• Nenhum resultado encontrado

Processos de desinstitucionalização: a relação com o território

DESENVOLVIMENTO DO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NO CONTEXTO DE CONSOLIDAÇÃO DA REFORMA

FUNÇÃO ATUAÇÃO EM SAÚDE MENTAL ATUAÇÃO NO CAPS FORMAÇÃO

3.3 Processos de desinstitucionalização: a relação com o território

Segundo Nicácio (1994), as abordagens psicossociais atravessam os conceitos de saúde- doença, traçando uma profunda ruptura com os modelos clínicos hegemônicos ou outras formas de codificação do sofrimento, confrontando aspectos culturais que atribuem desvalor à diversidade, à diferença. Isso implica organizar serviços abertos, com participação ativa dos usuários e que possibilitem a formação de parcerias com outras políticas públicas. O desafio é, ao invés de criar circuitos paralelos e protegidos de vida para seus usuários, habitar os circuitos de trocas nos territórios sociais. Isso leva o desafio da saúde mental para além do SUS, já que para se realizar, implica na abertura da sociedade para a sua própria diversidade.

Apesar dos esforços e avanços da reforma psiquiátrica, o modelo de atenção centrado em procedimentos médicos ainda é predominante, sendo a medicalização social um fator importante, fazendo aumentar a demanda por serviços de saúde, gerando ações fragmentadas e PTS empobrecidos:

[...] às vezes a pessoa tá angustiada com a situação que ela tá vivendo, não é exatamente depressão, daí acha que pode tratar tudo com medicação [...] (E6).

[...] eu vejo que a maior demanda é de pessoas com dificuldades socioeconômicas e acaba repercutindo obviamente na questão do humor principalmente. Muita gente deprimida, ansiosa (E10).

Estão sendo realizados investimentos no matriciamento, com encaminhamento das pessoas com quadros considerados leves e estabilizados à atenção básica, que recebe apoio dos profissionais do CAPS para proporcionar ações de cuidado, na construção compartilhada de PTS.

[...] tem a ver com desinstitucionalização, ou mesmo intersetorialidade e da superação da lógica manicomial. Durante um tempo, eu tava me achando ainda muito presa à essa lógica manicomial: reclamando de tudo, esperando uma solução que nunca chegava, reclamando da falta de equipe ou falta de recursos

e não conseguia fazer nada e aí eu ficava muito mal, assim, ficava muito desmotivada com o trabalho e eu enxerguei isso como uma saída (E3).

A estratégia de matriciamento proporciona um suporte técnico-pedagógico, o vínculo interpessoal e apoio institucional no processo de construção coletiva de PTS (BRASIL, 2011b). Apesar dos investimentos, a relação com os outros serviços da rede de saúde ainda parece necessitar de maiores esforços pessoais e em nível de gestão:

[...] a impressão que dá é que não há nada sendo feito nesse sentido de costurar ações, pelo menos no nível da gestão [...] isso acaba logicamente interferindo nos PTS que a gente propõe pros usuários (E3).

[...] no CAPS eu faço parte do conselho gestor local, vinculado ao conselho de saúde, um espaço de promoção e reflexão sobre a dinâmica da unidade (E7).

A unidade abrange um território onde se observa alta vulnerabilidade social e econômica. Grande parte das pessoas mora em cortiços e os contextos de vida são caracterizados pela pobreza material e de relações:

A gente tem uma demanda bem vulnerável, que tem uma situação social bastante acoplada com o sofrimento psíquico, que a gente nunca dissocia (E3).

Também nós estamos numa região pobre de redes de serviços ou lazer para os usuários. Eu acho que a gente tá meio desprivilegiado desse ponto (E4).

A forma de produzir cuidado deve priorizar ações extrainstitucionais, potencializando recursos presentes no contexto dos sujeitos em seus territórios existenciais, como espaços de circulação de subjetividades. São territórios que se configuram, desconfiguram e reconfiguram a partir das relações que as pessoas e grupos estabelecem entre si. Incorporar a concepção de territórios existenciais implica considerar não apenas as dimensões subjetivas daqueles que são cuidados, mas também a subjetividade dos trabalhadores de saúde. Trabalhar com saúde pressupõe que os próprios trabalhadores permitam deslocamentos em seus territórios existenciais, já que a principal ferramenta de trabalho em saúde mental é a relação (BRASIL, 2013).

A perspectiva da desinstitucionalização trabalha com a ideia de serviços que, compondo determinado território, onde se dão os valores culturais, relações de poder e o desenvolvimento

dos papeis sociais, possam produzir transformações nas cenas que reproduzem a exclusão. A prática do cuidado, é composta por um intenso diálogo e construção coletiva com os recursos e os atores do território, já que as mudanças nessas relações é que podem produzir modificações na vivência do sofrimento, a produção de novos lugares sociais a serem ocupados pelos usuários e a construção de novos projetos de vida.

Os profissionais apontam que não possuem um veículo para realizar ações no território onde estão inseridos e as atividades externas englobam principalmente a esfera do lazer:

Antes tinha muita atividade tanto fora como dentro da unidade. Hoje tem pouco, pouca gente, pouco trabalho, porque não tem mão de obra (E1).

[...] só que a gente não tem equipe pra realizar as VD, não tem carro, não tem transporte, não tem passe, não tem nada [...] só tem a boa vontade do técnico. Para se fazer uma VD precisa de pelo menos 2 pessoas, porque uma pessoa sozinha não é aconselhável fazer visita pra ninguém. Primeiro que vão ter 2 visões para discutir o caso e segundo pra pessoa não correr risco (E9).

