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Solidariedade assistencialista

2. Uma tipologia da solidariedade enquanto prática curricular educativa

2.1. Solidariedade assistencialista

As principais características da solidariedade assistencialista são: a) Não há articulação da ação social com o desenvolvimento do

conhecimento-emancipação de seus alunos;

b) As relações são estabelecidas de maneira hierarquizada, onde há aquele que doa e outro recebe;

c) O aluno pode ou não ser convidado a participar, sendo que não há intenção de promover a consciência crítica. Tais atividades, portanto, podem reforçar o conhecimento-regulação e favorecer o status quo.

Conforme já apresentamos, e corroborando com o nosso referencial teórico (apresentado nos capítulos II e III), solidariedade não é assistencialismo.

No assistencialismo não há responsabilidade. Não há decisão. Só gestos que revelam passividade e “domesticação” do homem. Gestos e atitudes. É esta falta de oportunidade para a decisão e para a responsabilidade participante do homem,

característica do assistencialismo, que leva suas soluções a contradizer a vocação da pessoa em ser sujeito, e a democratização fundamental, instalada na transição brasileira, a que já nos referimos. Na verdade, não será com soluções desta ordem, internas ou externas, que se oferecerá ao país uma destinação democrática. O de que se precisava urgentemente era dar soluções rápidas e seguras aos seus problemas angustiantes. Soluções, repita-se, com o povo e

nunca sobre ou simplesmente para ele. (FREIRE, 2001, p. 66)

No entanto, durante a pesquisa, pudemos identificar na escola uma forma de solidariedade ainda compreendida por aquela ação desenvolvida na ou pela escola, pensada a partir da caridade, da benevolência, centrada em quem faz a ação e não em quem a recebe.

CPE4 – Desenvolvemos um trabalho solidário que atinge quase todo o tipo de população. Arrecadamos brinquedos para crianças, agasalhos – tanto para crianças quanto para idosos, alimentos não perecíveis para instituição de pessoas com dificuldade intelectual.

Essa percepção, por ser recorrente na prática escolar, nos sugeriu o cuidado de considerar a inclusão deste tipo de “solidariedade assistencialista” para demarcar seu campo teórico dentro do universo da solidariedade enquanto prática educativa. No entanto, vale ressaltar que seu emprego não contribui para a formação de uma consciência crítica no processo de formação, uma vez que o caráter assistencialista pode acentuar tal valor à formação do sujeito.

CPE4 – A gente usa estratégias diferentes para envolver os nossos alunos porque eles são adultos, então a turma que arrecadar mais ganha uma

pizzada. É difícil trabalhar com adultos, então damos esse incentivo. Para

que a gente possa arrecadar mais, tem que usar estratégias que sabemos que vai render.

Neste caso, se a escola compreendesse solidariedade a partir da formulação alteridade, ética e compromisso social (cidadania), poderia encontrar outras formas para provocar o interesse dos alunos, uma vez que o fato de serem adultos não justifica a estratégia adotada. Ao contrário, há um

leque de possibilidades de intervenção crítica para se propor a alunos adultos. O que determina a conduta é a compreensão do que é solidariedade e, em segundo lugar, o objetivo centrado no projeto de arrecadação e não na aprendizagem dos alunos. Se o foco é a arrecadação em si, promover o espírito de competição e um momento de confraternização pode parecer adequado; mas se o foco for a aprendizagem, esta não é a melhor estratégia, uma vez que se distanciou completamente da compreensão de solidariedade enquanto conhecimento-emancipação. Desenvolver uma campanha de doação não caracteriza intervenção política, da mesma forma que realizar uma atividade visando o benefício próprio está em direção oposta ao desenvolvimento da alteridade, ainda que, às vezes, a escola tenha a intenção de propiciar uma formação para a cidadania.

Nesta outra experiência apresentada logo a seguir, a escola promove campanhas de arrecadação dentro de um projeto anual em que os alunos têm uma série de atividades e, entre elas, campanhas de arrecadação. Ainda que o projeto apresente outras atividades caracterizadas pela solidariedade funcionalista-participativa (conforme será apresentado no próximo subitem), algumas das ações reservam o caráter assistencialista:

CPEI – Sobretudo a questão da doação de alimentos para instituições de caridade, gêneros de primeira necessidade. Nós fazemos cinco campanhas ao longo do ano: agasalho, leite, “Sustagen”, toalhas, bolacha. Não é só a doação, a ideia é desenvolver nele o ato de pensar no outro, é nisso que a gente fica insistindo, não é só dar a bolacha... é olhar para o outro.

