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Currículo, solidariedade e prática educativa

O conceito de prática pode ter inúmeras interpretações. Para Gimeno Sacristán, o significado de prática educativa está imbricado ao de prática didática, que envolve, além do trabalho docente, o próprio currículo, e é diferente do de ação. Para o autor, as formas de organizar o currículo muitas

vezes podem responder a exigências institucionais, mas as ações docentes nem sempre conseguem influir no tempo, espaço, dinâmica e organização curricular exercida pelos procedimentos de controle da própria instituição. Neste sentido, muitas vezes as práticas curriculares estabelecem os limites para as ações docentes.

A prática educativa é algo mais do que a expressão do ofício dos professores, é algo que não lhes pertence por inteiro, mas um traço cultural compartilhado [...] algumas vezes em relações de complementariedade e de colaboração, e outras, em relações de atribuições. [...] A prática educativa tem sua gênese em outras práticas que interagem com o sistema escolar e, além disso, é devedora de si mesma, de seu passado. (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 91)

Enquanto a prática recebe mais fortemente a carga do “traço cultural compartilhado”, a ação é um campo mais pessoal, pertence ao agente. Portanto, são as práticas curriculares que são implementadas, organizadas, e envolvem a seleção e distribuição dos saberes escolares. O currículo, pensado a partir das relações que estabelecem, tem como base as experiências anteriores de cada um dos sujeitos envolvidos no processo, que as revisitam e corrigem o rumo das experiências que ainda estão por vir. Desta forma, são as práticas já existentes que influenciam na organização curricular e no método. Nas escolas tradicionais, a tendência é manter a reprodução e existe a continuidade cultural, tanto em relação aos processos quanto em relação ao conteúdo.

Nas sociedades abertas, espera-se maior renovação, daí o interesse em não se descartar a tradição inerente, mas fazê-la de uma nova forma, aperfeiçoando-a (GIMENO SACRISTÁN, 1999). Inerentemente, está a solidariedade enquanto conhecimento, prática curricular, valor e hábito. Não é possível pensá-la como uma disciplina. Ela (a solidariedade) precisa estar imbricada no currículo, fazer parte das relações pedagógicas que se estabelecem e tecem o ambiente escolar, habitualmente, conferindo autenticidade ao Projeto Político Pedagógico.

Pierre Bourdieu, em quem Gimeno Sacristán, apoia-se aqui, define habitus por

sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente "reguladas" e "regulares" sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente. (BOURDIEU, 2003, p. 53-54)

O habitus se apresenta como um regulador da subjetividade do sujeito por meio de uma prática social que se percebe estruturada e que tende a inferir como um regulador das práticas do sujeito, embora sua condição não seja invariável. Para ele, se o sistema muda, a tendência é uma nova acomodação dos sujeitos. Neste sentido, o habitus tende a conformar e orientar as relações de interação, ao mesmo tempo em que é produto das próprias relações sociais que se estabelecem.

Para Gimeno Sacristán, o hábito é um fator determinante na prática pedagógica, pois as ações dos sujeitos muitas vezes não são determinadas pela reflexão sobre o que se deve fazer mais pelo habitus ao qual ela tem sido feita. Por habitus, compreende “a organização resultante de práticas com capacidades para dirigir e regular ações futuras, de forma a permitir o alcance de determinados fins, sem que cada indivíduo que assume o habitus tenha de propor-se a isso explicitamente” (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 82). Assim, as próprias estruturas se cristalizam a partir do habitus, e assim tendem a manter a ordem, rejeitando ou refutando as transformações que por ventura venham a lhe ameaçar. Muito pouco se pode esperar de mudanças quando as ações tentam ser transformadas individualmente. Assim, ainda que os indivíduos formem as instituições, a institucionalização acaba trazendo consequências cumulativas na ordem da execução das atividades, das ações, dos comportamentos, dos valores. “As ações repetidas com frequência criam uma pauta que logo pode ser reproduzida com economia de esforços e que é

apreendida como pauta pelo agente” (BERGER; LUCKMANN apud GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 86).

As práticas pedagógicas consolidadas não se alteram por discursos externos e podem reproduzir práticas discriminatórias, repressão, censura, individualismo, criando um ambiente desfavorável para o trabalho pedagógico e para a aprendizagem. Da mesma forma que pode ser difícil interromper a lógica participativa de um ambiente colaborativo bem sedimentado. Significa dizer que as condições sociais, os modos de gestão, os processos de condução favorecem o desenvolvimento de ciclos reprodutivos dentro da escola. Disponibilizar o conteúdo produzido de maneira didática não significa oferecer um modelo arcaico de educação. O que caracteriza solidificação é a reprodução de velhos hábitos (GIMENO SACRISTÁN, 1999) e de nada vale um discurso do professor que enfatiza a ética e a solidariedade se a prática, o exemplo, for outra63.

Os valores são aprendidos na escola em propostas de atividades intencionais, mas também nas relações que se estabelecem, de forma que não basta o tema estar presente na Proposta Curricular se a prática pedagógica não consolida, não propicia o aprendizado pela vivência daquilo que se deseja ensinar.

Aprendemos a ser professores, assim como aprendemos a ser cidadãos, traficantes ou corruptos... Os problemas de uma instituição escolar sempre são ligados às escolhas de objetivos e formas de ensino a partir das quais os alunos serão iniciados em certos comportamentos, conteúdos e condutas que valoramos. [...] Podemos empreender esforços no sentido de ensinar um aluno a conviver com a crítica, mas a indignar-se com a injustiça, e não a conviver com ela. (CARVALHO, 2013, p. 125)

63 Vale ressaltar que Pierre Bourdieu desenvolve o conceito de habitus se referindo ao conceito não de forma determinista. O habitus não é um mero produto da subjetividade do sujeito, mas é construído a partir de sua trajetória social. Neste sentido, não está condenado a ser uma repetição sem-fim de conduta, podendo ser pensado como um sistema aberto, que pode ser construído continuamente. Ele não necessariamente se refere à lógica pura da reprodução; ao contrário, constitui-se por meio de estratégias e de práticas nas quais e pelas quais os agentes reagem, adaptam-se e contribuem, criando novas situações (SETTON, 2002).

Ao se buscar compreender a solidariedade como prática curricular educativa, tanto a “solidariedade” quanto a “prática” inferem diretamente na compreensão de “currículo” e de “educação”, em quem se deseja formar, onde o currículo é o caminho percorrido durante a vida escolar e a educação é um conceito mais amplo, refere-se às experiências formativas ao longo da vida, quer sejam elas propiciadas pela escola ou em outras situações de aprendizagem e envolvem o desenvolvimento das inteligências ligadas ao convívio em sociedade, pela ecologia dos saberes (SANTOS, B. S. 2007).

Sendo assim, sobretudo durante a educação escolar, não se deve separar a aquisição de conhecimentos culturalmente acumulados e a construção do conhecimento-emancipação, das inteligências ligadas à ecologia dos saberes, da aprendizagem de valores, pelos quais se aprende a viver com a consciência política necessária para a construção cotidiana do estado democrático.