede; j) Atividades comemorativas; k) Outras ações em resposta às demandas, com planejamento e acompanhamento das práticas de cuidado e projetos de organização de vida para todos envolvidos neste processo. Todas essas ações e estratégias são ferramentas da atenção psicossocial que contribuem para a construção de projetos terapêuticos singulares, que são os projetos de vida construídos junto às pessoas em sofrimento psíquico em seu território de existência.

Na verdade, muitos usuários do serviço, inclusive oriundos da experiência do Anchieta, contam com o CAPS como um importante local de apoio nas suas relações com o território. Muitos moram em quartos alugados em pensões, e desenvolvem sua rede de sociabilidades nos territórios de existência tendo o CAPS como uma referência. Apesar das intensas tentativas de ampliar as parcerias com grupos sociais e instituições do território central de Santos, muitos são os desafios e barreiras que a equipe enfrenta cotidianamente. Mesmo assim, a mesma persiste abrindo portas e acompanhando os usuários em momentos significativos para eles, como quando necessitam adquirir algum documento, buscar um curso ou trabalho de interesse, entre outras ações que dizem respeito à construção dos projetos de vida dos usuários.

2.2 Projeto Terapêutico Singular

O novo modo de acompanhar o sofrimento psíquico aponta para a construção de projetos de organização de vida como uma proposta para organizar o trabalho em saúde mental, chamados de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS). Para Kinoshita (2014), se o adoecimento está relacionado a uma série de fatores combinados de certo modo na vida de cada pessoa, exige uma resposta igualmente complexa de cuidado. Projeto Terapêutico significa um plano de ação voltado ao futuro de alguém, que participa de sua construção. Singular, porque cada

pessoa, família ou comunidade é produto das interações que teve durante a sua história e como cada uma dessas histórias é única, é necessário um plano pensado de modo especial.

O PTS visa aumentar a contratualidade social, cultural e econômica do usuário, possibilitando exercer os direitos de cidadania e, para isso, deve dialogar com sua realidade concreta e suas relações nos territórios de existência, de forma a transformar as relações de poder e de saber que reproduzem a anulação dos sujeitos. É possível assim, refletir sobre a complexidade da experiência do sofrimento psíquico, gerando transformações nas cenas que o produzem. O desafio colocado está em participar da vida social, do contexto comunitário, pois apropriado do território, o profissional adquire um repertório que pode favorecer a criação de estratégias inovadoras.

Oliveira (2010) se refere à potência do PTS de provocar processos de reflexão e ação nos trabalhadores, criando possibilidades de repensarem seu processo de trabalho, suas práticas e a instituição na qual estão inscritos. O uso do PTS também estabelece o trabalho interdisciplinar, podendo funcionar como um método para a educação permanente de trabalhadores. Em suma, o PTS se configura como um conjunto de relações e de experiências que envolvem vários atores e tem como objetivo a construção de projetos de vida, modificando as formas de vivenciar e também os valores culturais associados ao sofrimento psíquico, produzindo novas sociabilidades, saberes e práticas de cuidado.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram realizadas 10 entrevistas para esta análise e, levando em conta os objetivos do estudo, foram definidos temas significativos para categorização do material. As especificidades dessa experiência devem ser consideradas, dada a diversidade de fatores pessoais, sociais e históricos, que em sua interação resultam neste recorte, no contexto desta unidade, durante este período. A tabela a seguir traz dados dos profissionais entrevistados.

Tabela 1 – Identificação dos profissionais entrevistados