A escola tem a intenção de propiciar, com o desenvolvimento de tais práticas, uma reflexão de percepção diante da desigualdade social. No entanto, é preciso considerar que o viés conservador pode estar presente em uma relação desigual entre os sujeitos. O que, de fato, significa “olhar o outro” é que fará a diferença, pois se a percepção de relação é desigual, o fato de a escola reforçar a doação pode ser compreendido pelos alunos como um reforço a este tipo de prática, que é, por natureza, assistencialista, e que coloca o outro em condição desigual, inferior.

CPE4 – As atividades de solidariedade estão previstas na proposta pedagógica, ela está embasada nos “quatro pilares da educação” da UNESCO, começando pelo aprender a conhecer, vindo para o aprender a fazer. Nossa missão é formar o profissional para o mercado de trabalho e formar o cidadão e lá está o trabalho que desenvolvemos, a campanha do agasalho, do brinquedo, de alimentos não perecíveis. As doações são feitas para a APM e revertidas para algumas instituições de carentes.

Nesta fala pode-se notar o distanciamento da compreensão de solidariedade enquanto conhecimento-emancipação. A escola, ao incluir no currículo a preparação pelos anunciados pilares da UNESCO - aprender a aprender, a fazer, a ser e a relacionar-se (UNESCO, 2001) -, escolhe uma prática que pouco ou nada contribui para a sua concepção de formação. Embora seja uma escola que demonstre uma intencionalidade em desenvolver projetos socioeducativos, o modelo adotado pouco contribui para a formação crítica de seus alunos73.

CPE4 – Solidariedade é super importante. A concepção de nossa escola é trabalhar em equipe, em coletividade. Por que eu tenho que ser solidário com você? Porque você é uma engrenagem e só vai funcionar quando todo mundo fizer a sua parte nesta engrenagenzinha.

Solidariedade é também o exemplo, e participação, junto. Se você chegar em uma sala e disser “agora eu vou mostrar o que é solidariedade”. Não é assim, o professor precisa participar com o aluno e incentivar, dando ideias e montando estratégias. [...]

Há uma compreensão de solidariedade enquanto valor, conduta e, para tanto, pode ser ensinada por meio do exemplo e do estímulo à participação de atividades que propiciem vivências de participação. No entanto, na continuidade da formulação essa ideia, a escola demonstrou que ainda está

73 Para receber o Selo Escola Solidária, a escola relatou outro projeto, no qual realizam um evento tecnológico e convidam muitas pessoas para participar de palestras, workshop e visitação monitorada gratuitamente. Ao invés de cobrarem a entrada, é pedida a doação de 1 quilo de alimento não perecível ou 1 agasalho. Nessa atividade, ainda que seja caracterizada por uma campanha de arrecadação, há aprendizagem, há integração. Segundo a escola, “os alunos participaram ativamente da campanha: receberam as doações feitas pelos participantes do evento técnico; registraram e organizaram as doações por tipo de item (variedade de alimentos e agasalhos); realizam a entrega (comunidades de hospitais da região)”.

centrada na concepção de solidariedade enquanto um projeto assistencialista, centrado em quem faz a ação:

CPE4 – [...] Não adianta o professor chegar e dizer: “gente, vai ter campanha, tragam”. O professor mostrou solidariedade? Não, ele só informou. Agora, se o professor disser: “gente, é o seguinte, todo semestre temos a campanha do agasalho para ajudar as pessoas carentes. Todo ano nós fazemos isso, é bacana. Eu participo também com vocês, e se a gente ganhar ainda teremos a pizzada”. Essa é a diferença, o professor estimula participando, motivando de verdade.

Um projeto de mobilização de característica social deve necessariamente ter como objetivo o bem comum. Neste caso, trata-se de uma ação pontual de benevolência, caridade, que pode muitas vezes reforçar o assistencialismo ou o paternalismo como valor.

Há outro tipo de projeto recorrente.

CPE4 – Nós ajudamos a manter uma escola pública aqui do bairro. Parte da capacitação dos professores é por nossa conta e também fazemos a doação de equipamentos, por exemplo, computadores. Até automóvel, para as aulas de mecânica de automóvel, nós já doamos. A prefeitura de lá mantém, dando o lanche dos alunos. Lá tem muito aluno carente, e também em liberdade assistida. É uma escola que profissionaliza, que oferece cursos rápidos, mas nenhum é técnico. Os cursos que seriam pagos eles fazem gratuito e ainda ganham lanche.

A escola, neste caso, contribui socialmente, porém com um projeto institucional, assumido apenas pela direção da escola, não há articulação da ação com o desenvolvimento do conhecimento-emancipação. O projeto gera impacto social, promove a aprendizagem da comunidade atendida mas não é empregado para desenvolver o conhecimento emancipação de seus próprios alunos.