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Solidariedade e alteridade, em Emmanuel Lévinas

Um dos principais expoentes teóricos em alteridade é Emmanuel Lévinas (1906-1995)47. Em 1961, ele produziu uma de suas obras consagradas

47 Filho de livreiro, judeu, ainda criança sua família foi expulsa da Lituânia e emigrou para a Ucrânia, onde fez o curso secundário. Sua família acabou regressando em 1920, mas em 1923 Lévinas voltou para estudar na Universidade de Estrasburgo. Vítimas da guerra, teve que proteger sua esposa e dois filhos para que não fossem capturados pelo exército, sendo que seus pais na Lituânia não tiveram a mesma sorte. As correntes filosóficas que mais o marcaram foi o existencialismo e o marxismo, dominantes no cenário francês.

que marcaram o século XX, Totalidade e Infinito. Lévinas propõe uma releitura do sujeito, parte do princípio de que a vida só é possível com o outro, pelo outro, transcendendo a dimensão de indivíduo para a de um ser social, que tem obrigação ética e moral intrínsecas, onde a responsabilidade infinita de um- para-o-outro é o sentido da vida. Lévinas se opõe ao modelo hegeliano, pois considera que a totalidade anula a responsabilidade dos indivíduos perante os seus próprios atos em nome da impessoalidade inerente à totalidade. Neste sentido, afirma que, anteriormente a toda unidade e onde há relação possível, “a sociabilidade é independente de todo reconhecimento prévio e de toda formação de totalidades” (LÉVINAS, 1997, p. 236), o que faz com que a cultura preceda a política numa relação ética.

A responsabilidade pelo outro tanto quanto por nós mesmos é a ideia central da alteridade, onde há a compreensão de que a “humanidade” de cada ser humano é tecida nas relações que se estabelecem. Quando alguém é indiferente ao outro significa que aquele outro não se relacionou com este alguém, pois a relação foi estabelecida no alius, no estranho, no estrangeiro, no di-ferente e não no álter, de dis-tinto. Sobre isso, Pedrinho Guareschi nos ajuda a demarcar tais conceitos e, desta forma, compreender a alteridade em Lévinas:

O “outro” é “di-ferente”, do latim, dis, que significa divisão ou negação; e ferre, que significa levar com violência, arrastar. Nesse sentido, o diferente é o arrastado desde a identidade original, e coloca-se como o oposto; é a dialética monológica. Na segunda, o “outro” é o “dis-tinto”, de dis e tinguere, que significa tingir, pintar; também é separado, é o outro, não contudo arrastado para fora, mas possuindo sua identidade e estabelecendo com o “mesmo” relações de diálogo, construtivas, de conversão: é a analética. Essa é a verdadeira “alteridade”. (GUARESCHI, 2002, p.157)

Essa reflexão implica, portanto, no re-conhecimento da alteridade que transforma e traz referências fundamentais para a constituição do eu enquanto sujeito. Se o re-conheço, estabeleço uma relação horizontal de confiança:

Eu o reconheço, ou seja, creio nele. Mas se este reconhecimento fosse minha submissão a ele, esta submissão retiraria todo valor de meu reconhecimento: o reconhecimento pela submissão anularia minha dignidade, pela qual o reconhecimento tem valor. O rosto que me olha me afirma. Mas, face a face, não posso mais negar o outro: somente a glória numenal do outro torna possível o face-a-face. (LÉVINAS, 1997, p. 61)

Lévinas nos mostra que a relação face-a-face faz com que o reconhecimento do outro construa a relação de conhecimento. O outro, em uma relação solidária, é distinto e me constitui. Nas palavras de Lévinas,

não há ruptura do isolamento do ser no saber; [...] na comunicação do saber nos encontramos ao lado de outrem, e não confratados com ele, não na verticalidade do em frente dele. Mas estar em relação direta com outrem não é tematizar outrem e considerá-lo da mesma maneira com se considera um objeto conhecido, nem comunicar-lhe um conhecimento. [...] O social está para além da ontologia (Idem, 1982, p. 49-50).