Existe uma parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), que vêm aumentando as possibilidades de trocas com o território, proporcionando atividades contextualizadas. A presença de estagiários na unidade possibilita à equipe participar da formação de novos profissionais de saúde, bem como ampliar a reflexão da prática trazida pelo olhar crítico dos estudantes:

[...] eu também sempre fui preceptora de estágio, eu considero isso uma parte importante do meu trabalho, levo isso super a sério [...] (E3).

Mesmo tendo sido palco de importantes mudanças por meio da reforma psiquiátrica, o município ainda demonstra preconceito em relação à loucura e às pessoas que fazem tratamento. Os profissionais reforçam a ideia de que o CAPS é responsável pela conscientização e divulgação de aspectos relacionados à saúde mental para a comunidade:

[...] a gente encontra muito preconceito, [...], apesar de tanto tempo depois da intervenção no Anchieta, uma cidade que viveu todo esse processo histórico, ainda tem fala preconceituosa, um pensamento institucionalizante que quer que ainda as pessoas que estão dando algum tipo de trabalho e estão incomodando alguém vão ser internadas e trancafiadas nos CAPS (E3).

Às vezes eu acho que o CAPS trabalha pra sociedade, pra deixar os pacientes aqui dentro e não dando muito trabalho pra sociedade, então às vezes o CAPS não cuida, ele potencializa a exclusão [...] O CAPS tem uma das funções que é ser responsável pela divulgação, entendimento dos conceitos de saúde mental no seu território, seja a própria sociedade e seja os outros equipamentos de saúde (E7).

É de grande responsabilidade dos profissionais, através de iniciativas pessoais e de equipe, a reorganização de seus processos de trabalho para direcionar ações no território. Porém, deve-se atentar para a necessidade identificada por eles, de uma articulação mais forte, que seja realizada pela própria gestão para aproximação desses serviços, construindo e consolidando assim a RAPS.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de desinstitucionalização traz uma mudança de paradigma, ao propor mudar o foco de atenção da doença para a existência em sofrimento das pessoas e a sua relação com o corpo social. Os serviços de saúde mental não se caracterizam mais como o único lugar possível para viver o sofrimento psíquico, mas um componente de uma rede a ser acessada, que tem como papel agenciar novos espaços e relações, modificando as cenas que geram a exclusão. Esta pesquisa reforça que na construção de Projetos Terapêuticos Singulares como estratégia para direcionar o cuidado haja uma participação efetiva do usuário em todo o processo. Trata-se de algo a ser moldado e sustentado nos encontros, onde as reflexões geradas pela valorização e produção de saberes tem potencial para construir reais projetos de vida.

Observamos questões estruturais como entraves e também um distanciamento ao nível das relações. Apesar disso, a importância do diálogo é consenso entre os trabalhadores, portanto, os momentos de compartilhamento precisam ser priorizados e terem uma participação garantida. Também é imprescindível a efetivação de espaços de troca entre os serviços, instituições e grupos sociais na construção de uma rede mais integrada, que estabeleça ações no território de circulação dos usuários em sofrimento mental.

A falta de recursos humanos e materiais parece desmotivar os profissionais, que passam a enxergar na falta, a desvalorização do seu trabalho e se sentem desestimulados a pensar em alternativas reais. O imaginário institucional sobre o CAPS está pautado na precariedade e esta impressão pode estar amortecendo a capacidade criativa dos profissionais, aumentando a sensação de imobilização de todos envolvidos.

Muitos problemas poderiam ser superados com as capacitações, mas há que se valorizar também os conhecimentos adquiridos na prática cotidiana. Essa reflexão pode fortalecer transformações dentro dos serviços e também em todos os contextos sociais onde se produz e se vive o sofrimento psíquico. Aponta-se para a importância da realização de estudos como este, que partem da reflexão do cotidiano, propondo novas possibilidades de encarar os serviços de saúde, de forma que estes possam se reinventar a cada desafio encontrado.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Portaria nº 3088 de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Saúde Legis – Sistema de Legislação da Saúde, Brasília, 2011a.

BRASIL. Ministério da Saúde. Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva. Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2011b.

BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Cadernos de Atenção Básica: saúde mental,

n. 34. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

DELL’ACQUA, G; MEZZINA, R. Resposta à crise. Estratégia e intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In: DELGADO, J. A loucura na sala de

jantar. São Paulo: Ed. Autor, 1991. p. 53-79

KINOSHITA, R. T. Projeto Terapêutico Singular. Módulo 6: Recursos e Estratégias de

Cuidado. Curso: Álcool e outras drogas – da coerção à coesão. Florianópolis. UFSC. 2014. Disponível em: https://unasus.ufsc.br/alcooleoutrasdrogas/files/2015/03/M%C3%B3dulo-6.pdf. Acesso em: 15 jul. 2017.

NICÁCIO, M. F. S. O processo de transformação da saúde mental em

Santos: desconstrução de saberes, instituições e cultura. 1994. 174 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/4015.

OLIVEIRA, G. N. O projeto terapêutico e a mudança nos modos de produzir saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. 204 p.

VENTURINI, E. Saúde Mental e Direito: a contenção em psiquiatria. In: VELÔSO, T. M. G.; EULÁLIO, M. C. (Org). Saúde Mental: saberes e fazeres. Campina Grande: Eduepb, 2016. p. 23-65.

CONCEPÇÃO DE GESTORES E PROFISSIONAIS DA SAÚDE