Na construção do conceito de solidariedade, significa preservar e valorizar o distinto e com ele construir conhecimento. A alteridade, por sua característica de se constituir com o outro, evolui para formar a compreensão de sujeito (social), embasado na concepção de relação48. A compreensão de

solidariedade, portanto, constituída por meio da alteridade, está apoiada na ideia da relação com o outro, distinto, em que juntos há constituição de uma unidade. Quando a relação deixa de ter esta característica, ela também deixa de ser solidária. Significa dizer que na solidariedade não há relação de submissão, pois isto seria anular a existência do outro enquanto sujeito da própria história. A relação entre o mesmo e outro não deve partir de uma redução do outro apenas sob a compreensão do mesmo, nem tentar reduzi-lo ao rosto enquanto a expressão do que é diferente do mesmo:

A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar a cor dos olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está

48 Relação, segundo a reflexão filosófica, intrínseca do ser, se dá na incompletude, ou seja, sempre necessita de outro para se fazer (GUARESCHI, 2002).

em relação social com outrem. A relação rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele. (LÉVINAS, 1982, p. 77)

Lévinas pontua que somente a exposição ao outro não leva à tomada de consciência, ou ainda, que a responsabilidade não se dá espontaneamente, ela é resultado de um processo de aprendizagem. Neste sentido, experiências educativas que propiciem o contato com o outro, responsavelmente, contribuem para a formação da alteridade, para a formação do sujeito ético, que se constitui por meio do desenvolvimento da consciência, da obrigação de cuidar e desenvolver a vida em todas as suas possibilidades. Do contrário, a exposição ao outro pode reproduzir o preconceito e a indiferença.

Assim, é preciso pontuar que a compreensão de solidariedade pelo conceito levinasiano de alteridade comporta três características fundamentais: parte do outro enquanto referência primeira de re-conhecimento e formação pessoal (sendo que tal re-conhecimento é aprendido e, portanto, deve ser ensinado); não garante que haverá re-conhecimento, compromisso, respeito somente pela exposição a outra face; e, terceiro, para se fazer o bem é necessário saber ouvir e conhecer inicialmente, onde o bem não é exatamente aquilo que o sujeito que o pratica quer oferecer, mas deve ser aquilo que quem recebe reconhece como tal – este segundo imprime o que deve ser feito. É neste sentido que uma atitude de solidariedade não é uma postura paternalista ou de benevolência, pois esta postura submete o outro à condição de objeto, não de sujeito. Trata-se, sobretudo, de uma tomada de consciência, de um compromisso com a dignidade do outro, reconhecido enquanto parte constituinte do próprio ser. Há, portanto, uma forma de “desvelamento” intencional, um rosto pode provocar a relação humana. Ser-para-o-outro significa assumir a responsabilidade ética sobre ele, onde a transcendência seja a proximidade, medida pela responsabilidade com o outro (Idem, 2002), num estado de atenção à vida.

O conceito de alteridade também sustenta a compreensão do que seria praticar o bem. Contrário ao pensamento de Rousseau, Lévinas desconsidera que fazer o bem seja algo intrínseco a quem faz a ação, pois a bondade da

ação não se mede pela felicidade ou intenção de quem a faz. Esta seria uma medida egoísta, centrada no eu, antagônica ao conceito de alteridade, pois transforma o outro em objeto e não sujeito da ação. Há uma necessidade de se conhecer o que seria o bem antes mesmo de sentir que se está fazendo o bem, pela exposição atenta ao olhar, numa aproximação permissiva, de deixar-se “atingir” pelo outro (HUTCHENS, 2007). Desta forma, ser solidário e promover o bem não é sentir-se bem, e sim “ser atingido” pelo bem, é ser “bom apesar de si mesmo”.